As figuras humanas ganham protagonismo frente aos edifícios e ruas nas lentes do fotógrafo Carlos Moreira, 82. O espaço urbano aparece retratado a partir de recortes, não apenas sugeridos pelos monumentos históricos (eles estão lá), mas sobretudo pelo corpo e suas ações. Disso emerge uma visão emocional e viva das cidades; capaz de provocar uma expansão sensorial dos retratos dos espaços.
São Paulo e o litoral (Santos e Guarujá) são o pano de fundo principal de suas composições, além das derivas pela América do Sul, América do Norte, Ásia e Europa. Em suas fotos batidas ao longo de cinco décadas, a passagem de tempo das cidades se mostra pelas vestimentas e – o que talvez seja o mais surpreendente nas imagens – também pelos trejeitos, expressões e posições corporais que assim como a arquitetura, denunciam sua idade.
Para Moreira, a arte poderia ser dividida entre o clássico e o barroco. As 350 ampliações fotográficas exibidas na mostra “Carlos Moreira: retrospectiva – WRONG SO WELL” (Centro Cultural Porto Seguro, realizada em 2019) traduzem a translação entre esses dois polos na sua produção fotográfica. Resultado da imersão em um acervo de 220 mil cliques, a exposição traçou um novo olhar panorâmico sobre o veterano que tem no currículo exposições em museus como o PS1 em Nova York e o Pompidou em Paris.
As imagens em preto e branco dos anos 60 e 70 mostram um fotógrafo preocupado com a geometria, simplicidade, ritmo e precisão; características de um temperamento clássico do artista, que teria em Henri Cartier-Bresson (e seu instinto pela proporção áurea) a referência máxima na fotografia. Nessa fase, Moreira – munido de sua câmera de filme 35mm – procura a redução de estímulos imagéticos em composições sintéticas, com relações geométricas.
A ruptura de sua obra com os preceitos clássicos se anunciava a partir da segunda metade dos anos 70. O estalo surge a partir da ampliação de uma de suas imagens na qual um senhor com terno surrado espia furtivamente jornais no Viaduto do Chá. Na parte superior da imagem, um bulbo elétrico sem lâmpada equilibra o peso visual da composição.
“Quando olhei para esta foto, naquele momento, entendi que o mundo que eu fotografava até então estava em decadência, que algo tinha se quebrado. A pureza da abordagem de Cartier-Bresson, que tinha me inspirado fundamentalmente até então, precisava de novos elementos. Era preciso mudar”, lembra Moreira.
Logo depois, a partir dos anos 80, o fotógrafo desenvolve alergia aos químicos do laboratório P&B. Os filmes coloridos, processados em minilabs automáticos e herméticos, surgem como alternativa para a vazão do impulso produtivo do fotógrafo. A obra de Moreira ganha potencia justamente no trabalho em cores.
As cores de Moreira e o esgotamento da rigidez da linguagem clássica explorada por 20 anos são a chave de entrada do elemento barroco por meio do descontrole, espontaneidade, excesso, transgressão, estranhamento e conquista do sentimento frente à razão em suas fotos. Se a sua linguagem clássica trazia Cartier-Bresson como referência, a descoberta do barroco vem aparada por uma admiração a outros fotógrafos do pós-guerra tais como Robert Frank.
O título de sua mais recente exposição realizada em São Paulo se inspira em uma anotação em inglês do próprio Moreira que explicita justamente esse seu novo olhar em busca do descontrole, do imprevisível, do imperfeito: “I like when you do it right. But I really love when you do it wrong so well” (Gosto quando você acerta. Mas realmente amo quando você erra tão bem).
Em uma era de exacerbada produção de imagem, Moreira decanta sua obra pelo tempo: o processo intelectual de reflexão sobre a imagem pelo fotógrafo, o instante fotográfico, a revelação, o arquivamento no estúdio por décadas de imagens inéditas e o trabalho de seleção de imagens para as mostras. O mundo da fotografia vive hoje uma onda de redescobertas de acervos ainda pouco explorados. Nessa toada, a obra de Moreira deve itinerar pela Europa nos próximos anos e reposicionar a sua incrível e vasta produção no cenário internacional.
Olhar para as fotografias de Moreira é descobrir e redescobrir espaços urbanos que nos são tão familiares, mesmo que nunca estivemos por lá. O fotógrafo atua como um mediador – seja em seu período clássico, seja no barroco – dessa imersão na memória sensorial e afetiva dos percursos urbanos, na desaceleração do tempo cotidiano que nos faz parar pela rua e observar uma cena, uma imagem, uma foto.