A noção de autenticidade é indissociável das discussões teóricas e das ações realizadas na área de Conservação e Restauro, e guarda relação direta com a percepção dos valores associados a determinado bem cultural – sejam eles de natureza tangível ou intangível. A autenticidade se constitui como um princípio basilar e estruturante da ética que sustenta e alinha critérios, conceitos e justificativas pertinentes ao universo da preservação. Como todo processo de construção cultural, a autenticidade não pode ser compreendida ou definida em termos absolutos e preestabelecidos, e seu reconhecimento está intrinsecamente ligado ao contexto a que se refere – a um determinado momento e a um determinado lugar.
"Autenticidade – definida como sendo verdadeiro em substância, como de fato proveniente da fonte ou autoria reputada – é reconhecida como sendo a qualidade acima de todas, provavelmente a mais essencial, na identificação de sítios de grande significado cultural. Sem ela, seus valores como documentos históricos, como obras de arte excepcionais e como símbolos nacionais estão seriamente comprometidos." (Shorter Oxford English Dictionary apud BELL, 1997, p. 27-28).
Da definição do dicionário se extrai que o significado de “autenticidade” guarda estreita relação com a noção de “verdade”, referindo-se a algo genuíno e legítimo a demandar, portanto, uma verificação. Para nos aproximarmos do conceito, no universo das ações relativas ao patrimônio cultural, é válido pensar em níveis de complexidade, sendo tanto mais difícil aferir a autenticidade de um bem cultural, quanto mais densa for a rede de relações a partir das quais se constrói o juízo de valor. Como ilustração, podemos imaginar o caso de uma obra de arte bem conservada que, em momento algum, tenha necessitado de intervenções reparadoras. Neste caso, a autenticidade pode se referir, exclusivamente, à confirmação de uma suposta autoria, conectada ao seu momento de origem. Quando, no entanto, passamos para um sistema complexo – como um sítio histórico ou uma cidade inteira –, torna-se mais difícil reconhecê-la.
"Autenticidade não é um conceito fácil. Cada parte do desenvolvimento de um sítio é autêntica por si mesma, como reflexo de seu tempo (embora não necessariamente relativa ao momento de origem da edificação), bem como é uma autêntica parte do todo – o sítio tal como se configura hoje, um artefato humano antigo com, talvez, séculos de humanidade impressos em seus aspectos materiais." (BELL, 1997, p. 28).
Do ponto de vista das normativas referendadas pela literatura da conservação, a primeira citação do termo “autenticidade” é encontrada no preâmbulo da Carta de Veneza – documento resultante do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, redigido em 1964:
"Portadoras de mensagem espiritual do passado, as obras monumentais de cada povo perduram no presente como o testemunho vivo de suas tradições seculares. A humanidade, cada vez mais consciente da unidade dos valores humanos, as considera um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade." (Carta de Veneza, Preâmbulo. Grifo nosso).
A redação, tal como se apresenta, não torna explícita sua definição, nem esclarece o sentido da aplicação da noção de autenticidade no campo disciplinar da Conservação e do Restauro. Segundo Kühl (2010, p. 306), seu significado deve ser entendido como “respeito pela configuração da obra e pela sua materialidade, como transformadas ao longo do tempo”. É o que se conclui da leitura deste documento, em especial as recomendações para que as restaurações se pautem pelo respeito aos materiais originais e aos documentos autênticos, que terminem onde começa a hipótese e que ostentem, nos acréscimos considerados indispensáveis, as marcas de seu tempo.
"Aqui está enunciado o princípio da distinguibilidade da ação contemporânea: ou seja, qualquer nova inserção deverá colocar‑se como novo estrato, que não induza o observador ao engano de confundi‑la com a obra como estratificada antes da intervenção, não propondo o tempo como reversível e devendo documentar a si mesma. Isso já aparecia de forma explícita nas formulações de Boito, em que acréscimos e renovações, se necessários, deveriam ter caráter diverso do original, mas de modo a não destoar do conjunto; completamentos de partes deterioradas ou faltantes deveriam, mesmo seguindo a forma primitiva, ser de material diverso ou ter incisa a data de sua restauração ou, ainda, no caso das restaurações arqueológicas, ter formas simplificadas." (KÜHL, 2010, p. 312).
A década seguinte assistiria à organização, pela Unesco, da Convenção do Patrimônio Mundial (1972) e à estruturação de um comitê responsável por elaborar os critérios para a inscrição dos bens na lista do Patrimônio Mundial. O foco nas “obras monumentais” persistia, ficando nítido, com a publicação do Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention, em 1977 (cujos princípios se dividiam em duas grandes categorias – cultural e natural), que a noção de “valor universal excepcional” estava profundamente vinculada aos aspectos materiais. Naquele momento, para que fossem inscritos, os “sítios culturais” deveriam atender ao “teste de autenticidade”:
"No início, o teste de autenticidade, como condição para inscrição, era interpretado a partir de uma perspectiva europeia, particularmente no que se referia aos monumentos arquitetônicos. Isto, em essência, significava que os bens deveriam possuir autenticidade do ponto de vista material ou físico. A definição apresentada pelo Operational Guidelines, de 1977, definia autenticidade em termos de desenho, material, execução e ambientação. No entanto, um dos primeiros sítios propostos para inscrição foi o centro histórico de Varsóvia (Polônia), o qual havia sido, essencialmente, reduzido a escombros durante a Segunda Guerra Mundial, tendo que ser, subsequentemente, reconstruído pelo país. Por três anos o ICOMOS e o comitê discutiram se um sítio reconstruído poderia ou não ser considerado autêntico. Por fim, o comitê inscreveu Varsóvia na Lista do Patrimônio Mundial como exceção, com a observação de que nenhum outro sítio reconstruído seria considerado para inscrição." (CAMERON, 2009, p. 130-131).
As críticas a uma visão eminentemente ocidental e os questionamentos de que as diversas culturas, regiões e manifestações significativas da civilização humana não se faziam representar, de modo equilibrado, na Lista do Patrimônio Mundial, tomaram corpo a partir da década de 1980. Em 1992, entre os sinais das mudanças que estariam por vir, podemos citar a inclusão da categoria de paisagem cultural na Lista do Patrimônio Mundial – ampliando os limites de interpretação do “valor universal excepcional” –, e a adesão do Japão à Convenção – estimulando as reflexões sobre a vinculação da autenticidade a aspectos predominantemente materiais.
O marco definitivo se daria com o encontro organizado pela Unesco, Iccrom e Icomos, e realizado em Nara, no Japão, em 1994. A conferência voltou-se à discussão sobre a noção de autenticidade e sua aplicação nas práticas de conservação frente à diversidade do patrimônio cultural mundial. O documento concluiu sobre a impossibilidade de se basear os julgamentos de valor e autenticidade em critérios fixos, sendo fundamental considerá-los a partir dos contextos culturais específicos aos quais se referem (artigo 13). Ao evidenciar a relação direta entre autenticidade e credibilidade das fontes de informação, recomendou que as pesquisas e levantamentos incluíssem aspectos de “forma e desenho, materiais e substância, uso e função, tradições e técnicas, localização e espaço, espírito e sentimento, e outros fatores internos e externos” (artigo 15). A ênfase na credibilidade das fontes tradicionais de informação tanto quanto nos aspectos associativos e imateriais dos sítios históricos foi, enfim, incorporada à lista de atributos relativos à autenticidade que, na revisão do Operational Guidelines em 2005, passou a incluir: forma, essência, uso, função, tradições, técnicas, sistemas de gestão, lugares, linguagem, formas do patrimônio imaterial, espírito e sentimentos, entre outros.
Como síntese, se apresenta a reflexão de Jokilehto que define autenticidade, no âmbito da conservação do patrimônio cultural, como sendo “uma medida da integralidade da verdade acerca da unidade interna inerente ao processo criativo e à realização física da obra, e os efeitos de sua passagem através do tempo” (1996, p. 71).
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Este artigo inaugura a série "Dicionário Iphan", realizado em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em que publicaremos semanalmente a definição de um verbete relacionado ao patrimônio cultural brasileiro.
Cristiane Souza Gonçalves Arquiteta e urbanista, formada pela UFES (1996), especialista em Patrimônio Arquitetônico: Teoria e Projeto pela PUC de Campinas, mestre (2004) e doutora (2010) em Teoria e História da Arquitetura (FAU-USP). Atuou como arquiteta coordenadora de projetos na Kruchin arquitetura|SP, de 1999 a 2015, e como pesquisador doutor junto ao Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP|IPHAN), em 2010. Participou da coordenação, docência e tutoria dos cursos de Especialização Lato sensu e de Aperfeiçoamento Online Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro, da Universidade Cruzeiro do Sul, de 2002 a 2010. É membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS Brasil e, atualmente, coordena o núcleo de arquitetura e restauro do Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora, Minas Gerais.
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Como citar: GONÇALVES, Cristiane Souza. Autenticidade. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4