Fábricas, abatedouros, gasômetros, conventos, torres de água e estações ferroviárias são alguns exemplos de estruturas que podem ter permanecido no tecido urbano das cidades com o passar dos anos, ainda que tenham perdido seu uso original. A reutilização de uma edificação preexistente para novos usos é o que ficou conhecido como reuso adaptativo - do inglês adaptive reuse. Ainda que não tenha sido uma concepção contemporânea, a prática vem sendo muito adotada nos últimos anos como estratégia para lidar com os espaços de forma mais econômica, sustentável, prática e eficiente.
Com o crescimento acelerado das cidades, emergem algumas questões urgentes como parcelamento do solo e controle e distribuição da densidade urbana. Em cidades como São Paulo, a grande demanda por habitação encontra espaço em edifícios que perderam seu uso original: existem cerca de 70 prédios abandonados no centro da capital, habitados irregularmente por 4 mil famílias por meio das ocupações, segundo a revista Exame. Dados como esse demonstram que existe uma desproporção em relação à demanda por novos usos e quantidade edifícios disponíveis para tal, situação que acontece também em outras cidades no mundo.
Como o reuso adaptativo evita gastos com demolições e novas construções, se apresenta como uma solução capaz de atender demandas urgentes, como a da habitação social. Mas, além de ser uma escolha econômica, realizar uma intervenção desse gênero é também uma escolha pela preservação da memória. Sendo assim, usos culturais, por exemplo, podem permitir à população a continuidade histórica do edifício construído de forma adaptada. Sem uso, um edifício se arruína.
O Matadero, em Madri, é um exemplo de reuso adaptativo para conversão em uso cultural: um antigo abatedouro construído na virada do século XX foi transformado, a partir de 2005, em um complexo multiuso, com projetos de diferentes arquitetos para cada nova função. O conjunto abriga espaços expositivos, cinemateca, oficinas, casa de leitura, entre outros. O resultado é uma manutenção dos traços do passado para reforçar a natureza experimental dos novos espaços, mantendo uma atmosfera envolvida pela passagem do tempo.
O processo de adaptação no reuso adaptativo se refere tanto à adequação do uso quanto das estruturas, de forma atender aos requisitos técnicos e funcionais contemporâneos e possibilitar que o edifício seja atrativo para o público e que tenha condições estruturais para isso. Alguns exemplos dessa adaptação são o Musée d’Orsay, em Paris (França), antiga estação de trem que passou pela intervenção da arquiteta italiana Gae Aulenti; uma antiga igreja gótica em Colônia (Alemanha) que foi transformada no Museu Kolumba por Peter Zumthor; e um antigo galpão de engenho em Piracicaba (Brasil), que foi transformado no Teatro Erotídes de Campos pelo escritório Brasil Arquitetura.
A ideia do reuso adaptativo vem ganhando espaço também em discussões acerca da preservação de edifícios relativamente recentes, a exemplo da tomada de consciência da arquitetura do movimento moderno como patrimônio. Em 2016, o tema do reuso adaptativo foi tema da conferência internacional do Docomomo (International Working Party for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of Modern Movement), que debateu sobre como o tema pode ser aplicado na preservação de edifícios modernos. A estratégia vem sendo discutida, por exemplo, para o Parador Ariston, em Mar del Plata (Argentina), edifício de 1948 projetado pelo arquiteto húngaro Marcel Breuer com colaboração de Carlos Coire e Eduardo Catalano. O edifício é considerado um ícone da arquitetura argentina, mas se encontra abandonado há alguns anos.
Passado o período de agitação do movimento moderno, de ideias progressistas e admiração pelo novo, a integração entre passado e presente através do reuso adaptativo pode apontar para uma nova direção no pensamento arquitetônico e urbanístico. Ao demonstrar que não é preciso subtrair ou somar espaços físicos num tecido urbano preexistente, a transformação de locais com potencial oferece ganhos que vão além de resultados físicos: preservam a memória através das diferentes camadas de tempo que podem coexistir no mesmo lugar.
Referências bibliográficas
- “Centro de SP abriga o maior símbolo das ocupações na América Latina” 10 Mai 2018. Exame. Acessado 17 Out 2019. <https://exame.abril.com.br/brasil/centro-de-sp-abriga-o-maior-simbolo-das-ocupacoes-na-america-latina/>
- Emilio Sant'Anna, Marlene Bergamo. “Movimento pede concessão de edifício ocupado no centro de SP” 20 Ago 2019. Folha de São Paulo. Acessado 17 Out 2019. <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/08/movimento-pede-concessao-de-edificio-ocupado-no-centro-de-sp.shtml>