Segundo o relatório de 2016 do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT), existem 881 milhões de pessoas vivendo em favelas nas cidades dos países em desenvolvimento, e se estima que até 2025 é provável que outras 1,6 bilhão de pessoas precisem de moradia adequada e acessível. Com essas perspectivas, muito se tem discutido sobre Habitação de Interesse Social (HIS) e sobre como projetos realizados nesse âmbito podem ser uma solução para o déficit habitacional, mas o que, afinal, significa esse termo?
A Habitação de Interesse Social, em termos gerais, é aquela voltada à população de baixa renda que não possui acesso à moradia formal e nem condições para contratar os serviços de profissionais ligados à construção civil. Segundo o ONU-HABITAT, habitação acessível é aquela adequada em qualidade e localização, que não custa tanto a ponto de impedir seus moradores de arcar com outros custos básicos de vida ou ameaçar seu gozo de direitos humanos básicos.
Quando se fala em Habitação de Interesse Social, entra em jogo uma série de interesses e interessados. Nessa perspectiva, os protagonistas são - ou deveriam ser - os futuros moradores, não apenas enquanto indivíduos, que precisam de casas para morar, mas também como parte da sociedade, na qual a rede de relações estabelecida com a vizinhança e com a cidade assume grande relevância no projeto.
Como surgiu a Habitação de Interesse Social
Enquanto alguns autores consideram as vilas e cidades operárias, que surgiram século XIX com a Revolução Industrial, como precursoras da habitação social, outros consideram que seu surgimento ocorreu no período entre-guerras europeu, quando a demanda por habitação era alta e o modernismo estava se consolidando como movimento. De qualquer forma, a origem da habitação de interesse social esteve ligada à urbanização e aumento da demanda por habitação de baixo custo.
Ao longo do século XX, soluções como blocos de moradia cercados por jardins, tipicamente modernos, como os exemplos de “Unité d’Habitation” de Le Corbusier, se tornaram comuns e se consolidaram como um modelo durante muitos anos para esse tipo de habitação no contexto mundial.
No Brasil, o interesse do Governo Federal na construção de HIS se inicia nos anos 30, com a industrialização do país. Até então, a população que vinha do campo para trabalhar e viver nas cidades tinha como opção somente as vilas operárias ou moradias de aluguel da iniciativa privada. A partir desse período até a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1964, os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) encomendaram projetos de arquitetos modernos, como Attilio Corrêa Lima, Carlos Frederico Ferreira e Marcial Fleury de Oliveira.
“As casas operárias, construídas pelas Caixas e Institutos em vários Estados, ainda são em pequeno número e preço elevado, em relação às posses dos empregados. Dei instruções ao Ministério do Trabalho para que, sem prejuízo das construções isoladas, onde se tornarem aconselháveis, estude e projete grandes núcleos de habitações modestas e confortáveis. Recomendei, para isso, que se adquiram grandes áreas de terrenos e, se preciso, que se desapropriem as mais vantajosas; que se proceda à avaliação das mesmas; que se levem em consideração os meios de transporte para esses núcleos; que se racionalizem os métodos de construção; que se adquiram os materiais, diretamente, ao produtor; tudo, enfim, de modo a se obter, pelo menor preço, a melhor casa.” - Getúlio Vargas, novembro de 1938
Ações governamentais e principais desafios no Brasil
No Brasil, desde 2005, existe uma Lei que dispõe sobre Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, com o objetivo de democratizar o acesso à terra urbanizada, habitação digna e sustentável através de políticas e programas de investimentos e subsídios; além de articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções no setor da habitação.
Um dos resultados dessa lei é o programa Minha Casa Minha Vida, criado em 2009, talvez o mais conhecido no contexto da HIS no Brasil. As principais críticas ao programa são o seu foco na quantidade de habitações, o que não reflete na sua qualidade de espaços, materiais e ou técnicas construtivas; a falta de participação popular no processo de concepção do projeto; falta de incentivos que promovam reconhecimento, identidade e vizinhança; desarticulação com o contexto urbano.
Segundo pesquisa realizada pelo CAU/BR e pelo Instituto DataFolha em 2015, mais de 85% da população brasileira constrói e reforma sem orientação de arquitetos e urbanistas ou engenheiros. Somando esse dado a milhões de pessoas sem acesso à moradia no país, é de fato importante levar em consideração a quantidade de famílias atendidas por um programa de habitação social, mas soluções desconectadas a redes de transporte e serviços básicos, que negam o direito à cidade desses moradores, são, no mínimo, paradoxais. As ocupações em prédios abandonados, a autoconstrução e a presença de vazios urbanos no Brasil são reflexos de uma sociedade com déficit habitacional.
Morar no centro das cidades, com acesso a transporte e serviços públicos é um direito de todos, que pode ser atendido através de estratégias e projetos de habitação social, já que estes não se restringem à criação de novas casas ou conjuntos habitacionais, mas também podem se apresentar como requalificações de espaços já existentes, como é o caso da urbanização de favelas (a exemplo do programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro); consultorias técnicas (como as oferecidas pela Usina CTAH); reuso adaptativo de edifícios abandonados etc.
Produção atual
Nos últimos anos, no contexto mundial, a Habitação de Interesse Social tem se tornado alvo de olhares mais cuidadosos. Com o Prêmio Pritzker de 2016 concedido a Alejandro Aravena, destacando sua capacidade de ampliar o campo de ação do arquiteto para alcançar soluções que permitam melhorar os contextos urbanos e fazer frente à crise mundial de habitação, tem se difundido a ideia de que é possível construir casas em série de baixo custo com um caráter participativo e sensível à pós-ocupação.
A produção de Habitação de Interesse Social também tem sido fomentada por concursos como os promovidos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (CODHAB-DF), que promovem a criação e divulgação de possibilidades arquitetônicas, que podem ser utilizadas em novas prospecções da Companhia, e também, através da divulgação, servir de base para outras ideias e projetos de HIS.
Na perspectiva da assistência técnica como política pública habitacional, o coletivo Proyecto Habitar, da Faculdade de Arquitectura, Diseño y Urbanismo da Universidad de Buenos Aires (UBA), promove o escritório Atenção Primária em Habitat, coordenado pelos professores, com base em uma metodologia participativa, propondo uma política que incida sobre o déficit habitacional qualitativo através do melhoramento de habitações precárias. Estratégias como a assistência técnica no contexto da HIS são um passo fundamental na promoção de qualidade de vida de moradores que já estão estabelecidos em determinado local, sem a necessidade de afastá-los dos centros urbanos e mantendo a possibilidade de uma moradia de baixo custo.
Referências bibliográficas
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Publicado originalmente em 03 de outubro de 2019, atualizado em 05 de outubro de 2020.