Estaria a arquitetura interdisciplinar demais? ou, de que falamos quando não falamos de edifícios?

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O Panteão de Roma. Imagem © Flickr user Michael Vadon licensed under CC BY 2.0

Este artigo foi originalmente publicado pelo Common Edge como "What We Talk About When We Don’t Talk About Buildings."

Uma das últimas atividades das quais participei durante a Bienal de Arquitetura de Chicago em 2017 foi um painel intitulado "Fazer/Escrever/Ensinar Histórias Controversas", realizado no Chicago Cultural Center. O painel, organizado pela Feminist Art and Architecture Collaborative (FAAC), teve como objetivo "abordar questões de classe, raça e gênero, questionando como elas estão ou não incorporadas na produção do ambiente construído".

Todos os participantes, acadêmicos de áreas relacionadas ao ambiente construído, foram convidados a expor um objeto central de sua prática ou método de ensino. Os itens exibidos eram uma pintura, um cais, um campo de refugiados e uma sala de estar.

Talvez três ou quatro décadas atrás, estes artefatos teriam escandalizado um público de arquitetos e estudiosos de arquitetura, que poderiam esperar, que sabe, uma foto ou uma planta do Panteão, ou até mesmo um pedaço de madeira ou tijolo. Provavelmente até uma peça de mobiliário provocasse alguma surpresa ou olhares confusos.

No entanto estamos em 2018 (ou melhor, era 2017), e a arquitetura rompeu com os tradicionais limites da disciplina, pelo menos em teoria. O debate que seguiu à apresentação do painel proposto pela FAAC visava explorar as questões que esses objetos apresentados traziam para a discussão da prática ou do ensino da arquitetura fora dos cânones tradicionais da disciplina. O cânone - esse maçante conjunto de edifícios selecionados por um grupo de homens brancos/europeus fechados em suas salas escuras iluminadas à luz de velas - consiste em uma quantidade de edifícios principalmente de natureza religiosa ou cívica, construídos principalmente antes do século XX; aqueles construídos mais recentemente, embora possuam programas mais abrangentes, provavelmente foram concebidos pelo mesmo tipo de homens que atualmente pertencem ao mundo dos livros de história.

Este desejo de furtar-se deste polvoroso catálogo de "edifícios que você deveria conhecer", porque algum "homem morto disse que são importantes", é bem fundamentado. Estudantes e profissionais realmente interessados e engajados com a arquitetura, estariam muito mais felizes se suas referências fossem menos Paul Rudolph e mais Lina Bo Bardi.

Mas aquilo que mais chamou à atenção no painel da FAAC não foram apenas os objetos situados fora do cânone da arquitetura, mas completamente deslocados do nosso campo disciplinar.

O painel apresentava uma série de insights sobre os perigos da dependência excessiva dos arquétipos da arquitetura para o ensino e pratica da disciplina, a qual, como já comentamos antes, pode transformá-la em apenas uma ferramenta de reprodução dos fenômenos culturais negativos da nossa estrutura societária capitalista (individualismo, auto- exploração, competição, para não falar de sexismo, racismo e discriminação social). Em última instância, as sugestões apresentadas no painel sobre como podemos mudar o rumo das coisas, estavam menos interessadas na expansão ou alteração dos cânones da arquitetura e mais voltadas a livrar-se completamente deles para, então, substituí-los por algo novo e diferente, algo que não tenha nada a ver com a arquitetura.

Já estamos cansados da arquitetura, ou melhor, dos edifícios. Antiquados, pedantes, irrelevantes. Fala-se tanto deles que parece que nossa cabeça vai explodir, não há muito mais a ser revelado dentro deste tema, vamos nos concentrar em uma pintura ou uma sala de estar, uma teoria filosófica ou, literalmente, qualquer outra coisa. Vamos ler A Sociedade do Espetáculo mais uma vez. Arquitetos foram educados para serem os grandes homens do Renascimento (sim, homens), que podem fazer qualquer coisa, que sua profissão abrange todas as esferas da vida e que por isso mesmo, devem ser conscientes de si e de todos os outros. Recentemente, ouvi uma anedota sobre um jovem arquiteto que tentava convencer seu potencial cliente - uma universidade pública de arte - a mudar sua estrutura curricular para um sistema "STEM" (Science, Technology, Engineering and Mathematics). Gostaria de saber se este arquiteto se considera um especialista no assunto só porque leu um artigo sobre a crescente adoção de currículos de base STEM nos Estados Unidos. Talvez ele ainda estivesse entediado com a sua tradicional formação acadêmica, já não aguentava mais ver plantas e mais plantas da Casa Farnsworth e decidiu jogar tudo para o alto. Pelo menos, é exatamente o que me pareceu estar sendo sugerido neste painel da Bienal de Chicago.

Tenho uma contra-proposta. Corro o risco de parecer terrivelmente conservadora, ou antiquada, ou ainda — deus me livre — fora de moda, mas me parece que abandonar todos os cânones da arquitetura é tarefa praticamente impossível. Minha sugestão é transformar as coisas que fazem parte deles. Será sempre necessário ensinar, precisaremos de estudos de caso para dar exemplos, referências para avaliar, esquemas para analisar e ao abandonar tudo isso faria com que o ensino da arquitetura perdesse suas próprias especificidades enquanto disciplina.

O impulso acadêmico por transcender as suas questões disciplinares, para encontrar um novo caminho, mais verdadeiro e honesto com as atuais relações interdisciplinares da arquitetura, abriu novas perspectivas fora do lugar comum, do ambiente acadêmico hermético e suas costumeiras publicações. Neste ponto, falar sobre "a cidade" ou todo universo "urbano", praticamente sobrepôs a discussão simples e corriqueira sobre a arquitetura, ou, mais especificamente, sobre seus edifícios. Segundo dados publicados no site das Nações Unidas ("mais da metade dos habitantes do planeta vive atualmente nas cidades", "até 2030, só em Tóquio teremos mais de 37 milhões de pessoas"), números que apenas servem de base para repensar o futuro da arquitetura.

Uma série artigos publicados pelos mais proeminentes críticos de arquitetura dos Estados Unidos - Christopher Hawthorne do Los Angeles Times, Blair Kamin do Chicago Tribune e Michael Kimmelman do New York Times - parecem um consolo em meio a esta assustadora tendência, não só em relação à vida nas cidades, mas também fora do campo da arquitetura. A última matéria publicada por Kimmelman discorre sobre objetos projetados para melhorar a vida de pessoas com deficiências sensoriais, cognitivas e físicas. Sem sombra de dúvida é um tópico digno de atenção, sobre a maneira como os elementos de uma construção podem responder à essas demandas. Qual a importância da arquitetura à respeito deste tema? Talvez os arquitetos não estejam preocupados em atender à estas demandas. O que mais um crítico de arquitetura poderia fazer à respeito além de publicar um artigo chamando à atenção para um certo problema?

Este é apenas um exemplo. O San Francisco Chronicle não possui um editorial específico para crítica de arquitetura, mas sim um editor "crítico de urbanismo", John King, que cobre temas relacionados à "arquitetura e planejamento urbano". Talvez realmente não valha a pena falar apenas de arquitetura, ainda que há poucos quilômetros de San Francisco uma das maiores empresas de arquitetura do Reino Unido tenha recentemente inaugurado um edifício que mais se parece com o botão de iPhone, ou mesmo que a crise desenfreada da habitação esteja sendo tratada com edifícios feitos de painéis plásticos e que provavelmente não vão durar mais de dez anos. Talvez, se o público pudesse ler mais à respeito de como a construção com materiais baratos está relacionada à custos mais baixos por metro quadrado para as construtoras e, portanto, maiores lucros para estas empresas, a população de San Francisco - ou de qualquer cidade do mundo - poderia compreender melhor como a arquitetura está relacionada, de fato, com a sua vida.

No final deste painel da FAAC durante a Bienal de Chicago, alguém perguntou se nós arquitetos estávamos ficando sozinhos no mundo, se não deveríamos tentar explorar um pouco mais as próprias questões da disciplina da arquitetura, se já não há suficiente material para se debruçar sobre e tirar nossas próprias conclusões. Os responsáveis pelo painel então responderam, quase em uníssono, que apenas estavam tentando expandir o campo da arquitetura introduzindo novas questões.

Esta resposta revela uma tendência à evasão, um impulso para tentar resolver o problema sem no entanto, procurar entender seus verdadeiros motivos. Há muitos arquitetos operando fora dos tradicionais cânones disciplinares e outros tantos edifícios que valem a pena serem analisados profundamente. Além disso, há diferentes formas alternativas de olhar para estes edifícios paradigmáticos. E se avaliássemos La Tourette através apenas de sua materialidade? E se apenas focássemos nos detalhes (ao invés apenas de observar suas simples lajes planas) da Casa Farnsworth? Estas são apenas hipóteses, mas representam abordagens que tendem a expandir a forma como ensinamos e refletimos à respeito da arquitetura: através de um ponto de vista mais abrangente? Ou mais profundo? Ao invés de formarmos arquitetos que somente se preocupam em dizer às universidades como elas devem montar suas grades curriculares, bem, poderíamos educar nossos alunos para aparecer em uma reunião de planejamento urbano perguntando primeiramente qual o material será utilizado na fachada deste ou daquele edifício.

Se nós arquitetos - e por nós eu me refiro àqueles que escrevem, pensam, debatem, ensinam e projetam - desejamos que as pessoas se envolvam com as questões relativas à arquitetura, devemos dar-lhes uma razão para isso, um motivo melhor do que "a arquitetura também está relacionada de alguma maneira com o seu campo de atuação". Pode ser que a arquitetura esteja perdendo seu encanto, ofuscada pelas novas tecnologias ou pela imensidão das mega-cidades contemporâneas. Mas é através dos edifícios em que habitam que as pessoas acabam se incorporando às cidades. Nosso público já faz parte do problema, inserido em meio a este caos, em seu apartamento de três quartos, em seu edifício de escritórios ou em sua casa de praia; Talvez eles se perguntem por que ninguém fala nada sobre qualquer uma dessas questões. Se quisermos que eles se preocupem com a nosso campo disciplinar, devemos parar de procurar relações entre a arquitetura e as outras áreas e focar diretamente no lugar onde eles já se encontram. Pode ser que a maneira de tornar a arquitetura mais acessível não seja incorporá-la em outras disciplinas, mas trazê-a de volta para si mesma, voltada para as pessoas que a habitam.

Marianela D'Aprile é arquiteta, escritora, e educadora na cidade de Chicago. Seu trabalho está focado na intersecção entre arquitetura e política, principalmente na América Latina, oposição, violência e espaços públicos.

Publicado originalmente em 22 de fevereiro de 2018.

Sobre este autor
Cita: D'Aprile, Marianela. "Estaria a arquitetura interdisciplinar demais? ou, de que falamos quando não falamos de edifícios?" [Is Architecture Too Interdisciplinary? Or, Why Architects Need to Start Talking About Architecture] 15 Jan 2021. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/889150/estaria-a-arquitetura-interdisciplinar-demais-ou-de-que-falamos-quando-nao-falamos-de-edificios> ISSN 0719-8906

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