Algum tempo atrás, mais precisamente na segunda metade dos anos noventa, saber AutoCAD tinha seu charme. Eu mesmo dei meus primeiros passos com a versão 11 em lentos computadores na fria e escura caverna da sala de computação da escola de arquitetura da Católica (do Chile). Era algo mais parecido ao Pong ou a Logo que ao sofisticado desenho que conhecemos hoje.
Como éramos poucos os que sabiam utilizar o programa e eu era rápido com ele, em um dos meus primeiros trabalhos me colocaram para fazer cortes de rua para o plano diretor de um bairro da Região Metropolitana de Santiago, uma atividade mecânica, repetitiva, mais próxima a fabricação de salsichas do que do desenho urbano (line – offset – extend – trim – insert block e pronto). Em uma manhã poderia fazer dezenas de cortes, somente precisava saber a distância entre linhas de fechamento, a largura da calçada, o número de vias e se havia estacionamentos laterais ou canteiro central para definir a forma de quilômetros de vias. Não, não havia tempo, nem dinheiro, nem vontade para pensar em detalhes. Isso seria visto em planejamentos parciais específicos para cada bairro que seriam realizados em um futuro hipotético.
Se, na atualidade, a paisagem deste bairro possui alguma homogeneidade, isso se deve, em grande medida, ao fato de que ao fabricante não interessava muito mudar a receita das suas salsichas, nem muito boas, nem muito ruins, mas fáceis e rápidas de serem executadas. As coisas seriam diferentes se o processo mecânico do desenho computadorizado fosse substituído pela lentidão do traço feito à mão, cuja pausada velocidade permite uma maior reflexão sobre o desenho?
Pois bem, o problema da uniformidade viária não vem somente do AutoCAD; muito se deve a incapacidade ou desinteresse em sair da comodidade do modelo seguido por mais de um século, no qual as ruas, em grande medida, são desenhadas e construídas com a mentalidade de biblioteca, onde a cada uso ou usuário corresponde um lugar claramente definido e cotado. Assim, o espaço privado não se mistura com o público, que por sua vez, está estritamente dividido por linhas que definem uma série de mundos paralelos e intocáveis destinados a cada usuário da via. Em um determinado momento, inclusive, se pensou na construção destas vias em diferentes níveis que não interferiria na fluida circulação de cada meio de transporte.
Esta segregação é entendida em vias primárias, onde o volume dos fluxos e a velocidade que alcançam os veículos motorizados obriga a separar os diferentes meios e usos que coexistem na rua. Entretanto, em vias locais, que constituem cerca de 70% da malha viária de uma cidade, a separação pode ser desnecessária e inclusive imprudente. A aplicação rigorosa do paradigma de confinamento nestas ruas usualmente cria um excesso de pavimentação veicular em detrimento do espaço peatonal. A desnecessária separação, por sua vez, favorece as altas velocidades motorizadas e a marginalização do pedestre, o elo mais frágil na cadeira de mobilidade.
O que não é planejado é adotado naturalmente. A cidade latino americana usualmente omite a divisão administrativa e funcional da sequência de via (fluxo veicular) e calçada materializada nos instrumentos de planejamento territorial. Na prática, em vastas áreas urbanas da região, subsistem ruas em que a fronteira entre o espaço público e o privado é difusa, no qual a sobreposição de usos é a norma, onde os diferentes meios de transporte se misturam e convivem em um mesmo espaço com atividades estacionárias.
São espaços nos quais os usos mudam ao longo do dia e da semana, as atividades se deslocam buscando o sol ou a sombra e a largura das circulações varia de acordo com as necessidades do momento. Aqui a rua é planejada como um suporte no qual as atividades a serem desenvolvidas são matéria de negociação cidadã, escapando da obsessão regularizadora que usualmente afeta os profissionais do planejamento urbano, que preferem evitar a existência deste tipo de paisagem na cidade (algo normalmente encontrado na maioria dos bairros tradicionais).
No mundo do urbanismo de render e AutoCAD, as pessoas têm aspecto, porte, riso e atitude de modelos, as árvores são sempre frondosas, o lixo é depositado nos recipientes colocados em cada esquina, não há pobreza e o trabalho informal se limita a um ou outro artista de rua que ajuda a construir o que os norte-americanos gostam de chamar de vibrant street, um vibrant neighborhood. O desenho se torna assim reduzido a uma mera ferramenta de evasão para criar uma felicidade na terceira dimensão. A realidade nos diz que as cidades e suas ruas não são tão chatas quanto um corte no AutoCAD, nem tão perfeitas como a imagem de um render. Felizmente.
As ruas são espaços de alta complexidade, nos quais os usos informais, embora seja verdade que eles podem causas grande problemas de convivência, também em grande medida criam a imagem, a personalidade, o patrimônio de uma cidade. Reconhecer estes valores, adaptá-los e incorporá-los nos processos de planejamento é parte do desafio da disciplina. Negá-los somente nos deixa com os problemas, sem aproveitar as oportunidades.