Se uma cidade não foi usada por um artista, nem mesmo os habitantes vivem lá de maneira imaginativa”, disse o escritor Alasdair Gray em seu primeiro e mais conhecido romance, Lanark: uma vida em quatro livros, cuja história se passa em uma Glasgow fantasiosa. A frase de Gray, citada neste artigo do Next City, convida à reflexão sobre as várias formas que a ficção encontra para elaborar o meio urbano ao longo do tempo.
Cenários urbanos utópicos e distópicos são representados tanto na literatura quanto em filmes, quadrinhos, séries de televisão e videogames. O serviço que essas construções imaginárias prestam, muitas vezes, é o de explicitar a inquietação e a insatisfação ao mesmo tempo que expõe aspirações e esperanças de novos espaços e arquiteturas: novas cidades.
Cidades utópicas
Cidades utópicas existem apenas no papel impresso e em nossas imaginações. Existem diversas obras que nos trazem essa experiência. A eficácia dessas utopias se evidencia justamente por não serem parte de um projeto realista, mas por possuírem eventual força crítica, “na sua capacidade de consumar, no conceito, o que expõe de forma ambígua, plural, polivalente, na representação”, como destaca Adriana Mattos de Caúla, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, no artigo Cidades Imaginárias: utopia, urbanismo e quadrinhos.
Em outras palavras, como ressaltou o arquiteto Bernard Tschumi, conhecido por subverter o mantra modernista “forma segue função” para a célebre frase “forma segue ficção”:
“Em vez de começar um projeto com perguntas sobre requisitos específicos, como quantos metros quadrados são necessários para construir um banheiro ou uma sala, eu estou interessado em olhar para a literatura ou cinema. Aqui está um exemplo: no século 17, não havia corredores. Em seguida, o corredor foi inventado a fim de introduzir privacidade. Isso não é uma ideia arquitetônica. Essa é uma ideia cultural. Então eu disse: vamos olhar para a literatura. Quais são as mudanças da sensibilidade cultural? Então, quando eu disse – a forma segue a ficção, eu realmente quis dizer – vamos olhar para o que está anterior à função. Porque antes de funções existem histórias, existe cultura, existe ficção”, explicou o arquiteto em uma entrevista para o Curatorial Project.
As cidades utópicas que a ficção aborda não são projetos concretos, servem mais como esquema de imaginação e produção de significados. A ficção é uma reflexão, crítica social, política e espacial, seja intencional ou de filtragem subjetiva e inconsciente. Para urbanistas, isso significa olhar além do discurso acadêmico e teórico para mergulhar em histórias que sirvam de inspiração e consigam capturar o espírito das metrópoles.
A seguir, seis livros de ficção para refletir sobre as cidades:
Não verás país nenhum – Ignácio de Loyola Brandão
A narrativa acontece no Brasil em um futuro indeterminado. O governo é denominado “Esquema” e tem características medíocres. A Amazônia é um deserto e as metrópoles sofrem com o calor intenso e a ausência de árvores. Comida, água e moradia são artigos para poucos. A sociedade está dividida em castas e os mais pobres sobrevivem do lixo acumulado ao redor das cidades.
A sinopse do livro fala por si. No entanto, vale citar aqui, por completo, o prefácio do romance, escrito pelo Jornalista Washington Novaes e intitulado Sufocados pela Realidade:
“Há quem diga que artistas são uma espécie de antena da raça. E são mesmo – por sua capacidade de antever, enxergar muito antes que os simples mortais, graças a sua sensibilidade aguda. E a um dom que os faz ser ouvidos. Kofi Annan, secretário-geral da ONU, passou anos repetindo que, hoje, os problemas centrais da humanidade são mudanças climáticas e padrões insustentáveis de produção e consumo, além da capacidade de reposição da biosfera terrestre. Ficou rouco de tanto falar, poucos o ouviram. A primeira edição deste livro é de 1981. Ele vai agora (2012) para a 27ª edição. As pessoas leem. Sabem que o autor está falando, há um quarto de século, das mesmas coisas que o secretário-geral da ONU viria a tratar muito depois. Mas em 1981 só meia dúzia de cientistas tratavam das ameaças que se desenhavam. E neste livro, daquele ano, volta e meia o leitor tem de dizer a si mesmo “É ficção!”, para não ser engolido e sufocado pelas realidades de hoje e pelas alegorias que povoam as páginas. É um livro captado por antenas de alta sensibilidade. Por isso é tão atual, tão lido – fora o estilo, que são outros quinhentos.”
A Cidade & a Cidade – China Miéville
A crítica destaca Miéville como uma espécie de “pastiche de Raymond Chandler”, referência de romances policiais modernos. No entanto, a trama investigativa da história serve como “alegoria da exclusão étnica e dos modos sórdidos de coexistência de classes sociais distintas em metrópoles modernas”.
“O mundo ficcional de Miéville é conhecido como Bas-Lag, onde convivem a magia, o horror, a alta tecnologia e uma visão urbana extremamente pessimista. Sua obra o conduziu no passado à liderança de um grupo de escritores de um gênero conhecido como “new weird”, ou seja, radicais que rejeitam o escapismo e carregam na ficção distópica. A Cidade & A Cidade é isso: a investigação de um crime cometido numa cidade pós-soviética chamada Beszel que, desafiando as leis da física, abriga no mesmo espaço outra cidade, onde seus moradores, controlados por um governo autoritário, ignoram a existência dos outros” – (Estadão)
A Dança da Morte – Stephen King
A Dança da Morte foi escrito em 1978 pelo prolífico autor americano Stephen King. É um daqueles romances apocalípticos em que um vírus se espalha e 99% da população é dizimada. A partir disso, a terra se torna um lugar árido, privado das instituições formais. A população precisa se organizar de novas formas, e é esse cenário fictício de relação com o ambiente que King explora magistralmente.
O artigo que serviu de inspiração para essa lista destaca como os personagens de The Stand (título original) “rastejam pela infraestrutura urbana que foi aclamada pela praga, incluindo – de maneira memorável – uma cena no Túnel Lincoln, onde um engarrafamento está eternizado em uma densa escuridão”.
Cem anos de solidão – Gabriel Garcia Márquez
No clássico livro de Gabriel Garcia Márquez acompanhamos a trajetória de diferentes gerações da família Buendía. Enquanto a vida e a morte dos personagens se desenrola, a cidade fictícia de Macondo cresce de um pequeno vilarejo para um grande e próspero município.
O auge da cidade acontece no período em que ela se torna a principal produtora de bananas da região, o que faz com que o governo estenda os trilhos do trem até o município, para que o produto possa ser transportado. No entanto, nesse período de prosperidade, uma tempestade de proporções inimagináveis – descrita com a categoria do realismo mágico de Garcia Marquez – varre Macondo do mapa outra vez.
Guerra dos mundos – H.G Wells
A história se passa em uma Londres invadida por poderosos extraterrestres. Neste clássico da ficção científica, o autor cria uma potente analogia e crítica social à Inglaterra e à Europa do século XIX.
“Wells procurava mostrar o que seria da Inglaterra se ela enfrentasse o mesmo tipo de extermínio social, econômico e cultural que impunha a outros povos”, pois agiam como “potências imperialistas que submetiam, colonizavam e sugavam recursos de culturas menos avançadas tecnologicamente”, conta a sinopse.
A cidade e as serras – Eça de Queiroz
A sexta e última obra da lista foi publicada em 1901. Conforme alerta o título, o romance narra o contraste entre a rotina da metrópole e a vida simples do campo.
“A história é dividida em duas partes- a primeira narra a vida de Jacinto em Paris, que diante do avanço da civilização, do progresso, das novas tecnologias, da massificação dos centros urbanos, sente-se com um grande vazio interior. A segunda apresenta o personagem de volta a Tormes, em Portugal, onde ele encontra a verdadeira felicidade. Vivendo no campo, ele descobre a si mesmo, além de promover melhorias nas serras, um lugar atrasado e pobre. Decide, então, trocar a vida de luxo em Paris pela simplicidade. A história ironiza os males da civilização e enaltece os valores da natureza, fazendo uma crítica ao estilo de vida desprovido de autenticidade, que engrandece o progresso urbano e industrial e desvaloriza as raízes e a cultura de um país” – (trecho da sinopse).
Via TheCityFix Brasil.