Há quase dois anos, a América do Sul foi atingida por uma crise na saúde pública que afetou centenas de milhares de mulheres. No Brasil, mais de 2.600 crianças nasceram com microcefalia – uma malformação que torna o crânio menor do que o normal – e outras complicações resultantes da infecção pelo vírus Zika. Os brasileiros se acostumaram com o nome pouco familiar da doença, que se rapidamente se espalhou pelo nordeste do país e cruzou as fronteiras com Colômbia e Venezuela. Porém, à medida que a doença se tornou uma preocupação internacional, ficou claro também que se tratava de um problema muito maior para alguns grupos do que para outros.
Como alguém que trabalha com adaptação às mudanças climáticas, fiquei particularmente impressionada pelos aspectos climáticos e sistemáticos da epidemia.
No nordeste do Brasil, a área mais afetada pelo Zika, inundações são habituais e tem se intensificado com as mudanças climáticas. A precariedade ou mesmo a total ausência de serviços de abastecimento de água e saneamento são comuns entre as cidades brasileiras. Em 13 das 27 capitais estaduais, menos de metade da população é atendida pela coleta de esgoto municipal, por exemplo. Muitas famílias, principalmente entre as faixas de renda mais baixa, estocam água por conta própria para passar pelos períodos de seca. Em 2015, temperaturas acima do normal na região nordeste, combinadas à quantidade de água armazenada e às más condições de infraestrutura, criaram um ambiente fértil para o Aedes Aegypti, mosquito que carrega o Zika. Por esse motivo, as famílias mais pobres são as mais impactadas pela epidemia.
O pior dos efeitos, porém, fica com uma parcela ainda menor da população. Como uma mulher branca, de classe média, vivendo em São Paulo, me senti à parte da crise. Apesar da ampla cobertura da mídia, nacional e internacional, e mensagens de alerta vindo de amigos de fora do país, não estava preocupada com minha exposição. Muitas outras mulheres brasileiras, porém, viveram uma experiência diferente.
Seis por centro da população brasileira – quase 12 milhões de pessoas – vivem em assentamentos informais, as favelas. Entre esse contingente, cerca de metade, ou seis milhões de pessoas, são mulheres. E o Zika não se espalha somente através do Aedes Aegypti, mas também via sexo sem proteção. A doença não apresenta sintomas na maior parte dos adultos infectados, mas pode ser transmitida ao bebê ainda no útero e deixar sequelas para toda a vida.
O acesso a planejamento familiar e informações sobre saúde sexual e reprodutiva é limitado no Brasil, principalmente nas favelas. Metade de todas as gravidezes registradas não foram planejadas, 20% são de adolescentes e aborto é ilegal. Ao longo da crise de Zika, mesmo quando a ameaça para as mulheres de baixa renda e seus filhos se tornaram mais claros, esses vetores básicos de risco permaneceram inalterados – o direito ao aborto não foi concedido às mulheres infectadas e o acesso à informação sobre saúde reprodutiva continuou escasso. A resposta inicial do governo foi aconselhar as mulheres a evitar relações sexuais e adiar a gravidez. O ônus da prevenção do Zika foi colocado apenas sobre os ombros das pessoas mais afetadas.
A desigualdade de gênero na crise foi enfatizada pela professora de direito da Universidade de Brasília, Debora Diniz. “Perdido em meio ao pânico do Zika está um fato importante: a epidemia reflete a inequidade da sociedade brasileira”, escreveu em um editorial do New York Times. “A doença está concentrada entre mulheres jovens, pobres, negras, das quais a maioria vive nas regiões menos desenvolvidas do país”.
Faça outra pergunta
Um relatório recente do Human Rights Watch, “Neglected and Unprotected” (em tradução livre, “Negligenciados e Desprotegidos”), analisa os impactos de longo prazo da epidemia do Zika nas mulheres de baixa renda, com implicações que vão muito além das mudanças climáticas e desigualdade de gênero. O documento compila reúne recomendações técnicas para crises de saúde pública; acesso a informações sobre saúde; educação e conscientização; apoio à criança; direito à agua potável e saneamento; cuidados para a saúde sexual e reprodutiva; descriminalização do aborto; políticas de adaptação às mudanças climáticas e de desenvolvimento urbano.
Observando as diferentes e complexas formas com que essa crise afetou alguns grupos mais do que outros, desenvolvi um senso de urgência – de que essa epidemia nos proporcionou uma oportunidade de entender melhor como as mudanças no clima podem afetar as cidades também a partir de uma abordagem sistêmica e intersetorial. Como as cidades podem garantir que seus habitantes mais vulneráveis estejam protegidos e preparados paras as mudanças climáticas? Mais importante: como as cidades podem responder aos impactos que variam conforme diferentes grupos de pessoas?
O termo “interseccionalidade” foi cunhado pela estudiosa da teoria crítica da raça Kimberlé Crenshaw e é definido como “a interação entre gênero, raça e outras categorias de diferença na vida, práticas sociais, arranjos institucionais e ideologias culturais dos indivíduos em determinada sociedade, bem como os resultados dessas interseções em termos de poder”. No campo de pesquisa em gerenciamento de riscos de desastres, por exemplo a interseccionalidade ajudou a desenvolver o entendimento de que, apesar de a vulnerabilidade a eventos extremos ser uma questão de gênero, “também é moldada pelas habilidades, tipos familiares, grupos culturais/raciais e classe”.
Adotar a abordagem interseccional pode ajudar a revelar informações sobre determinados grupos de pessoas úteis para o planejamento de adaptação às mudanças climáticas e a eventos extremos. A também professora de direito Mari J. Matsuda utiliza o método chamado “faça outra que pergunta”, que poderia ser aplicado por planejadores urbanos também.
“Quando vejo algo que parece racista, eu pergunto ‘onde está o patriarcado nisso?’”, ela diz. “Quando vejo algo que parece sexista, eu pergunto ‘onde está a heteronormatividade nisso?’, quando vejo algo que parece homofóbico, pergunto ‘onde estão os interesses de classe?’”.
O fim do Zika não começa com a erradicação de um mosquito: requer planejamento urbano através das lentes da interseccionalidade.
Com uma melhor compreensão da realidade que enfrentam as mulheres jovens e negras, planejadores uranos poderiam ter identificado a necessidade de reduzir os riscos de proliferação do mosquito e desenvolvido estruturas de longo prazo para oferecer apoio às famílias afetadas pela doença.
O Zika nos ensina que as soluções para os problemas relacionados às mudanças climáticas virão a partir de melhores processos de governança, planejamento e esforços para aumentar a participação social e a inclusão. Gestões municipais e planejadores precisam internalizar e promover a conscientização a respeito de estruturas interseccionais para identificar necessidades e vulnerabilidades que não são imediatamente óbvias e desenvolver planos de acordo com esse diagnóstico. À medida que as cidades se tornarem capazes de planejar e gerenciar os efeitos das mudanças climáticas, esses processos devem ser responsáveis por diferentes experiências, recursos e escalas de agência e poder – ou estarão em risco as vidas das pessoas mais afetadas.
*Katerina Elias-Trostmann é Analista de Pesquisa Sênior no WRI Brasil e vive em São Paulo. Ela trabalha diretamente com práticas de resiliência climática.