Os Planos Diretores (PDs) são instrumento básico da política de desenvolvimento de uma cidade. É a legislação que define as diretrizes para a gestão territorial e a expansão dos municípios. Ao longo das últimas décadas, as cidades brasileiras passaram por um rápido processo de urbanização, que não foi acompanhado por um bom processo de planejamento. Cidades que se desenvolvem à revelia de um bom planejamento tornam-se áreas urbanas dispersas, distantes e desconectadas.
Mas o que realmente está em jogo quando falamos em planejamento urbano e Planos Diretores? De que forma as diretrizes estabelecidas na legislação impactam o dia a dia nas cidades?
Planejamento urbano, posto dessa forma, é um conceito abstrato. É possível compreender que o termo designa o ato de planejar, organizar ações e tarefas com a utilização de métodos adequados para atingir determinado objetivo – nesse caso, o desenvolvimento sustentável das cidades. A verdade, contudo, é que na prática essa noção muitas vezes desaparece em meio a aspectos mais palpáveis, como segurança e trânsito, tornando-se intangível para a maioria das pessoas.
Regidos pelo Estatuto da Cidade, os Planos Diretores norteiam o desenvolvimento e o crescimento dos municípios – têm o objetivo de ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. As cidades são como são em virtude das normas e diretrizes estabelecidas nesses documentos, mas a abrangência e o impacto dos PDs ultrapassam o ambiente urbano em si: nossas escolhas cotidianas, o modo como nos deslocamos, os lugares em que nos sentimos seguros ou não, as opções que fazemos e aquelas que deixamos de fazer – tudo é moldado pelo planejamento urbano.
Abaixo, analisamos alguns aspectos corriqueiros do “viver nas cidades” que são influenciados pelas normativas estabelecidas nos PDs.
O dia a dia nas cidades sob a ótica do planejamento urbano
O planejamento afeta a forma como nos deslocamos. E também o tempo que gastamos nesses deslocamentos. A concentração de serviços – como escolas, hospitais, comércio –, oportunidades de trabalho e opções de lazer apenas em bairros centrais faz com que um contingente significativo da população repita o mesmo padrão de deslocamento todos os dias em faixas de horário similares. Além de gerar congestionamentos, essa característica presente em muitas cidades, quando acompanhada de um serviço de transporte coletivo ineficiente, se torna um incentivo ao uso do carro. Os Planos Diretores podem evitar esse tipo de distorção ao estabelecer policentralidades e uma distribuição equilibrada da infraestrutura, ou seja, garantindo que as pessoas possam morar, trabalhar e acessar os bens e serviços dos quais necessitam em diferentes regiões da cidade. Isso pode ser feito, por exemplo, por meio de medidas que incentivem o uso misto do solo:
- Por meio do zoneamento, o PD deve prever áreas com essa diversidade de usos na maior parte da cidade, visando à mescla entre trabalho e moradia e à criação de diferentes centralidades.
- O PD também deve prever mecanismos de regulação que promovam o equilíbrio entre serviços urbanos e a concentração tanto de pessoas quanto de construções em determinadas áreas, atentando para a adequação desse adensamento à capacidade da infraestrutura urbana no entorno.
- Tanto o adensamento adequado quanto a criação de policentralidades são princípios do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS), uma estratégia de planejamento que articula o uso do solo à mobilidade urbana para criar cidades compactas, conectadas e coordenadas. Ao integrar esses princípios nas diretrizes estabelecidas pelo PD, as cidades têm a oportunidade de articular as densidades populacionais conforme os eixos de transporte e zoneamento e, assim, traçar um caminho para o desenvolvimento urbano sustentável. É o que Teresina, no Piauí, busca fazer no processo de revisão de seu PD.
O planejamento afeta o quanto gastamos para nos deslocar na cidade. Se a cidade cresce sem planejamento, o espraiamento urbano gera o que chamamos de cidade 3D – distante, dispersa e desconectada. O valor mais baixo dos terrenos distantes do centro (onde estão concentrados serviços e oportunidades) acaba afastando a população de renda mais baixa, que não tem como arcar com as despesas de um imóvel nas áreas centrais. À medida que as distâncias aumentam, aumentam também os custos de levar a infraestrutura urbana para essas áreas mais distantes – o que pode impactar tanto os gastos com transporte coletivo quanto com combustível e manutenção dos veículos individuais. O Plano Diretor pode endereçar essas questões ao instituir medidas que estimulem o crescimento urbano compacto, induzindo a expansão urbana, quando necessária, para as áreas onde há infraestrutura disponível:
- O PD deve prever áreas de expansão considerando a infraestrutura que será necessária para acompanhar esse crescimento – em especial de transporte coletivo, capaz de potencializar o desenvolvimento sustentável.
- Outra medida é estimular o uso dos vazios urbanos nas áreas onde já há infraestrutura, serviços urbanos e oferta de empregos, aplicando, por exemplo, o PEUC (Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios) e o IPTU progressivo no tempo.
O planejamento afeta a segurança. A diversidade de usos nos bairros diz respeito à oferta de possibilidades: comércio, bares e restaurantes, prédios residenciais, oportunidades de trabalho e demais serviços urbanos. Os bairros que comportam todas essas atividades e funções simultaneamente tem mais vitalidade porque atraem um fluxo constante de pessoas. As pessoas não circulam nesses locais apenas ao chegar e sair de casa ou do trabalho, porque há uma oferta rica de opções. E é essa movimentação constante que torna alguns bairros mais seguros do que outros – quanto mais pessoas ocupando a rua e os espaços da cidade, maior a segurança. (Leia mais sobre essa relação aqui.) Ao estipular medidas que promovam o uso misto, o Plano Diretor contribui, também, para a segurança desses locais.
- Fachadas ativas – prédios cujo piso térreo é de uso comercial e/ou permite contato visual com a calçada e a rua – aumentam a segurança. São os “olhos da rua”, de Jane Jacobs. O PD deve estabelecer regras e incentivos para esse tipo de construção.
- Promover o adensamento populacional no entorno de eixos de transporte contribui para a criação de novas centralidades e, assim, para uma distribuição mais equilibrada da infraestrutura e dos serviços urbanos. O PD deve traçar um plano de infraestrutura direcionado a universalizar a oferta de serviços no perímetro urbano.
- No caso de São Paulo, por exemplo, o PD criou incentivos ao uso misto das propriedades ao não considerar como área construída – e, portanto, não incidentes sobre a cobrança do IPTU – a parcela da propriedade com usos não residenciais que ocupam pelo menos 20% do total construído.
O planejamento afeta a equidade. O acesso a um imóvel depende do valor desse imóvel, do terreno e da área onde está localizado. Esse valor é determinado em função de fatores como a especulação imobiliária. Portanto, a renda das pessoas é a chave que abre ou não oportunidades – acesso – para aqueles que escolhem morar nas cidades. O Estatuto da Cidade oferece uma série de instrumentos que podem ser previstos no Plano Diretor e utilizados pelos gestores públicos para fazer cumprir a função social da propriedade. Ou seja, garantir que a valorização de determinada área seja retornada à população em forma de qualidade de vida e mitigação dos efeitos negativos gerados por grandes empreendimentos imobiliários, que podem levar à gentrificação. O PD pode – e deve – evitar esse tipo de distorção a fim de garantir a equidade e a inclusão da população de baixa renda na área urbana:
- Uma das formas de fazer isso é por meio da oferta de moradia acessível em áreas bem localizadas para pessoas e famílias de baixa renda. O Projeto Junção, em Rio Grande, é um exemplo de empreendimento do Programa Minha Casa, Minha Vida que está sendo construído conforme esse princípio.
O planejamento afeta nossa percepção da cidade e o uso que fazemos dela. A presença de espaços públicos seguros e atrativos proporciona uma vivência ampla e aberta da cidade, à medida em que as pessoas são impelidas a usufruir a rua e espaços de convívio. São áreas diretamente relacionadas à qualidade de vida nas cidades e que, se acessíveis, também fomentam a mobilidade ativa. Em contraste, a construção de shoppings, por exemplo, afasta as pessoas das ruas, do ambiente externo e, assim, da própria cidade. A oferta de um ou de outro influencia o modo como nos relacionamos com o ambiente urbano: na rua, estamos em contato direto com a cidade, aptos a enxergá-la e senti-la; no interior de ambientes fechados, vivemos não a cidade, mas uma construção fechada em si mesma. Dessa forma, o planejamento urbano – que define as áreas de intervenção e investimentos prioritários em uma cidade – frequentemente determina nossas experiências e o uso que fazemos do ambiente urbano.
- Os PDs devem articular a oferta de espaços públicos seguros, acessíveis e atrativos à oferta das demais oportunidades e serviços urbanos já citados a distâncias caminháveis, a fim de estimular o transporte ativo.
- A questão ambiental também está relacionada à oferta de bons espaços públicos. Estabelecer zonas e corredores verdes na cidade é uma forma de criar uma rede de espaços públicos de temperatura mais amena e menores índices de poluição. Isso pode ser feito por meio de diretrizes específicas no PD, que versem sobre a quantidade e o dimensionamento de áreas verdes, ou com a criação de um Plano Diretor de Arborização Urbana, como é o caso de Porto Alegre.
O planejamento afeta a capacidade de prevenção a eventos extremos. As mudanças climáticas são uma realidade. Fenômenos extremos, como tempestades e furacões, devem se tornar cada vez mais frequentes e intensos. Tanto a prevenção quanto a capacidade e agilidade de resposta de uma cidade diante dessas ocorrências depende, antes de tudo, do planejamento urbano. A articulação entre o planejamento ambiental e do uso do solo, a partir da integração de dados climáticos no processo de planejamento, permite prever riscos atuais e futuros contribuindo para evitar ou amenizar os impactos de fenômenos extremos. O planejamento é a diferença entre vidas salvas e perdidas: nos Estados Unidos, apesar dos danos catastróficos, o número de mortes com o Furacão Irma este ano (61) foi drasticamente menor que as deixadas pelo Katrina em 2005 (mais de 1800).
O planejamento urbano é a força vital que determina o ritmo, a dinâmica, o pulsar da cidade. Nossas percepções e muitas das decisões que tomamos no dia a dia são moldadas por dispositivos e normas de planejamento previstas em um documento. Se esse documento é construído de forma participativa e inclui mecanismos que articulam transporte coletivo, distribuição de serviços, diferentes centralidades e densidade populacional, então teremos uma cidade direcionada ao desenvolvimento sustentável.
Os Planos Diretores são obrigatórios para cidades com mais de 20 mil habitantes e devem ser revisados a cada dez anos. Ou seja, para os municípios que desenvolveram seus planos até 2008, o prazo de revisão do documento se encerra no ano que vem. O processo de revisão é uma oportunidade para adequar diretrizes e encaminhar a construção de cidades mais eficientes, mas é importante que não sejam engavetados e vistos uma vez a cada década. Os instrumentos previstos no documento exigem aplicação e gestão ativa do poder público. Ainda, cabe à população monitorar e exigir que as políticas previstas sejam de fato implementadas. Assim como as próprias cidades, o Plano Diretor deve ser uma construção coletiva, e cidades melhores dependem desse trabalho conjunto.
Via TheCityFix Brasil.