Quando o período de confinamento e de ampla contaminação da epidemia estiver encerrado não seremos mais os mesmos. Esta frase vem sendo dita e repetida, e realmente a sociedade mundial não será mais a mesma. Possivelmente muitas relações de trabalho irão mudar, e muitas legislações poderão sofrer adequações permitindo que a tecnologia passe a ser uma aliada nas relações entre empregador e funcionário, resultando inclusive em um impacto positivo nos aspectos de mobilidade, meio ambiente e consumo de energia.
Porém o foco desta discussão é iniciar um debate considerando os imensos desafios que as cidades terão nos próximos anos, que serão de reconstrução de uma crise sem precedentes. O forte impacto econômico que a quarentena vai causar, e já está causando, no país e no mundo, impactará também na disponibilidade de recursos para investimentos em novas infraestruturas de espaços públicos em cidades.
Independentemente da estratégia que será empregada para reerguer a economia do país, alguns aspectos podem começar a ser pensados. Os municípios, que já estavam sofrendo com a pouca disponibilidade de recursos livres para investimentos, terão ainda mais dificuldades para implementar novos projetos, em especial de espaços públicos, o que poderá, com o tempo, aumentar a crise social das cidades.
Não é preciso lembrar da relevância dos espaços verdes de lazer, esporte e cultura na configuração de cidades mais justas, inclusivas, saudáveis e economicamente dinâmicas. Porém, antes mesmo da crise do COVID-19, eram raros os programas federais para estruturação de espaços públicos como parques e praças. A grande maioria dos recursos, provenientes do ministério do turismo, não podem ser aplicados em praças e parques de bairros e periferias pois estes normalmente não atendem o critério de serem pontos de interesse turístico. São mandados para as cidades um não sei quanto de recursos para academias ao ar livre, mas os valores são tão baixos que muitas vezes os equipamentos são colocados em terrenos sem iluminação, calçadas ou mobiliários urbanos, pois os recursos dos municípios para complementar as emendas são escassos.
Muitas emendas impositivas de deputados devem ser lançadas através dos programas federais existentes e, de fato, não há no país, há muitos anos, programas massivos para estruturação de áreas verdes em bairros de vulnerabilidade social por exemplo, justamente locais onde os espaços públicos são fundamentais. As pessoas que habitam as comunidades em vulnerabilidade vivem em casas ou apartamentos muito pequenos, sem infraestrutura, sendo os maiores beneficiários das áreas públicas. O país também conta com um déficit habitacional e de saneamento que nos coloca em uma situação delicada para o futuro.
Mesmo durante a epidemia, a possibilidade de realizar uma atividade física em espaço aberto, respeitando o distanciamento social indicado, exige áreas verdes amplas, onde as pessoas possam caminhar, correr ou andar de bicicleta sem se aproximar. E é justamente nos bairros mais vulneráveis, que nos ressentimos desta áreas. Com escolas fechadas muitas crianças terão que passar por esse período de isolamento social dentro de espaços minúsculos muitas vezes insalubres.
Temos que pensar no enfrentamento imediato da situação do isolamento, por exemplo, como deixaremos pessoas trancadas sem atividades físicas durante 40 ou 60 dias? Algumas tendo prescrição médica inclusive para caminhadas diárias? A solução que vem sendo usada em New York e talvez em outras cidades, de fechar ruas para que, durante a quarentena, as pessoas possam fazer atividade física respeitando os 3m de distanciamento pode ser um indicador. Claro que esta definição vai depender da conscientização sobre o compromisso de cada um em manter o distanciamento físico durante a atividade.
Mas também temos que parar e pensar no futuro: como criaremos mais áreas públicas como praças e parques após o COVID-19? Quais estratégias os municípios poderão lançar mão para devolver às suas comunidades o sentimento de apropriação à cidade? Como gerenciaremos recursos para esses investimentos?
Claramente que, uma situação sui generis como essa nos exigirá soluções inovadoras. Sabemos que outras epidemias já causaram essas transformações urbanas, como por exemplo o urbanismo higienista, resultado das epidemias de cólera de meados do século XIX.
Algumas soluções já implantadas em outros países podem nos dar um direcionamento. À exemplo cito o caso de Copenhagen, onde as escolas não possuem mais área de pátio fechado. As áreas livres das escolas são hoje praças públicas onde, além dos alunos, toda a comunidade pode utilizar, inclusive concomitantemente. Outra solução da capital Dinamarquesa foi a transformação das áreas internas privadas de pátios dos condomínios em praças “semi-públicas” com acesso mais restrito mas de uso comum. Ainda que essas soluções sejam viáveis em um país com os índices de desenvolvimento social da Dinamarca, podemos pensar a partir delas, tendo o cuidado de lembrar que no Brasil enfrentamos a depredação e vandalismo das escolas, mesmo estas sendo cercadas e muradas.
Podemos começar a discutir uma estruturação mais integrada dos espaços públicos nas cidades. Quer seja no planejamento urbano, trabalhando com legislações que incentivem a área de uso comum em frente a edificações privadas, tirando proveito do recuo frontal por exemplo para criar áreas mais amplas, verdes e ventiladas na cidade, ou na interpretação integrada do planejamento dos espaços públicos e equipamentos. Em muitos bairros a escola pública é o único espaço público, e deveria ser tratada como um centro, um ponto focal onde as ações da prefeitura se fundamentem, uma presença do poder público no bairro.
Também, é comum que a municipalidade não possua áreas de terreno para implantar praças abertas em bairros já estruturados, e, ainda que possuísse o recurso financeiro, não teria o local físico para colocar uma praça. Em outros bairros vemos uma sobreposição de investimentos e esforços, por exemplo, temos o ginásio da escola e em frente ou ao lado o ginásio da associação de moradores, sendo muitas vezes ambos estruturas precárias. Se houvesse um bom ginásio, bem estruturado e gerenciado não poderia atender a ambos?
Começo a questionar aqui falta de planejamento integrado de ações, comum na grande maioria das cidades brasileiras, bem como a dificuldade no trabalho de gestão comunitária. Não poderia haver uma ferramenta de gestão para integrar o uso dos equipamentos já existentes como espaços públicos para as comunidades? A escola poderia estar com sua área livre aberta aos finais de semana para que todas as crianças usufruíssem dos brinquedos e das quadras esportivas? Não seria até mais econômico trabalhar com ações de educação e segurança do que construir um não sei quanto de equipamentos sobrepostos e que muitas vezes não consideram o aspecto territorial? As ações de saúde preventiva não poderiam estar integradas aos parques urbanos, trabalhando articulados com educadores físicos em busca do controle de doenças crônicas como diabetes e pressão alta?
Outra questão muito relevante a ser discutida: o uso das ruas como espaço público. Não seria nenhum absurdo desenvolver um programa que fechasse uma série de ruas aos finais de semana para fluxo de veículos buscando ampliar o convívio social nos bairros. Na década de 1980 era muito comum que as cidades menores fizessem isso. Fechar a rua para jogar vôlei, taco, futebol, festa junina. Fechar a rua para ter segurança. Será que com o COVID-19 finalmente veremos que um dia da semana podemos parar um pouco e dar lugar para a socialização na cidade?
Seriam estas soluções mais econômicas do que estruturar uma série de novos parques e praças em um momento de crise, elas dependeriam apenas de gestão de processos e não de investimentos públicos altos. Obviamente que estes espaços não substituem as grandes áreas verdes que tanto necessitamos, mas podem começar a suprir uma necessidade mais imediata de áreas livres para uso público.
Em relação às áreas verdes, também cabe lembrar que muitas cidades possuem amplos campus universitários, antigos conventos e seminários hoje desativados, mas com amplas áreas de terrenos, sedes de empresas, sedes de distritos rurais, onde com pouco investimento poderiam ser implantadas soluções de urbanismo tático, criando pontos de grande interesse nestas áreas privadas com acesso público.
Não entrei neste artigo na discussão da moradia e da falta de infraestrutura nas cidades brasileiras pois o tema que queria trazer era a questão dos espaços públicos, mas sim, sabemos que nestes dois aspectos temos desafios homéricos a serem vencidos. Provavelmente, em 2021 muitas cidades passarão a ser governadas por novas equipes, justamente na fase de recuperação da crise. Caberá aos novos gestores garantir um forte corpo técnico frente a suas pastas, experiência que já vem demonstrando sucesso em muitas cidades brasileiras. Secretários com perfil técnico poderão compreender melhor as nuances deste novo momento social que o país enfrentará, oferecendo novas possibilidades para a gestão das cidades.
A intenção deste artigo é propor um desafio para pensar diferente, como fazer melhor, como a gestão pública das cidades brasileiras poderá atuar para melhorar a qualidade de vida da nossa população que sairá um tanto sofrida deste embate ao COVID-19. Como arquitetos e urbanista atuarão propondo novas soluções, novas maneiras de entender e se relacionar com a cidade. Depois da crise teremos pela frente uma batalha árdua que será devolver às cidades seu protagonismo.
Ana Paula Wickert: arquiteta e urbanismo, com mestrado em arquitetura pela UFBA. Secretária de Planejamento de Passo Fundo desde 2013. Autora de livros e artigos sobre o tema de patrimônio e cidades, também foi coordenadora executiva do Programa de Desenvolvimento Integrado BID Passo Fundo. Consultora e palestrante.
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