Os problemas das enchentes em São Paulo, que tem mostrado sinais de agravamento com a mudança no regime das chuvas, só poderá ser enfrentado com eficiência se as diferentes abordagens e soluções para a drenagem – as do urbanismo e as da engenharia, forem combinadas. Ou seja, tanto melhorar o sistema de piscinões como promover soluções de drenagem com qualidade urbanística – parques lineares, renaturalização e estruturação de redes associadas a eixos de mobilidade. E, mais importante, promover essas soluções nas áreas onde moram os mais afetados por desastres: terrenos suscetíveis a deslizamentos e inundações, ocupados por habitações vulneráveis e mal dotados de infraestrutura, como favelas, loteamentos precários e bairros periféricos.
Essas foram as principais conclusões do debate realizado pelo IABsp sobre o assunto, que reuniu no final do mês passado os arquitetos urbanistas Luciana Travassos, Luciana Ferrara e Renato Anelli; o representante dos movimentos em defesa dos Favelados André Delfino da Silva; o engenheiro Luiz Orsini; e o subsecretário de Meio Ambiente, o arquiteto urbanista Eduardo Trani.
Nos temporais ocorridos na segunda semana de março, treze pessoas morreram, sete delas por afogamento e cinco em deslizamentos de terra. Ao que tudo indica, piscinões e canais não deram conta do evento extremo. De fato, a mudança das chuvas, com picos de precipitação concentrados em determinados locais, vem exigindo que a engenharia reveja procedimentos de dimensionamento. Mas, além disso, há problemas de gestão: essas grandes estruturas integram sistemas incompletos, a manutenção é inadequada e a decisão pela obra deste ou daquele piscinão responde mais ao clamor do momento do que às prioridades estabelecidas nos planos existentes.
Existe, ainda, outro aspecto da mudança das chuvas. Já se sabe, desde 2009/2010, que as estruturas urbanas em São Paulo são vulneráveis também a chuvas não tão intensas, mas que se estendem por muitos dias. Nesses casos, escorregamentos ocorrem por saturação do terreno, e não pela intensidade instantânea das precipitações. Os espaços que absorvem e detém as águas – seja o solo de áreas verdes permeáveis ou piscinões – esgotam sua capacidade no caso de todo um mês chuvoso. As respostas convencionais da engenharia que, historicamente, passaram pela canalização dos rios para aumentar a velocidade de escoamento, e depois se voltaram ao armazenamento de grandes volumes em piscinões, também não resolvem este cenário de chuvas.
Um trabalho de integração dos diferentes tipos de conhecimento sobre a cidade é necessário e deveria acontecer em vários níveis da prática. É o caso das simulações usadas para elaborar planos de macrodrenagem, que ainda não consideraram soluções difusas nos cenários de projeto, como, por exemplo, diversos pequenos reservatórios de água de chuva espalhados pela cidade. Um exercício como esse permitiria calcular eficiência, custo e incentivos à adoção de uma solução como essa em escala. Um maior entrosamento entre procedimentos de simulações em drenagem e compreensão do potencial urbanístico ajudaria também a planejar locais estratégicos para a implantação de parques e áreas verdes, áreas de risco prioritárias para receber projetos de qualificação habitacional, ou até melhorar processos de controle do assoreamento. E mesmo com toda tecnologia à mão, às vezes só seria preciso pensar se o problema é de drenagem ou habitacional.
A distribuição de recursos para drenagem – atualmente quase toda consumida em obras de piscinões e trabalhos de desassoreamento – pode melhorar a partir de uma boa articulação da gestão urbana. Mas as próprias atribuições de responsabilidade sobre a drenagem são tão complexas que se tornam entraves à articulação. Cabe ao município disciplinar as águas que correm na superfície urbana e a forma de ocupação da cidade; o estado e a União são responsáveis pelo controle dos rios. A drenagem é também parte integrante dos serviços de saneamento, um assunto complicado no caso da prestação em Regiões Metropolitanas. E, ainda, a drenagem é um problema de prevenção, monitoramento e controle de riscos.
Quando o assunto é risco, os urbanistas ainda precisam fazer a lição de casa: formular uma compreensão própria no tema e contribuir na construção de bases e sistemas de informações sobre riscos mais manejáveis pelo planejamento e gestão urbana. Falta entender sistematicamente impactos nas diferentes formas de ocupação urbana e no funcionamento das cidades, como ocorrem as mortes por alagamento, com quais consequências os afetados pelas chuvas convivem, como a cidade cresce e se expõe aos riscos.
As cidades ocuparam o espaço dos rios, alteraram solos e fluxos de superfície, e precisam ser adaptadas para que os moradores convivam em segurança com as chuvas. Engenharia, desenho e controle urbano, gestão de riscos e soluções habitacionais devem ser mobilizados em conjunto para se alcançar bons resultados, sem polarizações entre visões dos diferentes campos, como ocorre hoje. Este é o maior desafio de São Paulo para enfrentar as enchentes.
Renata Moreira é arquiteta-urbanista representante do IABsp no Conselho Estadual de Saneamento e na Câmara Temática Metropolitana de Gestão de Riscos Ambientais. É mestre em saneamento e doutora em gestão de riscos metropolitanos pela FAU-USP. Trabalhou no desenvolvimento da Política Municipal de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais de São Paulo. Trabalha no escritório Tereza Arquitetura e Urbanismo em consultorias para integração da implementação de políticas setoriais e urbanas e no desenvolvimento de projetos para urbanização de assentamentos precários.