Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável: da teoria aos territórios

Com o avanço acelerado da emergência climática e a consolidação de um planeta urbanizado, o desafio de transformar as cidades e regiões metropolitanas em ambientes mais inclusivos e sustentáveis passa pela diminuição dos impactos negativos do transporte. Reduzir as distâncias viajadas pelos habitantes, aproximar as residências do trabalho e das oportunidades, promover a substituição do transporte individual motorizado pelos modos ativos ou coletivos e criar territórios mais plurais e democráticos são resultados de políticas alinhadas com o enfrentamento dos desafios planetários do século XXI. Implementar as transformações necessárias no território urbano em escala global, considerando também as particularidades locais, é um desafio ainda maior, porém necessário para um futuro mais sustentável.

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Atuando como um guarda-chuva conceitual, o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS) tem servido para orientar planos e projetos urbanos em diversas cidades do planeta. O DOTS prevê a criação de territórios que aproveitem de forma eficiente o espaço, que promovam a vitalidade e a diversidade urbanas, que garantam a proximidade e estejam integrados com as demais áreas da cidade. Em 2010, o ITDP consolidou oito princípios de desenvolvimento orientado ao transporte sustentável: compactar a área urbanizada para encurtar as distâncias; adensar a ocupação territorial de forma correspondente à capacidade ao transporte coletivo; misturar os usos do solo para estimular a diversidade demográfica e de renda; mudar a prioridade de distribuição do espaço viário; integrar as diversas regiões por sistemas de transporte coletivo de qualidade; criar bairros que estimulem a caminhada; priorizar redes de mobilidade por bicicleta.

8 princípios do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável. Fonte: Padrão de Qualidade DOTS 3.0 / ITDP Brasil

A aplicação integral dos princípios do DOTS no território ainda parece muito distante das cidades brasileiras, que cresceram de forma desordenada, pouco inclusiva e seguindo o paradigma do deslocamento por automóvel (grandes distâncias percorridas de forma pouco eficiente). No entanto, algumas ferramentas e metodologias tem auxiliado gestores e planejadores urbanos a materializar projetos transformadores em diferentes escalas: de planos diretores a melhorias pontuais em áreas específicas das cidades, do planejamento de corredores de transporte público à proposição de melhorias em rotas de pedestres.

Potencial de DOTS em Corredores de Transporte

Em 2014, o ITDP Brasil concebeu a Ferramenta para Avaliação do Potencial de DOTS em Corredores de Transporte, inspirada em pesquisas internacionais que buscavam estabelecer diretrizes de planejamento para o entorno de estações de transporte. No início de 2015, foi realizada uma aplicação piloto no corredor de BRT TransCarioca e, ao final daquele ano, a primeira versão da metodologia foi disponibilizada ao público. “Toda a discussão do conceito de DOTS está na necessidade de integrar desenvolvimento urbano e transporte. A metodologia é capaz de juntar esses dois elementos, sendo flexível o suficiente para auxiliar tanto no planejamento do traçado de corredores, quanto em projetos e planos para o entorno das estações de um corredor já construído”, comenta Iuri Moura, Gerente de Projetos de Desenvolvimento Urbano do ITDP Brasil.

A ferramenta teve sua versão definitiva lançada em setembro de 2016 após revisões e ajustes sugeridos por parceiros e especialistas. Neste período, o ITDP Brasil firmou um convênio com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (EMPLASA) e começou a aplicar a metodologia em cinco corredores de transporte planejados, em implantação ou em operação na sub-região Oeste da região metropolitana de São Paulo, avaliando o entorno de 96 estações. Os resultados foram apresentados a técnicos e gestores da região e subsidiaram o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) metropolitano. O PDUI foi apresentado à sociedade e prefeituras da região, teve sua versão final aprovada em abril de 2019 pelo Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de São Paulo e será transformado em projeto de lei pelo Executivo.

A experiência de Niterói

No início de 2017, o município de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro, havia concluído a revisão de seu Plano Diretor e a prefeitura iniciava os estudos para o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) e para a Lei de Uso e Ocupação do Solo (LUOS). Neste mesmo período, as obras do corredor de BHLS TransOceânica estavam sendo concluídas, com cerca de 10km de pistas exclusivas para ônibus. A Secretaria de Urbanismo e Mobilidade (SMU) decidiu utilizar a metodologia desenvolvida pelo ITDP Brasil para avaliar o entorno do corredor e pensar em intervenções que pudessem conter o espraiamento urbano e melhorar as condições de vida e mobilidade. A chamada região oceânica de Niterói é o principal vetor de expansão urbana da cidade. Com ocupação recente e baixa densidade populacional, a região ainda é qualificada como “macroárea de qualificação” no Plano Diretor, ou seja, necessita de intervenções básicas como saneamento e ordenamento viário.

A coincidência entre o final das obras do TransOceânica e a formulação do PMUS e da LUOS apareceu como uma oportunidade para a SMU. “O DNA da nossa secretaria e da equipe de trabalho envolvida é planejar de forma integrada a mobilidade e o uso do solo. Sabemos que é importante estimular a mudança de hábitos dos cidadãos, diminuindo o uso do carro, e que a forma urbana tem um papel fundamental nisso. Niterói possui uma malha viária restrita e um grande número de viagens de carro, isso é insustentável”, afirma Rogério Gama, geógrafo e Subsecretário de Urbanismo e Mobilidade.

O processo de utilização da ferramenta na avaliação do entorno do TransOceânica pela SMU foi realizado em parceria com o ITDP Brasil e trouxe aprendizados importantes para as equipes envolvidas. Em primeiro lugar, foi necessário organizar e produzir bases de dados que ainda não estavam reunidas no município. O trabalho durou alguns meses e também ajudou a constituir o portal de informações georreferenciadas da cidade, o SiGeo. Outro aprendizado importante na avaliação de Rogério Gama foi com relação ao trabalho de campo: “ainda que boa parte das análises possa ser feita através de bases de dados, é imprescindível visitar os territórios. Algumas coisas são superdimensionadas ou subdimensionadas se olhamos apenas para os dados, como por exemplo a conectividade do espaço urbano. Muitas vezes o trabalho de gabinete não permite enxergarmos a existência de algumas barreiras ou locais com pouca vitalidade, que podem dificultar o acesso ao corredor de transporte, a caminhada ou o uso de bicicletas”, destaca.

Condomínio fechado no entorno do BHLS TransOceânica. Barreira urbana para a caminhada e o uso de bicicletas. Foto: Beatriz Rodrigues / ITDP Brasil

Com os dados organizados, foi possível aplicar a metodologia. O trabalho identificou que 54% das áreas no entorno das estações possuem médio potencial de receber projetos de DOTS e 38% possuem alto potencial. Além disso, a análise permitiu a identificação de centralidades de bairro existentes no entorno do corredor, ajudando a planejar o adensamento destas regiões. Os resultados e recomendações foram compiladas no relatório Avaliação do Potencial de DOTS no corredor de BHLS TransOceânica (Niterói-RJ), publicado em abril de 2018. As informações produzidas durante a análise foram incorporadas às discussões do PMUS e da LUOS. Na metodologia formulada pelo ITDP Brasil, a análise do entorno das estações acontece em duas etapas: avaliação das condições do espaço urbano para o desenvolvimento de projetos de DOTS e identificação da percepção de atores qualificados sobre a viabilidade dos projetos. No caso do Transoceânica, a segunda fase foi realizada durante o processo participativo do PMUS.

VLT

A experiência da prefeitura de Niterói com a Ferramenta para Avaliação do Potencial de DOTS em Corredores de Transporte no entorno do corredor TransOceânica motivou uma nova experiência, desta vez na avaliação do traçado e da localização das estações de uma linha de VLT inicialmente proposto para a região sul da cidade. Em corredores com traçado já estabelecido ou em funcionamento, como o BHLS Transoceânica, a ferramenta serve para ajudar a identificar quais áreas possuem o maior potencial de receber projetos de requalificação ou desenvolvimento urbano. No caso do VLT, a ferramenta ajudou a redefinir o traçado da linha, identificando áreas com maior potencial de transformação e adequação aos princípios do DOTS do que as inicialmente propostas.

Estação do BHLS TransOceânica, em Niterói. Foto: Beatriz Rodrigues / ITDP Brasil

O estudo de pré-viabilidade do VLT foi financiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e tinha como foco inicial a conexão entre as regiões sul e centro de Niterói, mas as primeiras avaliações esbarraram em conclusões pouco animadoras com relação ao potencial de transferência modal (integração entre o VLT, as barcas e o BHLS). A SMU propôs então a utilização da metodologia desenvolvida pelo ITDP Brasil para avaliar um outro trecho, que conectaria a região norte ao centro da cidade. “Os técnicos tinham a intuição de que esse outro trecho era mais interessante, com a capacidade de provocar a requalificação de áreas importantes da cidade, com potencial de adensamento e diversidade, além de garantir a demanda necessária para o VLT”, afirma Rogério Gama. A hipótese foi confirmada pela aplicação da metodologia, realizada pelos técnicos da SMU. A AFD foi convencida através da análise e irá financiar, ao longo de 2020, o estudo de viabilidade da linha de VLT no trecho norte.

Na escala do pedestre

Linhas de transporte coletivo como as de Niterói ou São Paulo possuem papel estruturante no território, sendo capazes de alavancar transformações urbanas, sociais e econômicas em bairros e regiões inteiras. Técnicos, acadêmicos, empresas privadas e órgãos públicos desenvolveram, ao longo de décadas, diversas ferramentas para auxiliar no planejamento, implementação e operação de sistemas de transporte coletivo. No entanto, sob a perspectiva do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável, uma escala fundamental muitas vezes não é considerada nos projetos de transporte ou de desenvolvimento urbano: a do pedestre. O olhar técnico sobre a caminhada ainda carece de metodologias capazes de produzir diagnósticos completos para a construção de soluções adequadas. Além disso, o debate dentro e fora dos órgãos públicos muitas vezes reduz as necessidades do pedestre à existência de calçadas ou faixas de travessia, desconsiderando outros elementos que tem potencial de estimular ou desestimular a realização de viagens a pé, tais como a arborização, a distância até o transporte público, a tipologia de fachadas e lotes, as condições de segurança pública ou mesmo a qualidade das calçadas e travessias.

Categorias de avaliação do Índice de Caminhabilidade. Infográfico: ITDP Brasil

Em 2015, o ITDP Brasil começou a desenvolver uma metodologia para avaliar de forma mais completa as condições da mobilidade a pé nas cidades. A primeira versão do Índice de Caminhabilidade foi desenvolvida em parceria com o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) e com a Pública Arquitetos. Neste primeiro momento, o objetivo era garantir a boa qualidade do espaço do pedestre após as transformações pelas quais passava o centro do Rio. A primeira aplicação aconteceu no entorno da Praça Tiradentes, que recebeu a classificação de “aceitável” e uma pontuação de 1,4 numa escala de 0 a 3. A partir da análise da região com o foco nas seis categorias do Índice (Segurança viária, Atração, Calçada, Ambiente, Mobilidade e Segurança Pública) formulou-se um conjunto de recomendações, muitas delas de fácil execução (tais como a redução das distâncias de travessia, a iluminação de faixas de pedestre ou a redução dos limites de velocidade) e outras um pouco mais complexas (como a criação de áreas residenciais ou a diminuição dos índices de poluição sonora).

O Índice de Caminhabilidade é uma ferramenta de avaliação do espaço da rua sob a ótica do pedestre. Seu objetivo é subsidiar as políticas públicas a partir da avaliação em duas escalas: a experiência do pedestre e a forma urbana. A ferramenta está estruturada em 6 categorias compostas por indicadores que abrangem o que é prioritário para quem caminha. A análise é feita a partir de segmentos de calçada, trecho entre cruzamentos adjacentes à uma determinada quadra, incluindo cruzamentos não-motorizados, sendo realizada através de coleta de dados secundários e realização de pesquisa de campo para levantamento de dados primários. “A mobilidade a pé é a alma do Desenvolvimento Orientado ao Transporte, pois une todos os outros conceitos. O Índice serve como um ‘termômetro’ dos espaços urbanos, indicando os pontos críticos e aqueles que estão adequados aos pedestres”, pontua Danielle Hoppe, Gerente de Transportes Ativos do ITDP Brasil.

Em 2017, a ferramenta passou por uma reformulação: o número de indicadores foi reduzido (de 21 para 15) para simplificar o processo de coleta. Além disso, foi disponibilizada uma planilha de cálculo e formulários para a coleta de dados em campo. A versão 2.0 foi aplicada inicialmente no bairro Santo Cristo, no centro do Rio de Janeiro. Parte da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, o bairro passou por um significativo processo de requalificação urbana com o reordenamento viário e intervenções para a mobilidade urbana, além de mudanças no perfil de uso dos lotes.

A pesquisa revelou que, apesar de toda a infraestrutura urbana construída e requalificada (incluindo 3,5km de passeio público e uma linha de VLT), as condições de caminhabilidade na região ainda eram “insuficientes”, atingindo uma pontuação de 0,9 em uma escala de 0 a 3. Itens como o baixo fluxo de pedestres durante o dia e a noite, o pequeno número de fachadas ativas, a pouca mistura de uso do solo e ausência de travessias em muitos trechos afetam negativamente aspectos como a segurança viária, a atração e a segurança pública. Uma parte da avaliação negativa destes itens decorre do processo ainda em curso de transformação da região, já que muitos lotes e edificações seguem vazios ou subutilizados. Além da avaliação de cada uma das categorias, o relatório final apresenta recomendações para cada uma das categorias, além de sugestões específicas para algumas vias.

O Índice de Caminhabilidade foi utilizado por empresas e órgãos de planejamento em outras cidades do Brasil e América Latina. Em Brasília (DF), o Índice foi aplicado em 2015 pela então Secretaria de Mobilidade do Governo do Distrito Federal na formulação do Plano de Mobilidade Ativa da Capital Federal. O plano não chegou a ser publicado, mas uma apresentação com os resultados está disponível aqui. No município de Queimados (RJ), o Índice foi aplicado no diagnóstico realizado para a reestruturação urbana do entorno da estação de trem, dentro do projeto Conectar Queimados (ver Produto 2 neste link). Em 2018, o Observatório del Espacio Público de Bogotá (Colômbia) utilizou a metodologia desenvolvida pelo ITDP Brasil em um relatório de indicadores do Espaço Público. Além destas aplicações, a metodologia foi utilizada em trabalhos Trabalhos de Conclusão de Curso, como este produzido na Universidade Federal de Santa Catarina e artigos de pós graduação e pesquisa, como esta avaliação do centro de Ouro Preto (MG).

As duas ferramentas desenvolvidas pelo ITDP Brasil estão disponíveis para download e podem ser utilizadas livremente por técnicos, gestores, pesquisadores e demais interessados no tema. As publicações apresentam instruções e referências detalhadas, além de modelo de planilhas de cálculo e formulários. O Índice de Caminhabilidade e a Ferramenta para Avaliação do Potencial de DOTS em Corredores de Transporte são instrumentos de fácil utilização, que auxiliam a materializar em projetos e intervenções urbanas os princípios do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável nas cidades do século XXI.

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Sobre este autor
Cita: ITDP Brasil. "Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável: da teoria aos territórios" 21 Fev 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/933994/desenvolvimento-orientado-ao-transporte-sustentavel-da-teoria-aos-territorios> ISSN 0719-8906

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