O chamado “direito de protocolo” é hoje um equívoco jurídico, pois permite que o empreendedor imobiliário privado escolha a legislação aplicável a seu empreendimento. O mecanismo foi estabelecido nos anos 1970, em contexto anterior a avanços democráticos, especialmente àqueles relacionados à função social da propriedade e a direitos como ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à moradia e ao patrimônio cultural. Hoje, a manutenção desse “direito” de protocolo afasta no tempo a concretização das mudanças previstas nas novas legislações urbanas, corrigindo as disfunções que vivenciamos no dia a dia da cidade, como as enchentes.
As novas regras, além de ampliarem o número de zonas de proteção ambiental, estipulam que todos os terrenos com mais de 500 m² são obrigados a fazer um sistema de drenagem de água específico em função de sua localização (áreas com maior incidência de inundações devem ter reservatórios maiores). Além disso, existem incentivos para manutenção das áreas naturais permeáveis e da vegetação já existente, aumentando a permeabilidade do solo urbano. Na legislação antiga, as regras eram as mesmas para todos os terrenos. O resultado é que a maioria dos empreendimentos não precisava investir em drenagem. O caos desse modelo antigo nós vemos nos jornais: inundações e mortes.
A nova legislação urbana ‒ Plano Diretor e Lei de Zoneamento, de 2014 e 2016 ‒, extensamente discutida com a sociedade (setor imobiliário incluso), também aumenta o número de zonas de habitação social. Além disso, estabelece o valor de recursos arrecadados para o Fundurb, o fundo municipal responsável por custear habitação social, mobilidade urbana e infraestrutura. A possibilidade de o empreendedor privado optar pela legislação antiga vai contra o interesse da coletividade.
O fundamento para esse poder de escolha do empreendedor é um suposto direito fundado em mero pedido, antes de qualquer análise ou despacho das autoridades municipais! Pela Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, um simples pedido administrativo não pode ser considerado ato jurídico completo para fins de aplicação da regra do direito adquirido. Em seu art. 6º, §2º, essa lei é clara: “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixado, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.
Quem defende o protocolo como direito adquirido costuma invocar a necessidade de que as atividades econômicas sejam previsíveis. Então façamos um exercício. Imaginemos que uma empresa investiu grande soma no desenvolvimento de um medicamento e seu pedido de licença para uso público esteja em análise. Se nesse período de análise o princípio ativo passa a ser considerado nocivo à saúde, seria coerente cogitar haver direito de exploração da substância baseado em um protocolo do pedido?
A Prefeitura de São Paulo busca defender o “direito” de protocolo, mas até agora não apontou os impactos dessa manutenção. A discussão ocorre de forma abstrata, sem transparência. Não se tem ideia do número de empreendimentos a que se aplicaria. Suas consequências concretas (usos e áreas edificadas) podem ser em volume imenso, espalhadas pela cidade ou concentradas em certas porções, como os estratégicos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana ou os sensíveis “miolos” de bairros. Para resumir, ninguém sabe minimamente do que se está falando, sob a perspectiva do impacto na cidade real.
O “direito” de protocolo não pertence às sociedades democráticas. É um equívoco que impede o avanço da cidade de São Paulo. O julgamento do TJSP, previsto para o dia 20 de março, não pode deixar de considerar esses aspectos: o drama da vida cotidiana em São Paulo pede ações imediatas para evitar tragédias maiores no futuro.
Fernando G. Bruno Fº (advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico - IBDU), Fernando Túlio Salva Rocha Franco (Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento São Paulo) e Mariana Chiesa Gouveia Nascimento (consultora jurídica do IABsp e sócia do escritório Rubens Naves Santos Junior)