É com bom humor que o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl passa suas ideias sobre como construir um futuro melhor para as cidades. Aos 80 anos, Gehl consolidou os 50 anos de estudos e trabalho sendo um arquiteto “diferente”. Ao sair graduado da Academia Real de Belas Artes da Dinamarca, em 1960, ele se sentia preparado para começar a colocar em prática o que tinha aprendido com a base da escola modernista. Foi ao conhecer a esposa, a psicóloga Ingrid Mundt, que tudo mudou. Eles passaram a organizar reuniões semanais com colegas da sociologia, da psicologia e da arquitetura, até que Gehl chegou a uma simples, mas formidável percepção: o planejamento urbano deve ajudar a criar cidades para as pessoas e a escala humana deve ser a prioridade. Mais do que dar atenção à forma, a arquitetura precisa ajudar a criar o melhor habitat para o Homo sapiens.
Desde 1965, quando o casal viajou à Itália para investigar a interação das pessoas com os espaços públicos, o dinamarquês passou a estudar as cidades ao contar o número de pessoas caminhando, seus movimentos e seus hábitos. “Eu e minha esposa percebemos que a grande lacuna entre os arquitetos e os sociólogos era que ninguém estava nas ruas, observando o que o formato das cidades estava causando nas pessoas”, declarou ele durante sua palestra no evento Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre.
Hoje, longe da academia depois de mais de 40 anos de ensino e pesquisa, comanda a empresa de consultoria Gehl Architects, fundada em 2000, que já executou projetos em Nova York, Melbourne, Sidney, Moscou, São Francisco, Rio de Janeiro, São Paulo, e muitos outros locais. “Disseram-me que eu podia continuar a criticar, poderia escrever livros, mas também deveria ir até as cidades e mostrar o que deveria ser feito”, disse. O arquiteto tem diversos livros publicados, entre eles Life Between Buildings, de 1971, o recente How to Study Public Life, e Cidade para Pessoas, já traduzido em 32 idiomas.
Gehl formulou 12 critérios para a criação de espaços públicos. Elementos como espaço para caminhar, para sentar, coisas para ver, qualidade estética e proteção contra o tráfego são alguns deles. A Piazza del Campo, em Siena, na Itália, é um dos lugares apontados por Gehl como perfeito, pois cumpre todos os critérios. O oposto de uma cidade em escala humana, para ele, é exemplificado perfeitamente por Brasília. O arquiteto criou até mesmo o termo “síndrome de Brasília” para criticar algumas práticas do modernismo que, segundo ele, representam o que pior pode ser feito em uma cidade: ruas e avenidas pensadas apenas para o carro, baixa densidade, e o que chama de “arquitetura do cocô do passarinho”.
Encontramos com Jan Gehl em sua passagem por Porto Alegre e conversamos sobre os desafios das cidades brasileiras, transporte ativo, bicicletas, densidade e a infraestrutura voltada às pessoas. Confira o vídeo e abaixo a entrevista na íntegra.
Quais são os principais desafios que você percebe no Brasil em relação a construir cidades melhores para as pessoas?
O desafio no Brasil, na minha opinião, é o mesmo desafio de qualquer outro lugar. Em todo o mundo nós temos pessoas se movendo, uma população crescente e pessoas se mudando para as cidades. Isso é uma coisa boa, porque nelas podemos nos organizar e viver de modo muito mais sustentável do que na área rural. No interior, os serviços são mais caros, existe maior demanda por recursos e também por mobilidade, são quilômetros a serem percorridos para qualquer necessidade. Então, nas cidades, nós podemos ter um estilo de vida mais sustentável.
Para isso, é muito importante que, de muitas maneiras, nós repensemos a forma que com organizamos as cidades. Eu sei que muitas cidades já direcionam grande parte de suas agendas para construir uma cidade mais sustentável, e isso significa nos livrarmos dos automóveis da maneira mais rápida e eficaz possível. Automóveis não são elementos muito inteligentes nas cidades, eles são feitos para necessidades específicas de cem anos atrás. Nós sabemos, agora, que quanto maior são as cidades, mais estúpido é ter automóveis individuais como meio de transporte para as pessoas. Então, o papel dos automóveis está ultrapassado, é uma tecnologia velha e nós devemos ser capazes de fazer de forma mais inteligente. É interessante que, em 2009, a condução do automóvel chegou ao pico no mundo. Na América está caindo, na Austrália está caindo, no Canadá está caindo. A meu ver, é muito bom que reconsideremos o modo como nos movemos porque a ideia atual predominante sobre mobilidade diz respeito ao petróleo barato, e na interminável oferta do petróleo barato e outros recursos. Porém, nem outros recursos e nem o petróleo são infinitos. Além disso, é muito perigoso e danoso para o clima.
Na minha opinião, nós precisamos fazer bairros ou centros de cidades muito melhores, baseados na ideia de pessoas caminhando muito mais e pedalando muito mais quando isso for possível. Muitas cidades decidiram fazer isso. Na minha cidade, Copenhague, 45% das pessoas vão ao trabalho ou à escola de bicicleta, mas não era assim 20 anos atrás. Quanto mais infraestrutura, mais seguro se torna e mais pessoas pedalam, pois é bom para o clima, é bom para você, bom para a economia, bom para a poluição, é bom para o barulho. É realmente muito bom.
No Brasil e em muitos outros lugares, as pessoas ainda pedem por ruas mais largas, reclamam de ciclovias ou outros espaços dedicados a diferentes formas de transporte que não seja o carro. Como você acha possível mudar isso?
Pedir por ruas mais largas é completamente estúpido. Sabemos, com base em exemplos de todas as partes do mundo que, quanto mais largas as vias e quanto mais ruas, mais tráfego, mais pessoas obesas e mais poluição. Esse é um caminho errado. Em cidades e países inteligentes eles estreitam as ruas, limitam o número de ruas e fazem de tudo para promover outras formas de mobilidade, como o transporte coletivo, a bicicleta e o caminhar o máximo possível. Também precisamos desenvolver modos mais inteligentes de transporte coletivo porque os velhos ônibus que ainda circulam por muitos lugares não tem uma tecnologia do século 21.
Realmente precisamos pensar nas cidades do futuro como um colar de pérolas. O cordão deve ser muito rápido, seguro e inteligente para o transporte público e, então, teremos os bairros como pérolas em um cordão, onde a maioria das pessoas está a uma distância “caminhável” ou “ciclável” das estações. Aí você tem bairros fantásticos onde se pode trabalhar, morar, as crianças podem crescer e onde a população pode ter uma expectativa de vida cada vez mais alta. Aí você tem sistemas de transporte mais inteligentes, que possam te levar de um sistema para outro. Se for realmente inteligente, você pode até levar junto a sua bicicleta. Existem, atualmente, muitos programas de aluguel de bicicletas, onde você não precisa mais possuir uma. Se você tem um sistema raro e inteligente de compartilhamento de bicicletas como temos em Copenhague, você pode retirar uma em uma estação, embarcar gratuitamente no trem, descer na sua estação e continuar pedalando. Isso é muito inteligente.
Também podemos observar que existem diversos modelos possíveis com muito menos carros, mas com carros compartilhados, em que as pessoas não são donos, mas alugam quando absolutamente necessário. O que é, obviamente, muito melhor que cada um ter um pedaço de lixo metálico ocupando a rua. A indústria automobilística deposita muita fé nos carros autônomos, para resolver todos os seus problemas. Mas quais os problemas que serão resolvidos com os carros autônomos? De repente, eles podem vender mais 5 bilhões de unidades. Isso pode salvar o próximo século para a indústria, mas não irá salvar o clima ou os problemas de saúde, porque um dos maiores problemas atuais nos países desenvolvidos são as pessoas que passam muito tempo sentadas, caminham muito pouco e morrem muito cedo. Organizações mundiais recomendam fortemente que, em vez de fazer planejamentos ruins, que convidam as pessoas a sentarem, se faça um modelo de planejamento que faça as pessoas caminharem. Já sabemos que as pessoas morrem mais cedo nos subúrbios do que nas cidades, pois nas cidades você caminha mais e nos subúrbios você senta mais.
Ao falarmos em cidades “caminháveis” e em construir densidades, infelizmente, uma das soluções inventadas para acomodar mais pessoas em menos espaço é construir prédios altos, indo contra a sua ideia de escala humana. Como é possível encontrarmos um equilíbrio para isso?
O que há de errado com Paris? O que há de errado com Barcelona? Ambas têm altas densidades e prédios de seis ou sete andares por todos os lugares. Você pode facilmente ter altas densidades com estruturas mais baixas. Muitas vezes eu falo que os arquitetos preguiçosos respondem à densidade com torres. Mas, se o mesmo arquiteto trabalhar melhor, ele pode criar a mesma densidade com alturas menores. É só um hábito de pensar que é mais fácil fazer dessa forma. Mas a qualidade de vida no alto de uma torre e a qualidade de vida mais abaixo são muito diferentes. Em cima você está completamente isolado, a única coisa que você pode ver são os aviões indo e vindo do aeroporto. Lá embaixo você é parte da cidade. Isso é completamente diferente. Embaixo, você é parte de Paris, acima você é parte do tráfego aéreo. Eu realmente acho que altos prédios estão ultrapassados e, ao estudar de perto a questão da densidade, nós podemos ter cidades muito melhores.
Olhando para Porto Alegre, por exemplo, vemos na realidade a resposta triste de desenvolvedores estúpidos que simplesmente colocam alturas em todos os lugares. Isso é o que eu chamo “os arquitetos do cocô de passarinho” [Gehl usa uma garrafa para demonstrar a analogia. Segundo ele, esses arquitetos simplesmente olham a cidade de cima e despejam torres na cidade. Veja a explicação no vídeo acima]. Olham lá de cima sem nenhuma visão sobre qual qualidade de vida deve ter a cidade.
Você acredita que isso seja um problema das escolas de arquitetura?
As escolas de arquitetura estão muito obcecadas com a forma em vez de estarem obcecadas com a qualidade de vida que teremos na cidade, nos assentamentos e nas vilas. Na verdade, eu enxergo o futuro das cidades grandes como um grande número de vilas e grandes bairros onde se pode ser criança, se divertir, ir à escola. Onde você pode ser idoso. Os médicos dizem que você precisa caminhar muito, então você deve estar na rua e não sentado em casa assistindo televisão. Para isso, você precisa de um bairro muito bom, onde você ama caminhar, onde tenha motivos para ir aos lugares, a uma biblioteca, a centros culturais ou qualquer outra coisa. Você precisa ter uma boa qualidade de vida quando você é jovem ou velho, mas qualidade de vida e carros não existem juntos, nós temos certeza disso. Temos experimentado esse modelo por 50 anos, não funciona. Também sabemos, agora, que temos um número ainda maior de desafios neste século. Pessoas estão ficando mais velhas, precisamos fazer algo para que as pessoas se movam mais e precisamos fazer muito mais pelo clima. O planejamento das cidades pode fazer muito.
Como cidades já construídas fora do que seria a escala humana podem ser repensadas e reabilitadas?
A minha própria cidade, Copenhague, tem duas estratégias municipais muito fortes. Uma delas é: “nós seremos a melhor cidade do mundo para pessoas”, nós faremos uma cidade fantástica para caminhar, em todas as regiões e para qualquer idade. Nós também faremos o melhor para a vida em comunidade. Para as pessoas poderem se encontrar naturalmente em praças e parques em vez de instalar cercas nos parques e coisas desse tipo.
A outra estratégia é que faremos a melhor cidade do mundo para bicicletas. Sabemos que, se fizermos mais ruas, teremos mais carros, mais tráfego. Se você proporciona melhores condições para os pedestres e para a vida pública, o que acontece 10 anos mais tarde? Você tem mais pedestres e mais vida nas ruas. Se você oferece melhores condições para as bicicletas, 10 anos depois você terá mais ciclistas. Então, é uma questão de qual estratégia você tem. Em uma cidade como essa (Porto Alegre), você pode facilmente estabelecer estratégias que favoreçam as pessoas e as bicicletas em vez de apenas ter estratégias que favoreçam carros, tráfego e automóveis.
Brasil é mais dependente do que você chama de “Síndrome de Brasília” ou todos os outros países estão tendo os mesmos problemas?
Vocês não são diferentes de ninguém. Em todos os países que eu trabalhei por 30 anos, sempre começavam dizendo “você precisa entender que aqui é diferente, temos o clima diferente, a cultura diferente, nós amamos nossos carros mais do que em outros lugares, assim é como somos e não podemos ser mudados”. Então mudamos e ninguém mais lembra quem tinha dito “isso nunca poderá ser feito”. Eu ouvi isso em Nova York, especialmente. “A Big Apple não pode ser mudada, aqui estamos sempre acordados, você nunca poderá vir com ideias europeias, pelo amor de Deus, para Nova York”. Então mudamos. De repente eles são apenas seres humanos em Nova York? Em Moscou, “isso nunca poderá ser feito em Moscou”. Foi feito, aconteceu. O que você está esperando, Brasil?
Se você mostrar imagens de habitats bons e ruins para o Homo sapiens, todos, sejam ricos, pobres, jovens ou idosos no Brasil, eles irão escolher as mesmas imagens que todo o resto do mundo, dizendo, “eu gostaria de viver aqui e não aqui”, porque isso vem de dentro.