A palavra espanhola medianera carrega um significado que, em português, poderia ser traduzido como “empena cega", no entanto seu sentido na língua hispânica ganha uma apreensão cultural e de vivência urbana se pensada em termos locais. Esse elemento arquitetônico que, ao mesmo tempo, parece separar e vincular lotes vizinhos de forma tão marcante, é recorrente em cidades da América colonizadas pela Espanha. No caso argentino, a cidade de Buenos Aires se consolidou a partir dos preceitos daqueles que chegaram ao território com as réguas da quadrícula e o rigor da organização ortogonal e se desenvolveu a dentro dessa lógica que chegou aos dias de hoje a uma situação urbana recorrentemente marcada pela presença desses elementos duros e aparentemente inadiáveis que são as medianeras.
Enquanto preexistência comum na cidade e um importante elemento incorporado ao cotidiano e cultura locais, elas suscitam uma lógica própria quando são elementos com os quais os projetos arquitetônicos contemporâneos devem lidar. As mesmas condições que a definem enquanto divisória, limite, muro, junto ao traçado urbano da cidade, sugerem ao projeto de arquitetura o caminho do paralelismo, do enclausuramento, de uma forte tendência ao comprimento, da ausência de aberturas e, muitas vezes, de uma rigidez convocada por seu papel estrutural nos edifícios. Apesar disso, algumas práticas de desenho desafiam ou se aproveitam desses preceitos “naturais” sugeridos por esse tipo de preexistência e tensionam a dimensão simbólica, imagética e material desse elemento.
É o caso de um conjunto de projetos residenciais construídos pelo escritório Monoblock, com sede em Buenos Aires e em atividade desde 2006. Fundado pelos arquitetos Marcos Amadeo, Fernando Cynowiec, Juan Granara, Adrián Russo e Alexis Schächter, trabalha em projetos de diversas escalas, circulando por diferentes áreas de atuação dentro do espectro da arquitetura, da cidade ao edifício, passando pelo paisagismo e discussões urbanas. Talvez a primeira coisa que salte aos olhos passando pelo portfólio do grupo seja a grande expressividade e tectônica das obras, que sempre parecem ser o resultado de uma grande pesquisa e interesse pela técnica, pelo canteiro e pelas possibilidades materiais da construção. Com o olhar mais aproximado, essa austeridade aparente vai se dissolvendo nas nuances de cada proposta, nas especificidades no tratamento de questões projetuais e na riqueza de espaços, condições de iluminação, e a surpresa dos detalhes típica das boas obras de arquitetura.
Dentre as diversas fontes de interesse que o trabalho do escritório desperta, o trato com as medianeras em projetos residenciais revela uma característica própria de sua prática e aponta para uma forte tendência à subversão das lógicas inertes a partir dos próprios elementos que compõem o conjunto das arquiteturas. Mais do que isso, permite observar como esses caminhos se dão em uma escala aproximada, doméstica, cheia de pistas das operações recorrentes que caracterizam uma abordagem dotada de diversos recursos de tensionamento das condições pré-estabelecidas.
Esse conjunto de projetos que funciona como objeto de análise das operações tem como seu primeiro representante o edifício residencial Uriarte, de 2008. Desde o térreo, o projeto já sugere um acesso que não se dá de forma paralela à orientação sugerida pelas empenas que limitam o lote em todo seu perímetro. O portão faz um giro em relação a essa orientação, encaminhando aquele que adentra o edifício a um percurso pouco objetivo e rigoroso em termos da geometria. Esse primeiro gesto simples, confronta de alguma forma a própria disposição do corpo com a disposição do construído em uma cota inicial onde todo o espaço ainda se encontra enclausurado pelas empenas e condicionado por um uso prático de vagas de estacionamento para carros. Mais adiante, no passar do desenvolvimento vertical do edifício, esses sinais de confrontamento ganham outros contornos. O vão entre os pilares centrais da estrutura de concreto permitem criar, a cada pavimento, uma abertura nas lajes bem na metade do lote, dando passagem à luz natural zenital ao coração do terreno, que caso fosse inteiramente ocupado, seria privado desse conforto pela condição de enclausuramento dada pelas paredes externas. Essa estratégia de furos na laje, cada andar a sua maneira, vai se combinando em altura, a partir do segundo andar, à conformação de um pátio posterior que, além de reforçar a possibilidade de entrada de luz e vento aos ambientes internos do conjunto, descola a massa construída do limite de trás do terreno, em um ato de afastamento que dá enorme leveza e nega a condição de fechamento triplo que a planta do lote sugere.
Furar, girar e afastar, operações aos quais foram submetidos os elementos básicos da composição construtiva, nesse caso produzem uma sequência de plantas dinâmica e se complementam por ações parecidas feitas em relação ao corte, ao escalonar - o que também pode ser pensado em termos de afastamento -, as varandas criadas no volume. Essa pesquisa constante das formas de lidar com os lotes típicos da cidade a partir dessas operações encontrou grande expressividade em dois projetos realizados pela oficina em 2011. O primeiro deles, o edifício Acha, estabelece, a partir de uma reflexão sobre as formas de morar contemporâneas, diversas tipologias de unidades sob um mesmo conjunto. Quando visto de frente, o edifício não revela prontamente toda a potencialidade da exploração da implantação do projeto. As plantas, densamente ocupadas, se aproveitam da multiplicidade de tipologias para estabelecer um jogo entre si, como revela o próprio memorial descritivo formulado pelo escritório:
A volumetria do edifício, a partir do terceiro pavimento, rompe as lógicas do lote tradicional de buenos aires, criando uma frente na lateral, que coincide com a melhor orientação e as melhores vistas, aproveitando a altura menor dos vizinhos e a presença da praça Zapiola. [1]
Em termos de forma, esse “romper de lógica” ocorre a partir da variação de orientação das unidades, que nunca configuram uma planta-tipo do edifício, mas se adaptam, de andar a andar, a uma organização diferente. Esses giros entre unidades sobrepostas estabelece situações de varanda ao longo do edifício e confrontam transversalmente a tendência de comprimento sugerida por uma situação de lote que, apesar de não apresentar altas empenas a princípio, se organiza como lote típico que poderia ter esses elementos, ou que deve esperar pela possibilidade de vizinhos geminados a qualquer momento. Nesse caso, o escritório assume um risco em termos de composição de vistas do projeto, mas reafirma um discurso preocupado em lidar sem automatismos com as condições preexistentes ao desenho. De certa forma, a pesquisa tipológica, material e de inserção do construído iniciada nessa proposta, tem uma sequência no projeto do mesmo ano para o edifício Jufré. Na ocasião, o escritório continuou a reflexão sobre as formas de habitar na cidade, sempre lidando com os limites oferecidos pelos parâmetros típicos dos terrenos. Nesse caso, a investigação se coloca de forma mais radical, desviando o próprio edifício dos critérios de ocupação do código de edificações e dos padrões mercadológicos, outro personagem de confrontamento na prática do escritório. No edifício Jufré, se estabelece uma associação entre lotes que permite levar a um lugar atípico em termos de qualidade da ocupação do espaço disponível. Além disso, mais uma vez, aparecem os recursos do pátio interno, fonte de luz e ventilação para todos os ambientes, além de uma divisão entre volumes que proporciona mais espaço vazio que contribui para a qualidade interna. Outro aspecto interessante no caso do edifício Jufré é a forma como a proposta lida com a forma de sobreposição dos níveis que a multiplicidade de usos convoca no desenho, uma vez que cada unidade se organiza a partir das próprias demandas e os deslocamentos produzidos por essa diversidade são sempre aproveitados como aberturas ou possibilidades de escalonamento.
Resultado de um trabalho de parceria entre o Monoblock e o escritório Estudio Nomade em 2012, o edifício Demaria também se vale do programa de habitação coletiva para propor um edifício em um lote confrontado com a lógica das empenas. Mais uma vez, mesmo sem atuais vizinhos altos, a configuração do terreno segue os preceitos de um desenho urbano típico da cidade que cria uma situação curiosa para os projetos: mesmo quando as medianeras não estão lá, elas estão sugeridas. Elas podem aparecer a qualquer momento e, no limite, estão virtualmente presentes nessa organização de lotes geminados. No caso desse projeto, a estratégia é se aproveitar dessa condição para, de fato, construir empenas nas laterais do edifício, o que permite que os espaços vençam o vão total da frente de lote sem a necessidade de elementos estruturais complementares. Ao liberar o espaço interno de pilares, o papel das empenas é ressignificado pelo aproveitamento das oportunidades que essa condição oferece. Apesar da fachada marcante e contínua sugerir uma imagem de densidade, os vãos livres dos espaços internos são pensados de forma pontual, a partir das demandas de cada tipo de apartamento, sempre otimizando o aproveitamento das superfícies sem abrir mão de vazios e pátios que contribuem para uma imagem de leveza que o projeto apresenta internamente.
Apesar de ser uma exceção em relação ao conjunto de obras comentado até agora, a Casa Castillo, projeto realizado pelo escritório em 2018, é um exemplo interessante da renovação do discurso do escritório em uma produção mais recente. A cidade de Buenos Aires representa um território tão específico para os arquitetos que, mesmo se tratando aqui de uma residência unifamiliar vinculada a um ateliê, o tipo de lote se aproxima dos demais projetos residenciais mencionados. Dessa vez, o terreno comprido e estreito, condicionado por medianeras, recebe o volume do tipo casa chorizo, uma tipologia recorrente na cidade. Essa tipologia já aponta para os caminhos de confrontamento em relação à condição do terreno, já que se caracteriza por apresentar um pátio contínuo longitudinal que acompanha toda a dimensão de profundidade do lote. Trata-se de uma estratégia que afasta o limite da casa do limiar do terreno, negando uma fachada cega e criando uma fachada aberta, que, pela presença desse pátio, pode usufruir de luz e ventilação naturais. O desenho dessa relação pátio-nova fachada é tão radical nesse caso que, em elevação, a proporção entre superfície construída e superfície livre é de um para um, ou seja, tão importante quanto o volume habitável construído é a liberação de um espaço respirável na concepção da casa como um todo.
Além de repetir a operação de afastamento, recorrente em outros projetos, o caso da Casa Castillo introduz novas perspectivas nas discussões suscitadas pela prática do escritório ao incorporar materiais e sistemas estruturais mais leves do que o típico concreto armado aparente das demais obras, dando espaço para novos elementos contribuírem na leitura que coloca em diálogo sólido e vazio, construído e livre, aberto e fechado, pesado e leve. Aqui, a reflexão ganha uma nova expressividade material, mas segue perseguindo as melhores formas de garantir que o projeto seja autor de sua própria narrativa, e não uma mera consequência das condicionantes dos lotes da cidade.
As formas como a arquitetura se expressa em todos esses exemplos são produto de uma reflexão discursiva que ganha contornos na materialidade das construções. A consistente produção do Monoblock é, nesse sentido, fonte para levantar questões sobre como a própria prática se transforma em resultados físicos sem perder as possibilidades de tensionamento, reflexão, revisão e reafirmação de ideias ou discussões teóricas do campo. Nesse caso, a forma como o escritório opera em relação a um lote típico da cidade e sua mais recorrente preexistência, a da condição intrínseca à medianera, pode ser entendida como uma amarração absolutamente coerente entre teoria e técnica, com um forte caráter local.
Nota:
[1]: Tradução livre do trecho do memorial de projeto enviado pela equipe do escritório à Plataforma Arquitectura.
Adaptação de artigo originalmente desenvolvido no âmbito da disciplina eletiva "Edifícios Baixos e Médios de Habitação Coletiva em Buenos Aires: Uma Experiência Contemporânea" da Escola da Cidade, ministrada pelo professor Carlos Ferrata.