Arquiteto português com origem em família tradicional aristocrata, Fernando Távora teve sua formação marcada por uma grande transformação discursiva ao entrar em contato com a produção moderna. Ele mesmo dizia que “entrou na faculdade apaixonado pela Vênus de Milo e saiu apaixonado por Picasso”, o que reflete a grande genialidade de seu intelecto ao reconhecer nas iniciativas modernas um dado com o qual deveria ser estabelecido diálogo. Em 1945 escreve pela primeira vez sobre a “terceira via” para a arquitetura portuguesa, contribuição que teve seus reflexos tanto no âmbito didático, dentro de sua experiência muito atrelada à Escola do Porto, quanto prática, ao ser desdobrada em alguns de seus projetos de forma direta e marcante.
Para falar sobre esta figura cultural icônica de Portugal, conversamos com o também arquiteto da Universidade do Porto, Jorge Figueira. Em passagem pelo Brasil neste ano, Jorge tem feito uma série de palestras e conferências sobre arquitetura portuguesa, sobretudo o que se refere à Escola do Porto e Álvaro Siza. Docente na Universidade de Coimbra e atualmente professor convidado na disciplina de projeto do quarto ano da Escola da Cidade em São Paulo, Jorge Figueira atua tanto no campo da prática e docência de arquitetura. Teve aulas com Fernando Távora no período de graduação e aproximou-se dessa figura anos depois, em Coimbra.
ArchDaily Brasil: Muitas vezes, nas buscas e leituras sobre a produção do arquiteto Fernando Távora, encontra-se o termo “regionalismo crítico”, cunhado por Alexander Tzonis e Liane Lefaivre e emprestado por Kenneth Frampton nos escritos sobre a busca de uma “arquitetura de resistência” dentro de uma reflexão mais ampla sobre a produção da arquitetura moderna. Você acha que trata-se de um vocabulário adequado para contemplar a obra e o legado de Fernando Távora para a arquitetura portuguesa?
Jorge Figueira: Bom, o termo “regionalismo crítico” é usado originalmente pelo Kenneth Frampton a propósito do Álvaro Siza, no contexto do início da década de 1980 em um artigo em que ele ensaia uma resposta aos avanços do pós-modernismo, chamando a atenção para um conjunto de arquitetos contemporâneos que fazem uma arquitetura que se move por valores que considera mais válidos e que são a materialidade, o valor tátil da arquitetura, o uso de materiais locais. Como não são figuras propriamente conservadoras, ele os chama de “regionalistas críticos”. Essa expressão nunca entrou exatamente bem no contexto português, porque os portugueses gostam de se imaginar como universais e internacionais, e não propriamente como regionais, mesmo que “críticos”. A verdade é que essa foi uma maneira, um pretexto, uma narrativa, um modo, um atalho, uma password, que permitiu que o Siza entrasse na discussão no mundo anglo-saxônico. Ora, o Távora é de outra geração, trabalha inicialmente na perspectiva que ele designou como sendo a da “terceira via”, ou seja, nem exatamente moderno, nem exatamente tradicionalista, qualquer coisa intermediária. Talvez seja possível dizer que isso é um pouco a origem de uma ideia de “regionalismo crítico”, mas na verdade é outro conceito, é outra geração, é um tempo anterior. Se eu tenho dificuldade em designar o Siza como “regionalista crítico”, pelas razões que mencionei, tenho ainda mais dificuldade em designar o Távora como “regionalista crítico”.
ADBR: Em que medida os dados culturais portugueses informaram a arquitetura produzida por Fernando Távora? Como isso se insere no discurso da “terceira via para a arquitetura” teorizada por ele já em 1945?
JF: Sabe, é uma questão por um lado construtiva e, por outro lado, antropológica. Eu não penso que se possa confundir “regionalismo crítico” com a “terceira via” por que a teoria da “terceira via” é escrita pelo Távora pela primeira vez em 1945 e o “regionalismo crítico” na arquitetura em 1980. O que o Távora faz em relação à tradição é, por um lado, ir buscar figurações, como por exemplo o telhado, que são claramente entendidas como conservadoras, ou seja, como fazendo parte de um mundo não moderno e alguns elementos construtivos, como os beirais, embora estilizados, alguns aspectos da construção vernacular, embora estetizados.
Mas a tradição está presente também quando, no Mercado da Vila da Feira, faz um edifício moderno que tem um centro, que tem um pátio central. Ali está remetendo para a tradição no sentido antropológico, isto é: os homens gostam de se encontrar em um ponto central, desde sempre, desde as praças romanas, desde a ágora. E portanto a tradição aparece também por uma via antropológica. Num programa público como é um mercado ele vai à procura de um espaço que as pessoas possam reconhecer e com que se possam identificar, apelando a um valor antropológico, antigo, que coexiste com a modernidade dos pavilhões em concreto.
ADBR: Quais os caminhos que essa teorização sinaliza e como isso influencia a Escola do Porto naquele momento, já que trata-se de um espaço que pretendia pensar também a cultura de uma forma mais ampla, para além da arquitetura? Isso cria um legado em termos de prática e docência?
JF: A proposta da “terceira via” é fundamental porque, até então, e vamos supor que esse “então” são os anos 1950, quando a “terceira via”, depois de teorizada nos anos 1940, começa a ser colocada em prática, havia uma espécie de batalha cultural sem fim no seio da arquitetura portuguesa. Entre aqueles que tinham militantemente uma posição favorável à arquitetura moderna e uma perspectiva de esquerda, e aqueles que estavam ligados ao regime, de algum modo, ou tinham uma visão mais conservadora, e eram relutantes em relação à modernidade.
Essa batalha cultural parecia insolúvel e a “terceira via” consegue pacificar, aparentemente, e transformar aquilo que parecia adversário em algo com um sentido comum, num gesto inclusivo. Além disso, foi importante depois no contexto do “Inquérito à arquitetura popular”, esta ideia de que os arquitetos modernos não precisariam de pensar exclusivamente em termos do uso do concreto, de grandes vãos, de janelas compridas. Os arquitetos modernos portugueses quando visitam as construções arcaicas, vernaculares, do “Inquérito”, vêem que há ali uma racionalidade, um modo pragmático, com que se identificam.
E, portanto, de repente, o mundo antigo, o mundo arcaico, é projectado na modernidade, e o arquiteto deixa de estar em conflito consigo próprio. O arquiteto português deixa de estar em conflito com suas raízes, pelo contrário, pode abraçá-las, e é isso que o Távora vai significar dentro da Escola do Porto, desde esses anos 1950: a ideia que o arquiteto pode ser moderno e, no entanto, ter um apego às coisas da terra, da sua casa, da sua história, da história de Portugal. O mundo moderno e o antigo não são necessariamente conflituosos, ou melhor, têm os seus conflitos, mas é possível dialogar com eles, é possível estar dentro deles e não fora. Desse ponto de vista, a lição do Távora é muito importante porque garante que haja sempre um chapéu, ou um chão, que permitem que o passado, o arcaico e o novo, possam ser usados como matéria e conviver sem rupturas. Távora conduz a arquitetura do Porto e a arquitetura portuguesa, de certa forma, a um mundo onde as rupturas não são necessárias, porque há uma confluência e há uma organicidade naquilo que é o objeto com o qual o arquiteto deve trabalhar.
ADBR: Você acredita que a terceira via é um caminho que pretende “apaziguar” o terreno de debate entre um caminho tradicionalista e uma intenção moderna mais radical? Essa estratégia teria alguma relação com a origem aristocrática da família de Távora ou com a sua formação mais conservadora?
JF: Távora é um homem convictamente conservador, em termos de tradição familiar, digamos genericamente que é um homem que vem da direita, uma direita avessa à modernidade e que é dominante naquele momento em Portugal, obviamente. Mas como homem brilhante que é, quando começa a ter contato com as grandes figuras da arte moderna e da arquitetura moderna, na Escola de Belas Artes, não tem como não perceber a vitalidade daquela cultura. E procura dialogar, abraçá-la, tentar criar um sentido. É preciso termos presente que na época, Ernesto Rogers, director da Casabella Continuità, tinha proposto a teoria da “continuidade” em arquitectura, a ideia de que a arquitetura moderna não era uma nova árvore, ou uma nova planta, mas um ramo de uma antiga árvore civilizacional, a história da arquitetura. O que significa uma desaceleração do lado heróico da arquitetura moderna, que passa a ser vista, a partir de Rogers, como fazendo parte da história, como outros movimentos e estilos faziam.
Isso permite ter uma relação menos severa e menos tensa com a arquitetura moderna, e colocar tudo em diálogo, em relação, em perspetiva. O que é interessante em três das obras de Távora dos anos 1950, a Casa de Ofir, o Mercado da Vila da Feira e o Pavilhão de Tênis, é que não é só uma teoria. Olhamos para os edifícios e observamos que de fato há elementos modernos e vernaculares, sem ser uma mistura. Porque ele não queria fazer uma mistura, uma colagem. Queria criar uma espécie de momento de verdade, apaziguador.
Agora, é preciso lembrar que durante os anos 1960, a explosão turística no Algarve adopta uma “terceira via” genérica, que se banaliza muito enquanto modelo para a arquitectura. Quando Siza e a parte mais politizada da Escola do Porto se dá conta disso, recusa esta via, e vai endurecer, retomando um racionalismo mais severo. A “terceira via” é teorizada em 1945, posta em prática nos anos 1950 e a sua crítica é feita no final dos anos 1960. Nesse momento ninguém quer ouvir falar da “terceira via” e muito menos durante a Revolução de 1974.
ADBR: Você poderia comentar em que medida a produção do arquiteto Álvaro Siza representa uma continuidade ou uma ruptura em relação às intenções de Távora, dado que os dois dividiram parte de suas experiências profissionais no momento em que Siza trabalhou no escritório de Távora?
JF: O Siza colabora com o Távora inicialmente na Casa de Chá, que lhe concede o projeto ao ver a forma como o Siza, ainda muito jovem, se apropria do trabalho. O Távora percebeu logo que aquele não era um colaborador comum. Eles sempre mantiveram uma relação de amizade, o Távora tinha uma grande admiração pelo Siza, quase obsessiva. Naturalmente houve alguns momentos difíceis. Quando Siza em meados dos anos 1960 abandona a construção de telhados e começa a deixar o concreto aparente, faz uma ruptura com a “terceira via” de Távora. As coisas estavam evoluindo com uma velocidade enorme, a Revolução portuguesa aproximava-se e o Távora, nesse momento, é uma figura mais secundária. Há vários grupos politizados dentro da Escola do Porto que percebem que a arquitetura, para fazer o efeito da revolução, não pode ser apaziguadora. O Távora percebeu que havia ali uma urgência, também de uma nova geração que estava surgindo, e que o tempo da “terceira via” tinha, de alguma forma, passado.
O Távora regressará nos anos 1980/90 como o arquiteto mais preparado para pensar e projetar a intervenção no patrimônio, que passará a ser um tema central para os arquitetos. Ele volta a entrar na história do Porto e da arquitetura portuguesa porque a reabilitação patrimonial, a partir dessa época, passa a ser uma pauta central e o modo integrador como sempre pensou a arquitetura, com todas as sabedorias acumuladas, da história à arquitetura moderna, significa que está muito preparado. Távora ganha nesse momento uma segunda vida de relevância acadêmica e profissional.
ADBR: O quão vivo está Távora na arquitetura portuguesa contemporânea? Em que medida ele criou uma escola? As questões propostas por ele já estão superadas?
JF: A questão da “terceira via” foi muito importante na época, mas está superada, naturalmente. Não há hoje necessidade desse debate porque não só não existe uma imposição de fazer arquitectura tradicionalmente portuguesa como também a questão de um urgente modernismo corbusiano, dos “cinco pontos”, desapareceu. Essa questão foi incrivelmente resolvida pelas três obras magníficas de Távora que mencionei.
O que permanece vital, especificamente no contexto das intervenções de reforma patrimonial, é uma certa naturalidade com que os arquitetos portugueses trabalham em estruturas do século XVIII, XIX, XX, ou até anteriores, procurando aquilo que melhor serve a história dos edifícios, tentando fazer-lhes justiça. Essa lição, que permite intervir num edifício de alto valor ptarimonial, demolindo o que se foi constituindo como espúrio, e reformar o que se considera válido, foi nos deixada por Távora, por exemplo, no Convento da Costa, em Guimarães. O que não é uma metodologia indiscutível mas impôs-se como muito pertinente. No Convento da Costa, Távora lê a história e faz um conjunto de escolhas projetuais que vão valorizar isto e desvalorizar aquilo, em nome da arquitectura do edifício, sem convocar a necessidade de uma “especialização” em patrimônio, nem sucumbir perante exigências históricas ou arqueológicas.
Essa naturalidade, esse “à-vontade” com a história dos edifícios é uma lição do Távora, que tem sua origem profunda na “terceira via”, mas que é uma forma que ele nos mostrou de não termos medo do patrimônio… o que não significa que não tenhamos respeito pelo patrimônio. Isso eu acho que é um legado de Távora que está sendo testado nas várias intervenções de reforma patrimonial que se estão fazendo ou fizeram em Portugal nos últimos 20 anos. Mais plásticas, minimalistas, “autênticas”, reverentes, fantasiosas, é sempre preciso regressar a Távora para encontrarmos uma medida para as avaliar.