O debate sobre a matéria e a forma como ela concebe os espaços que abrigam toda a dimensão social é o cerne do discurso arquitetônico. Apesar do arquiteto definir um conceito, partido e obedecer a um programa que pode influenciar até mesmo a vivência urbana, no fundo são o cotidiano e o próprio repertório cultural individual que ditará como se vivencia cada lugar. A compreensão de que existem diversas camadas na sociedade capazes de construir muros invisíveis que dissolvem a poética arquitetônica e desabrocham em outros assuntos inevitáveis para compreender a cadeia na qual estamos inseridos é uma das reflexões propostas pela Nova República, projeto realizado pelo antropólogo Hélio Menezes e os arquitetos do Wolff Architects, baseados na Cidade do Cabo, África do Sul, para a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.
Em sua 12ª edição, a bienal busca transcender a banalidade da vida cotidiana através do tema Todo Dia. No eixo temático Relatos do Cotidiano, os curadores Vanessa Grossman, Charlotte Malterre-Barthes e Ciro Miguel, convidaram equipes formadas por arquitetos e outros profissionais para criarem dispositivos que dialogassem com o Sesc 24 de Maio, seus usuários e entorno. Com uma convicção de que a inclusão cada vez maior de práticas culturais de marginalizados é fundamental para promover a coesão social Hélio Menezes e Wolff Architects decidiram abordar a tensão existente entre o edifício sede do evento e seu vizinho, a galeria Presidente - mais conhecida como Galeria do Reggae.
Reduto da cultura afro, na galeria existem cabeleireiros em todos os pisos do edifício. A fim de atrair clientes para suas lojas, mulheres enfrentam as intempéries do clima na rua para convidar os transeuntes a cuidarem de seus cabelos e, apesar de estarem em frente à entrada do Sesc 24 de Maio, não se sentem a vontade para entrar neste espaço. Pode-se dizer que o mesmo acontece com o público que frequenta a instituição cultural e que nunca conheceu a galeria a não ser pelo diálogo visual que o projeto de Paulo Mendes da Rocha e MMBB propõe com os edifícios de seu entorno.
Para abordar esse contexto, Heinrich e Ilze Wolff colaboraram com o projeto à distância, fato que não complicou a compreensão da conjuntura brasileira, pois é possível traçar paralelos referentes ao contexto sul-africano. O próprio arquiteto reconhece que "ambas as nossas sociedades lutam com questões de coesão social e com o devido respeito às expressões culturais dos negros. Nossos países também parecem compartilhar concepções do que é 'cultural' e práticas que são consideradas como mero comércio e, portanto, desconsideradas como 'culturais'".
A partir deste ponto de vista e baseados numa pesquisa de quatro meses realizada por Hélio Menezes no local - usando diferentes ferramentas de estudo, conversas e entrevistas -, ambos concluíram que seriam necessárias duas intervenções para abordar a tensão existente no local: um dispositivo ao ar livre como figura alegórica que convida à participação das instituições e do público a um debate sobre os programas de práticas culturais, e outro interno que funciona como um salão de cabeleireiro totalmente funcional, o qual convida trabalhadores e frequentadores da galeria do Reggae para o interior do Sesc.
No primeiro, fica clara a importância de apontar as questões invisíveis do espaço e abordá-las através de uma maneira pública, por isso surgiu a necessidade de ocupar a rua e propor um confronto sério, mas de forma lúdica - da qual surge o desenho da instalação flutuante que traz em seu topo ilustrações de alguns dos penteados realizados na galeria do Reggae. Além disso, Heinrich afirma que "para suspender o dispositivo na rua, precisávamos do suporte de cabos. Ao amarrar um cabo a cada um dos edifícios, uma conversa teve que acontecer entre as duas instituições; se ambas as partes não concordassem, o projeto seria impossível. Ao inserir essa figura no vazio entre os dois prédios, ambos são forçados a se olharem".
Já o segundo dispositivo, o salão construído no térreo do Sesc - concebido com materiais do Salão da Mangueira, um dos mais tradicionais da Galeria do Reggae -, possuía a finalidade de ser utilizado pelas cabeleireiras que trabalham nas ruas durante o período da Bienal. Contudo, o Sesc não permitiu esse uso e transformou a instalação instantaneamente em uma cenografia que representa parte do cotidiano vizinho. Sobre o fato, Heinrich declara que esta "é uma demonstração clara da incapacidade de reconhecer como as práticas culturais da Galeria poderiam transformar as do Sesc".
Para Hélio Menezes este trabalho sobretudo sublinha questões raciais presentes no cotidiano deste entorno. O antropólogo reitera que "os cabos de aço [utilizados para suspender o dispositivo] de alguma forma objetificam a metáfora de tensão entre os dois edifícios e o muro invisível que é construído através das tensões de sociabilidade racial no Brasil, retratando, assim, uma espécie de miniatura do país, já que neste contexto está se engendrando uma nova república a partir dos fluxos migratórios, de africanos e haitianos, e da própria presença do Sesc, que mudam a cara da República". E, assim, surge a provocação do próprio título da obra, "que é uma referência que diz respeito e traça relações com o momento brasileiro que estamos vivendo, por assim dizer, o fim do pacto republicano a partir da constituição cidadã", complementa.
Questionado sobre o papel de engajamento social que os arquitetos podem representar, Heinrich Wolff diz que "a arquitetura preocupa-se com infraestruturas, tanto sociais quanto físicas. Como arquitetos, é importante entendermos a imaginação social que informa as infraestruturas sociais existentes. Se queremos aumentar a coesão social, podemos reagir às divisões que existem nessas cadeias. Somos capazes de resolver sérias questões sociais de maneiras que abrem novas e excitantes fronteiras na expressão arquitetônica".
Propor desvios no olhar e na percepção dos espaços que trazem novas alternativas, seja de compreensão social ou do desbravamento de novos lugares, é parte de um movimento que luta por um espaço ético e de equidade entre as diversidades, respeitando a experiência individual de cada corpo, mas o abraçando de forma coletiva. Para um campo que está tão acostumado a construir fisicamente, a arquitetura começa a se desdobrar a fim de derrubar alguns muros invisíveis, ou ao menos começa a traçar novas rotas na cartografia cultural de cada pessoa que atravessa por intervenções como a Nova República.