Percorrer a sequência de croquis do projeto para o Consulado dos Estados Unidos em São Paulo, feito por Mies van der Rohe entre 1957 e 1962, e encontrar em uma das pranchas o comentário This building will balance! (1) é uma experiência representativa do que foi a influência do arquiteto alemão naturalizado nos Estados Unidos para a produção brasileira, sobretudo a paulista.
Apesar de nunca ter sido construído, o projeto revela uma série de aspectos intrínsecos à prática e ao discurso daquele arquiteto moderno ao sintetizar várias referências de outras obras já construídas por ele e colocar em pauta, com isso, uma questão central do debate moderno, a não-necessidade de formular edifícios enquanto novidade; pelo contrário, fazer da prática projetual uma síntese de mecanismos e artifícios que articulam, em um edifício, respostas formais às demandas internas do programa. A originalidade enquanto objetivo dava lugar, naquele momento, às discussões de uma forma e visualidade que representassem a função, a estrutura e a técnica, em um raciocínio de ordem prática e construtiva.
O caso do desenho do Consulado dos Estados Unidos traz alguns elementos centrais para compreender o que se passava enquanto debate na perspectiva miesiana: a visão “industrializável”(2) - implementada na proposta a partir de uma trama modular à qual estão submetidos a estrutura e demais elementos construtivos -, a simetria, a planta livre, a ortogonalidade e a presença de uma expressividade material coerente com o programa e demandas internas do edifício.
Todos esses temas tem amplo respaldo no debate brasileiro estabelecido a partir de 1957, momento em que os fóruns dos Escontros Nacionais de Arquitetos, Professores e Estudantes de Arquitetura pensavam um currículo de formação básica para a profissão. Em São Paulo, este momento resultou no enaltecimento da técnica, encabeçado por Vilanova Artigas que também estava à frente da reorganização curricular da FAU-USP desde o início da década de 1950.
No Brasil, a revisão de um conceito de projeto que concentrasse seus esforços da prancheta ao canteiro, entendendo o desenho como articulador da arquitetura enquanto ferramenta de transformação social, vinculada aos saberes técnicos engajados em um projeto de esquerda e localizado em um contexto político no qual a arquitetura era um tema ampla e publicamente debatido (graças à perspectiva da construção de Brasília), tem, nesse momento, referência direta à máxima arquitetura como estrutura, que tem sua representação mais direta na obra de Mies van der Rohe (3), ainda que guardadas as particularidades de um ambiente político e produtivo diferente. A realidade norteamericana da arquitetura naquele momento não se referenciava no debate político como era o caso paulista, e mesmo enquanto desempenhou a função de diretor da Bauhaus em 1930, as ideias de industrialização dos processos de obra não estavam ligados a esse tipo de discussão.
Embora haja essa diferença, é possível identificar aspectos da produção nacional que são análogos formal, material e construtivamente à obra do mestre moderno. Já em 1924 - quando no Brasil o que se entende enquanto iniciativa moderna ainda não tinha grande expressão na arquitetura e ocupava um protagonismo maior no âmbito das artes visuais - Mies expressava sua preocupação com a industria da construção e a necessidade de recorrer a novos materiais para empreender uma renovação técnica para o campo:
Houve muitas tentativas de encontrar novos métodos de construção que sucederam apenas com a industrialização [...] O problema perante nós não é a racionalização dos métodos presentes, mas preferir uma revolução em toda a natureza da indústria da construção. A natureza dos processos construtivos não mudara enquanto empregarmos os mesmos materiais, por causa da necessidade de mão-de-obra manufaturada. A industrialização dos processos de construção é uma questão de materiais. A nossa primeira consideração, portanto, deve ser encontrar um novo material construtivo. Nossos técnicos só terão sucesso em inventar um material se este puder ser industrialmente manufaturado e processado, que seja à prova de intempéries e som e passível de isolamento. Deverá ser um material leve que não só permite mas exige produção industrial.
Mies van der Rohe na Revista G publicada em 1924
Esse tipo de preocupação enquanto metodologia para as propostas terá grande respaldo no que se produziu no Brasil anos mais tarde. Alguns projetos notáveis feitos em São Paulo trazem à tona a exploração material e uma linguagem que se aproxima e estabelece paralelos com a obra de Mies van der Rohe. Exemplo disso é o projeto realizado em 1951 por Lina Bo Bardi, a Casa de Vidro, primeira obra construída da arquiteta de origem italiana naturalizada brasileira, e que foi uma figura central para o modernismo nacional. O projeto localizado na zona sul de São Paulo guarda características inevitavelmente relacionáveis com o projeto do mesmo ano de Mies em Illinois, a Casa Farnsworth. Essa última é considerada uma das grandes obras do arquiteto, uma vez que contempla uma série de preceitos de sua prática em uma síntese das ideias de fluidez, elegância, leveza, e, evidentemente, os grandes panos de vidro, ou curtain walls.
Ainda que em uma versão abrasileirada (4) , o projeto de Lina Bo Bardi apresenta o envoltório de vidro como característica central do projeto. Para além da relação de materialidade que a obra da arquiteta apresenta em relação à referência miesiana, em termos estruturais a Casa de Vidro remonta a outro projeto do mestre alemão. A Villa Tugendhat de 1930 é sustenta por esbeltos pilares metálicos, que conferem ao espaço uma grande amplitude e leveza, o que ocorre de forma análoga na Casa de Vidro, onde também estão presentes elementos estruturais da mesma ordem.
Ainda se tratando de Mies e Lina, outra dupla de projetos que podem ser pensados como referência e releitura do ponto de vista estrutural é Crown Hall (1956) e MASP (1968), respectivamente. Apesar de situarem os espaços principais de seus projetos de formas distintas, os dois edifícios foram pensados a partir de uma estrutura de pórticos bastante semelhantes em termos de desenho.
As curtain walls de Mies também influenciaram outros arquitetos em São Paulo. Em 1961, Roger Zmekohl projetava o edifício Wilton Paes de Almeida - cenário do recente desastre que terminou com seu desabamento no Largo do Paissandú, região central de São Paulo - com notável atenção para Mies e sua vasta experiência com arranha-céus. Com seu alto gabarito de mais de 20 andares e uma fachada contínua de vidro, assemelha-se muito a projetos de Mies, como o Edifício Seagram em Nova Iorque, de 1954.
Todo esse panorama indica que, a partir de diversos aspectos, a obra de Mies van der Rohe desempenhou um papel central no desenvolvimento da arquitetura mundial e que tal relevância se expressa de forma concreta em iniciativas construídas na cidade de São Paulo. Destacar o legado da prática do arquiteto também contribui para compreensão de que, dentro de uma lógica discursiva moderna, os elementos de destaque da sua obra foram assimilados e ressignificados de maneira diversa, contribuindo de forma ampla para a formação de um conjunto de obras reconhecidamente paulistanas.
Notas:
(1): Não é possível traduzir com o mesmo sentido a frase do comentário encontrado nas pranchas do arquiteto. "This building will balance" em inglês refere-se à percepção de Mies van der Rohe e sua satisfação ao concluir que balanço que a estrutura do edifício suportaria não traria qualquer instabilidade ao projeto.
(2): SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 1998.
(3): idem
(4): Ferraz, M.C. (1999) Casa de Vidro/The Glass House. Lisboa: Editora Blau Lda.
Referência: Vitruvius