Fatores morfológicos da Vitalidade Urbana – Parte 3: Arquitetura da Rua / Renato T. de Saboya

* Este texto é uma versão compilada e revisada de dois posts publicados originalmente no Blog Urbanidades: Condições para a Vitalidade Urbana #3 – Características da relação edificação x espaço público e Condições para a Vitalidade Urbana #4 – Permeabilidade visual.

O terceiro fator a contribuir para a vitalidade dos espaços urbanos é o que tenho chamado de Arquitetura da Rua, ou seja, as características morfológicas das edificações e suas relações com o espaço aberto, bem como o conjunto e o ambiente que emergem dessa interação. Como veremos, a maneira como as edificações estão posicionadas e a forma como configuram seus sistemas de barreiras e permeabilidades em relação às ruas podem influenciar diretamente na quantidade de pessoas que utilizam o espaço público e no tipo de atividades que ali se desenvolvem.

Permeabilidade público x privado

Um primeiro aspecto a ser considerado é a necessidade de permeabilidade física entre as atividades que acontecem dentro da edificação e o espaço público das calçadas. Bentley et al (1985, p. 13), por exemplo, dizem que:

“Permeabilidade física entre espaços públicos e privados ocorre nas entradas para os edifícios ou jardins. Isso enriquece o espaço público através do aumento do nível de atividade em suas bordas.”

Mais adiante, Bentley et al (1985, p. 69) acrescentam:

Para aumentar a robustez, a interface entre edifícios e espaço público deve ser projetada para viabilizar que uma gama de atividades privadas internas coexistam em intensa proximidade física com a gama de atividades públicas no exterior.

Proximidade e interação entre as atividades no interior e exterior das edificações em Barcelona. Image © Renato Saboya

Uma quantidade apropriada de portas pode auxiliar na promoção da vitalidade urbana conectando a rua com atividades comerciais e de serviços, promovendo assim as atividades que lhes são inerentes, tais como a pesquisa de preços, o olhar de vitrines e o entra-e-sai para comprar ou obter mais informações sobre os produtos. O leitor deve lembrar que essas atividades estavam presentes na definição de vitalidade urbana que propus no primeiro post desta série. Sem essa permeabilidade entre o interior e o exterior, essa parcela da vitalidade seria, quase que automaticamente, excluída do espaço da rua.

No caso dos shopping-centers essa vitalidade é interiorizada: as ligações dos espaços edificados com a rua são minimizadas, e toda essa movimentação é retirada dos espaços públicos, juntamente com a possibilidade (ainda que nem sempre exercida) de interação social entre pessoas de perfis socioeconômicos mais variados do que aquelas que frequentam os shoppings.

Carlos Nelson também reforça esse argumento para o caso de atividades residenciais:

Diríamos que, quanto mais portas se abrem para a calçada, tanto mais completamente o espaço público é passível de apropriação pela casa. (SANTOS; VOGEL, 1985, p. 54).

“Apropriação pela casa”, nesse caso, significa utilizar o espaço da rua, seja para atividades de lazer, contemplação, deslocamentos ou mesmo para estabelecer relações sociais. A mesma lógica pode ser estendida para edifícios residenciais, portanto. Bentley et al (1985, p. 13) mostram os contrastes de duas organizações, ilustrando a mudança na ocupação de um quarteirão residencial em Cardiff. Originalmente, ele era ocupado por pequenas edificações coladas umas às outras, posicionadas na borda da quadra e abrindo-se diretamente para a rua, cada uma com sua porta. Após uma reformulação, esse conjunto foi substituído por duas grandes edificações em altura, unidas por uma circulação vertical que também funcionava como único acesso. Este, portanto, fica não apenas distante da rua como também localizado em apenas uma das faces do quarteirão, deixando as demais três faces sem permeabilidade física.

Por fim, Gehl (2011) oferece o mesmo conselho:

É importante que seja fácil entrar e sair das habitações. Se a passagem entre interior e exterior é difícil – se é necessário, por exemplo, usar escadas e elevadores para entrar e sair – o número de visitas ao exterior cai notavelmente. (GEHL, 2011, p. 184).

Dimensões da forma edificada

Gehl (2011) defende a adoção de fachadas curtas como forma de intensificar as possibilidades de interação da rua com a edificação e diminuir as distâncias a serem percorridas pelos pedestres:

Sabendo que pedestres geralmente não desejam caminhar muito, os projetistas de lojas comerciais usam fachadas estreitas, de modo que haja espaço para a maior quantidade possível de lojas na menor distância possível na rua. (GEHL, 2011, p. 95)

Segundo ele, algumas cidades vêm proibindo a instalação de atividades que ocupem muito espaço de fachada sem a correspondente densidade de portas e interação com a rua, tais como postos de gasolina e até mesmo bancos e edifícios de escritórios. Esses equipamentos precisam ser posicionados nos andares superiores ou, no caso de ficarem no térreo, limitarem fortemente o tamanho de suas fachadas. Assim, seria possível concentrar o acesso em uma pequena largura (o exemplo dado por Gehl cita 5m como tamanho máximo) e utilizar o resto da interface para outras atividades com acesso direto pela rua, ao invés de criar longos perímetros sem permeabilidade.

Essas bordas sem portas constituem “espaços vazios” que são prejudiciais à vitalidade:

Usando o princípio de lotes estreitos [na largura] e profundos [no comprimento] juntamente com um uso cuidadoso do espaço frontal evita o problema de “buracos” e “áreas residuais” sempre que os edifícios se voltam para calçadas e rotas de pedestres. Isso também vale para áreas residenciais. (GEHL, 2011, p. 95)

O mesmo princípio pode ser estendido aos afastamentos laterais entre as edificações, que reduzem a proporção da quantidade de metros lineares de fachada (e portanto o espaço para atividades em interação com a rua) em relação ao comprimento total do quarteirão. Essa configuração desperdiça o potencial que a interface entre os lotes privados e a rua possui em termos de estímulo ao movimento de pessoas, ao mesmo tempo em que aumenta as distâncias a serem percorridas e diminui a densidade de atrativos. Alexander et al (1987, p. 67-71) reforça a necessidade de que as fachadas sejam contínuas:

“Os edifícios envolvem o espaço”, e NÃO “o espaço envolve os edifícios”. […] Se possível, o edifício deve tocar ao menos um outro edifício existente, de forma que os edifícios em conjunto formem um tecido contínuo atavés da cidade.

Gehl (2011) defende também a adoção de edifícios mais horizontais, baseado no fato de o campo de visão humano ser limitado no que diz respeito a elementos situados em posições altas. Temos, segundo ele, um campo de visão voltado à frente e abaixo que nos permite visualizar a apreender com mais facilidade o espaço contido nesses limites. Por isso, a configuração mais “natural” de um espaço urbano é aquela constituída por edificações baixas, ao longo de uma rua, já que estão mais em harmonia com nossos sentidos.

Um ponto semelhante é levantado por Alexander et al (1977), baseando-se em estudo de Fanning (1967 apud Alexander et al, 1977). Segundo ele, as distâncias enfrentadas pelos moradores e a “fricção” causada por corredores, elevadores, portarias, afastamentos e portões nos deslocamentos até a rua desestimulam significativamente o desenvolvimento de atividades nos espaços abertos.

[…] viver em edifícios verticais afasta as pessoas do solo, assim como da sociedade casual e cotidiana que acontece nas calçadas e ruas e nos jardins e nos alpendres. Deixa-os sozinhos em seus apartamento. A decisão de sair para algum tipo de vida pública torna-se formal e desajeitado; e a não ser que haja alguma tarefa específica que traga a pessoa para fora, a tendência é ficar em casa, sozinho. (ALEXANDER et al, 1977, p. 116)

Permeabilidade visual

Apenas a proximidade física pode não ser eficaz na promoção da vitalidade caso não seja reforçada por conexões visuais:

O contato através da experiência entre o que está acontecendo no ambiente público e o que está acontecendo nas residências, lojas, fábricas, oficinas e edifícios coletivos adjacentes pode promover uma extensão e enriquecimento das possibilidades de experiências, em ambas as direções. (GEHL, 2011, p. 121)

Podemos identificar três maneiras pelas quais a visibilidade pode ajudar a promover a apropriação dos espaços públicos. A primeira delas, levantada por Jacobs (2001), diz respeito à segurança. O conceito de “olhos da rua” descreve a combinação de fachadas visualmente permeáveis, próximas à rua e com moradores que se preocupam com o que acontece na sua vizinhança, e funciona no sentido de promover uma maior sensação de segurança para quem caminha ou desenvolve outro tipo de atividade nas ruas. Isso acontece porque “Um pedestre sente o olhar coletivo, mesmo que ninguém esteja realmente olhando para a rua.” (HANSON; ZAKO 2007, p. 021-19). Embora não haja garantias, quem caminha por uma rua para a qual muitas janelas se abrem tem a sensação de que, se algum problema acontecer, alguma pessoa dentro de uma das edificações será capaz de ver o que está acontecendo e intervir. Para entender melhor, basta imaginar a situação oposta: uma rua com alta proporção de muros e fachadas cegas gera uma intensa sensação de insegurança, fragilidade e desconfiança. As chances de ser “salvo” por um vizinho ou morador são praticamente nulas.

A segunda maneira pela qual a visibilidade reforça a proximidade física é através da possibilidade de algum tipo de interação concreta entre espaço edificado e aberto, mesmo que à distância. Alexander et al (1977) argumentam que até o 4º andar de uma edificação é possível interagir com alguém no térreo (o que só seria possível se houvesse alguma conexão visual). Gehl (2011, p. 137 – grifo no original) ressalta que “Crucial para determinar a distância aceitável em uma determinada circunstância é não apenas a distância física real, mas em grande medida a distância percebida.” Nesse sentido, alguém que está dentro de uma edificação com contato visual direto sobre o espaço público sente-se mais próximo a este, e desfruta da possibilidade de interagir ativa ou passivamente com ele. Passivamente, através dos sons e cheiros, e ativamente através de uma conversa com alguém, da intervenção em alguma situação problemática como no caso da segurança delineado acima, do cuidado com os filhos que brincam na rua, e assim por diante. Santos e Vogel (1985) descrevem belissimamente a riqueza de experiências e estímulos mútuos entre os residentes e quem passa ou utiliza a rua para outros motivos no livro “Quando a rua vira casa”.

Jacobs e Gehl, entre muitos outros autores, defendem que a própria animação de uma rua ou espaço público atua como atrator de maior animação. Isso acontece porque as pessoas gostam de observar outras pessoas, assim como gostam de estar em lugares onde haja animação e diversidade de pessoas e atividade: “Nas cidades, a animação e a variedade atraem mais animação; a apatia e a monotonia repelem a vida.” (JACOBS, 2000, p. 108). Gehl (2011) cita o exemplo das crianças, que são atraídas de forma muito mais espontânea para lugares onde outras crianças já estejam brincando. Caso isso possa acontecer entre edificação e espaço público, a vitalidade urbana tende a ser reforçada.

Todos esses estímulos (sonoros, visuais, etc.) podem atuar como incentivadores à vivência do espaço público, através do que pode ser considerada a terceira maneira de reforçar a proximidade física: promover a lembrança constante de que o espaço está ali, próximo, com todos os seus atrativos. É um aspecto bem aceito nas ciências cognitivas que aquilo que está ao alcance da experiência e dos sentidos afeta profundamente os julgamentos e inferências que fazemos sobre o mundo, ao ponto de Kahneman (2011) cunhar a expressão “what you see is all there is” (o que existe se resume ao que você vê, em tradução livre). Ele mostra que aquilo com que nos deparamos e interagimos passa a assumir uma proporção em nossa visão de mundo que é incoerente com sua verdadeira recorrência quando medida por meios objetivos. O mesmo princípio pode ser aplicado ao papel que a visibilidade tem sobre nossa consciência acerca dos espaços públicos e as decisões que tomamos quanto à frequência com que o vivenciamos: se ele está presente em nossa consciência (e os estímulos visuais são importantes nesse sentido), é maior a probabilidade de que nossas decisões os incluam. Se ele, ao contrário, está ausente, é menor a probabilidade de que o consideremos em nossas ponderações e escolhas.

Os dois tipos arquitetônicos da imagem abaixo, que de maneira nenhuma esgotam as possibilidades de combinações e recombinações, exemplificam um pouco do contraste entre diferentes arquiteturas da rua.

Diferentes arquiteturas da rua proporcionada por diferentes características tipológicas das edificações. . Image © Adaptado de SABOYA (2015)

Referências:
ALEXANDER, C.; ISHIKAWA, S.; SILVERSTEIN, M. A pattern language. New York: Oxford University Press, 1977.
ALEXANDER, C.; NEIS, H.; ANNINOU, A.; KING, I. F. A New theory of urban design. New York: Oxford University Press, 1987.
BENTLEY, I.; ALCOCK, A.; MURRAIN, P.; MCGLYNN, S.; SMITH, G. Responsive environments: a manual for designers. London: Architectural Press, 1985.
GEHL, J. Life between buildings: using public space. Washington, DC: Island Press, 2011.
HANSON, J.; ZAKO, R. Communities of co-presence and surveillance: how public open space shapes awareness and behaviour in residential developments. Proceedings of the 6th  International Space Syntax Symposium, 2007. Istambul.
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KAHNEMAN, D. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011.
SABOYA, R.; NETTO, V. M.; VARGAS, J. C. Fatores morfológicos da vitalidade urbana: uma investigação sobre o tipo arquitetônico e seus efeitos. Arquitextos - Vitruvius, v. 180.02, 2015.
SANTOS, C. N.; VOGEL, A. Quando a rua vira casa. São Paulo: Projeto, 1985.

Sobre este autor
Cita: Renato T. de Saboya. "Fatores morfológicos da Vitalidade Urbana – Parte 3: Arquitetura da Rua / Renato T. de Saboya" 04 Jul 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/875044/fatores-morfologicos-da-vitalidade-urbana-nil-parte-3-arquitetura-da-rua-renato-t-de-saboya> ISSN 0719-8906

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