Cultura popular constitui um conceito impreciso, que se presta a definições diversas. Para apreender os traços que caracterizam as diversas acepções de cultura popular, é preciso acompanhar a dinâmica da transformação dessa expressão ao longo dos estudos voltados para esse campo.
- Dicionário Iphan do Patrimônio Cultural: o que é "autenticidade"
- Dicionário Iphan do Patrimônio Cultural: o que é "bem cultural"
Em meados do século XIX, o foco sobre a cultura popular estava politicamente associado à ascensão do nacionalismo, na formação dos modernos Estados europeus, fazendo parte de um movimento de busca e legitimação de uma identidade nacional (BURKE, 2010). Para aqueles estudiosos da cultura popular, o povo era constituído pelos camponeses, vivendo em meio rural, mais próximos à natureza, mais afastados das áreas urbanas, logo, menos influenciados por outros valores e costumes. A despeito das diferenças existentes entre os modos de vida de pastores, lavradores, artesãos, tecelões ou mineiros, entre outros, o povo que referenciava a cultura popular era percebido como um conjunto homogêneo.
As transformações sociais patentes aos olhos dos intelectuais da época ocasionaram uma coleta urgente e salvadora diante da proclamada extinção dos contextos produtores e mantenedores das tradições. Havia a preocupação de registrar, documentar e colecionar canções, contos, poesias, provérbios, peças artesanais, costumes e crenças antes que fosse tarde demais, pois estavam fadados a desaparecer, condenados pela modernização, pelo crescimento das cidades, pela disseminação da alfabetização e pelo avanço da industrialização.
Quando o inglês Thoms cunhou o termo folklore (literalmente ‘o saber do povo’), em 1846, o termo parecia apropriado para englobar o material que era coletado na época, entendido como “antiguidades populares”, “superstições” ou “curiosidades”, e delinear uma metodologia mais adequada para a identificação e registro desse material.
Na esteira das abordagens europeias, os intelectuais brasileiros se voltaram para as manifestações culturais populares, particularmente por meio do estudo da literatura oral. Enquanto, na Europa, a definição de cultura popular como o saber tradicional de pessoas simples, iletradas, da área rural, estava associada à permanência de formas culturais livres de interferências estrangeiras e/ou estranhas, logo, como depositária de uma singularidade capaz de embasar uma identidade nacional, no Brasil se verificou empenho em fundar a identidade da jovem nação brasileira na mestiçagem, decorrente da interação de três raças – o índio, o negro e o branco – que compunham a população. Os primeiros estudos no país procuravam detectar as contribuições específicas de uma ou de outra raça para os contos, lendas, crenças e costumes, de modo a deslindar a composição mestiça preconizada. O movimento folclórico, como ficou conhecido o esforço dos intelectuais brasileiros nesse campo, preocupou-se em traçar os contornos iniciais de uma base conceitual e de uma categorização que acompanhassem o material coletado. A evolução do campo de estudos, durante o movimento modernista brasileiro, seguiu novas orientações e ampliou o repertório, incluindo músicas, ritmos, festejos, folguedos e rituais nas investigações empíricas que se estenderam por várias regiões do país.
No decorrer do século XX, com o fortalecimento das disciplinas acadêmicas ligadas às Ciências Humanas e Sociais, os estudos do folclore foram perdendo autonomia, sendo alocados ora como parte do campo da Literatura, ora da História, da Sociologia ou da Antropologia. Por fim, o próprio termo folclore adquiriu uma conotação pejorativa, associado, por muitos, a uma noção de verdade infundada.
Burke (2010) sugere que é mais proveitoso analisar as interações entre a cultura erudita e a popular do que tentar definir o que as separa, e propõe um movimento em dois sentidos: o “de baixo para cima”, no qual escritores ou pintores recorrem à herança cultural popular para a produção de suas obras; e o “de cima para baixo”, no qual motivos artesanais, por exemplo, recorrem a um repertório de padrões extraídos da cultura erudita. O longo processo de interação entre elementos eruditos e populares dá lugar, portanto, à circularidade de temas, padrões e imagens.
A adaptação às circunstâncias de cada contexto é uma característica constante da transmissão da tradição. A transmissão oral aciona esquemas mnemônicos que garantem a estabilidade das estruturas musicais, plásticas e narrativas, dando margem, porém, a múltiplas variações desse esquema, em virtude dos aspectos contingentes de cada performance. Além disso, a própria definição de tradição sofreu forte crítica por parte de Hobsbawm e Ranger (1984), segundo a qual várias práticas consideradas muito antigas foram na verdade inventadas há pouco tempo.
A cultura popular, como expressão cultural dos segmentos menos favorecidos, apartados do poder político e econômico, manteve-se em foco durante muito tempo, gerando contraposições, tais como erudito x popular, moderno x tradicional, hegemônico x subalterno. Canclini (2013) acrescenta a cultura de massa nessa discussão, associando o termo ‘popular’ tanto à noção de povo quanto à noção de popularidade, referindo-se ao que agrada a muitos e alcança altos índices de venda, principalmente em decorrência das ações promocionais da indústria cultural. Essas acepções divergentes em torno do termo concorrem para o debate tradição x inovação. O popular atribuído aos segmentos sociais não afetados pelo cosmopolitismo das elites e pautados na preservação das tradições repousa sobre a permanência das expressões culturais, memória e testemunho da uma identidade cultural. Já o popular produzido pela indústria cultural padece de uma rápida obsolescência, privilegiando sempre o novo.
As definições de cultura popular em sentido negativo – não hegemônica, não oficial, não moderna, não cosmopolita, não erudita, e assim por diante – exploram a concepção de duas camadas sociais, elite e povo, com base na desigualdade social. Além disso, a própria cultura popular é segmentada em um grande conjunto produtor e preservador de práticas tradicionais e em um pequeno conjunto estigmatizado, de práticas permeadas pela reputação de transgressão social, alvo de fortes repressões. O carnaval, o jongo e os cultos de candomblé, para citar apenas alguns exemplos, já sofreram prisões de participantes e apreensões de instrumentos e objetos rituais.
Nos estudos interdisciplinares mais recentes, a cultura popular aparece como um modo de vida marcado por uma complexa interação de fatores socioculturais, econômicos, políticos e ecológicos, esmaecendo a divisão entre erudito e popular. Uma das maiores dificuldades continua a ser a arbitrariedade dos limites considerados eficazes para circunscrevê-la.
Em âmbito internacional, a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, documento gerado na 25ª Conferência Geral da Unesco em 1989, define a cultura tradicional e popular como “o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural, fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressões de sua identidade cultural e social: as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras”.
Quando a cultura popular é fundamentada na preservação da tradição, entra em cena a questão do caráter autoral ou coletivo das manifestações, já que as expressões da cultura popular costumam estar associadas à ausência de estilos individuais ou de obras assinadas, ao anonimato e à pequena margem para a inovação.
Na pauta das discussões promovidas por entidades internacionais, as proteções concedidas às produções intelectuais (marcas, patentes, indicações geográficas, direitos de autor, entre outras) devem se estender às manifestações e expressões da cultura popular, na medida em que estas também derivam da criatividade, seja individual ou coletiva. O Comitê Intergovernamental da Organização Mundial de Propriedade Industrial (OMPI) aprovou, em 2001, um Projeto de Disposições com relação à proteção dos Conhecimentos Tradicionais e Folclore. Cabe observar que proteção, no âmbito da OMPI, distingue-se da salvaguarda promovida pela Unesco. Enquanto que salvaguarda se volta para a identificação, a documentação, a transmissão e o fomento dos bens culturais, a proteção da propriedade intelectual visa garantir compensação justa e impedir a exploração comercial ilícita, a concorrência desleal e o uso não autorizado/não apropriado.
É digno de nota também que, no documento da OMPI de 2001, o termo folclore reaparece como equivalente à expressão cultura tradicional, enquanto na Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, em 2003, a expressão “patrimônio cultural imaterial” toma o lugar de “cultura tradicional e popular” da Recomendação de 1989.
Diante das transformações nas concepções da cultura popular, que tangenciam folclore, cultura oral, cultura tradicional e cultura de massa, o emprego da expressão no plural – culturas populares – talvez consiga mais facilmente percebê-la como práticas sociais e processos comunicativos híbridos e complexos que promovem a integração de múltiplos sistemas simbólicos de diversas procedências.
____
Este artigo faz parte da série "Dicionário Iphan", realizado em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em que publicaremos semanalmente a definição de um verbete relacionado ao patrimônio cultural brasileiro.
Autora:
Maria Elisabeth de Andrade Costa Graduada em Psicologia, mestre em Psicolinguística, pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutora em Antropologia Cultural, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ). Desde 2010, chefe da Divisão de Pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (CNFCP/IPHAN).
Fontes consultadas:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
CARNEIRO, Edison. Dinâmica do Folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CARVALHO, José Jorge de. O lugar da cultura tradicional na sociedade moderna. In: Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 2000. p. 23-38.
CARVALHO, Rita Laura Segato. A antropologia e a crise taxonômica da cultura popular. In: Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 2000. p. 13-21.
CAVALCANTI, Maria Laura et al. Os estudos de folclore no Brasil. In: Seminário Folclore e Cultura Popular: as várias faces de um debate. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 2000. p. 101-112.
CNFCP. Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Disponível em: <www.cnfcp.gov.br>.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
ORTIZ, Renato. Cultura popular: românticos e folcloristas. São Paulo: PUC, 1985.
______. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
UNESCO. Disponível em: <www.unesco.org>.
VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro 1947-1964. Rio de Janeiro: Funarte; Fundação Getúlio Vargas, 1997.
WIPO. World Intellectual Property Organization. Disponível em: <www.wipo.int>.
Como citar:
COSTA, Maria Elisabeth de Andrade. Cultura popular. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6
Editado por Romullo Baratto.