Nova República: um retrato do Brasil em microescala

O debate sobre a matéria e a forma como ela concebe os espaços que abrigam toda a dimensão social é o cerne do discurso arquitetônico. Apesar do arquiteto definir um conceito, partido e obedecer a um programa que pode influenciar até mesmo a vivência urbana, no fundo são o cotidiano e o próprio repertório cultural individual que ditará como se vivencia cada lugar. A compreensão de que existem diversas camadas na sociedade capazes de construir muros invisíveis que dissolvem a poética arquitetônica e desabrocham em outros assuntos inevitáveis para compreender a cadeia na qual estamos inseridos é uma das reflexões propostas pela Nova República, projeto realizado pelo antropólogo Hélio Menezes e os arquitetos do Wolff Architects, baseados na Cidade do Cabo, África do Sul, para a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.

© Heinrich Wolff

Em sua 12ª edição, a bienal busca transcender a banalidade da vida cotidiana através do tema Todo Dia. No eixo temático Relatos do Cotidiano, os curadores Vanessa Grossman, Charlotte Malterre-Barthes e Ciro Miguel, convidaram equipes formadas por arquitetos e outros profissionais para criarem dispositivos que dialogassem com o Sesc 24 de Maio, seus usuários e entorno. Com uma convicção de que a inclusão cada vez maior de práticas culturais de marginalizados é fundamental para promover a coesão social Hélio Menezes e Wolff Architects decidiram abordar a tensão existente entre o edifício sede do evento e seu vizinho, a galeria Presidente - mais conhecida como Galeria do Reggae.

© Heinrich Wolff

Reduto da cultura afro, na galeria existem cabeleireiros em todos os pisos do edifício. A fim de atrair clientes para suas lojas, mulheres enfrentam as intempéries do clima na rua para convidar os transeuntes a cuidarem de seus cabelos e, apesar de estarem em frente à entrada do Sesc 24 de Maio, não se sentem a vontade para entrar neste espaço. Pode-se dizer que o mesmo acontece com o público que frequenta a instituição cultural e que nunca conheceu a galeria a não ser pelo diálogo visual que o projeto de Paulo Mendes da Rocha e MMBB propõe com os edifícios de seu entorno.

Para abordar esse contexto, Heinrich e Ilze Wolff colaboraram com o projeto à distância, fato que não complicou a compreensão da conjuntura brasileira, pois é possível traçar paralelos referentes ao contexto sul-africano. O próprio arquiteto reconhece que "ambas as nossas sociedades lutam com questões de coesão social e com o devido respeito às expressões culturais dos negros. Nossos países também parecem compartilhar concepções do que é 'cultural' e práticas que são consideradas como mero comércio e, portanto, desconsideradas como 'culturais'".  

© Heinrich Wolff

A partir deste ponto de vista e baseados numa pesquisa de quatro meses realizada por Hélio Menezes no local - usando diferentes ferramentas de estudo, conversas e entrevistas -, ambos concluíram que seriam necessárias duas intervenções para abordar a tensão existente no local: um dispositivo ao ar livre como figura alegórica que convida à participação das instituições e do público a um debate sobre os programas de práticas culturais, e outro interno que funciona como um salão de cabeleireiro totalmente funcional, o qual convida trabalhadores e frequentadores da galeria do Reggae para o interior do Sesc.

No primeiro, fica clara a importância de apontar as questões invisíveis do espaço e abordá-las através de uma maneira pública, por isso surgiu a necessidade de ocupar a rua e propor um confronto sério, mas de forma lúdica - da qual surge o desenho da instalação flutuante que traz em seu topo ilustrações de alguns dos penteados realizados na galeria do Reggae. Além disso, Heinrich afirma que "para suspender o dispositivo na rua, precisávamos do suporte de cabos. Ao amarrar um cabo a cada um dos edifícios, uma conversa teve que acontecer entre as duas instituições; se ambas as partes não concordassem, o projeto seria impossível. Ao inserir essa figura no vazio entre os dois prédios, ambos são forçados a se olharem".

© Heinrich Wolff

Já o segundo dispositivo, o salão construído no térreo do Sesc - concebido com materiais do Salão da Mangueira, um dos mais tradicionais da Galeria do Reggae -, possuía a finalidade de ser utilizado pelas cabeleireiras que trabalham nas ruas durante o período da Bienal. Contudo, o Sesc não permitiu esse uso e transformou a instalação instantaneamente em uma cenografia que representa parte do cotidiano vizinho. Sobre o fato, Heinrich declara que esta "é uma demonstração clara da incapacidade de reconhecer como as práticas culturais da Galeria poderiam transformar as do Sesc".

© Heinrich Wolff

Para Hélio Menezes este trabalho sobretudo sublinha questões raciais presentes no cotidiano deste entorno. O antropólogo reitera que "os cabos de aço [utilizados para suspender o dispositivo] de alguma forma objetificam a metáfora de tensão entre os dois edifícios e o muro invisível que é construído através das tensões de sociabilidade racial no Brasil, retratando, assim, uma espécie de miniatura do país, já que neste contexto está se engendrando uma nova república a partir dos fluxos migratórios, de africanos e haitianos, e da própria presença do Sesc, que mudam a cara da República". E, assim, surge a provocação do próprio título da obra, "que é uma referência que diz respeito e traça relações com o momento brasileiro que estamos vivendo, por assim dizer, o fim do pacto republicano a partir da constituição cidadã", complementa.

'Nova República', de Hélio Menezes e Wolff Architects. Imagem: Divulgação

Questionado sobre o papel de engajamento social que os arquitetos podem representar, Heinrich Wolff diz que "a arquitetura preocupa-se com infraestruturas, tanto sociais quanto físicas. Como arquitetos, é importante entendermos a imaginação social que informa as infraestruturas sociais existentes. Se queremos aumentar a coesão social, podemos reagir às divisões que existem nessas cadeias. Somos capazes de resolver sérias questões sociais de maneiras que abrem novas e excitantes fronteiras na expressão arquitetônica".

Propor desvios no olhar e na percepção dos espaços que trazem novas alternativas, seja de compreensão social ou do desbravamento de novos lugares, é parte de um movimento que luta por um espaço ético e de equidade entre as diversidades, respeitando a experiência individual de cada corpo, mas o abraçando de forma coletiva. Para um campo que está tão acostumado a construir fisicamente, a arquitetura começa a se desdobrar a fim de derrubar alguns muros invisíveis, ou ao menos começa a traçar novas rotas na cartografia cultural de cada pessoa que atravessa por intervenções como a Nova República. 

© Heinrich Wolff

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Sobre este autor
Cita: Victor Delaqua. "Nova República: um retrato do Brasil em microescala" 27 Set 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/925481/nova-republica-um-retrato-do-brasil-em-microescala> ISSN 0719-8906

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