Há 50 anos atrás Clarice Lispector já apontava o quão difícil era desvendar Brasília: "os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado". Hoje, a capital federal completa 60 anos e continua intrigante para estudiosos, curiosos e qualquer pessoa que se permita tentar conhecê-la melhor. A fim de compreender parte do cotidiano que ali existe convidamos seis profissionais - de diferentes lugares do campo da arquitetura e do urbanismo -, que habitam a cidade, para compartilhar conosco suas visões e trazer mais algumas camadas que ajudam a construir uma interpretação sobre a utopia e realidade que Brasília representa atualmente.
A seguir, veja os textos de Daniel Mangabeira, sócio-fundador do escritório Bloco Arquitetos, Gabriela Cascelli Farinasso e Luiza Dias Coelho, arquitetas graduadas pela UnB e co-fundadoras da coletiva Arquitetas inVisíveis, Maribel Aliaga Fuentes, professora e pesquisadora da FAU-UnB, e Luiz Eduardo Sarmento, arquiteto e urbanista no IPHAN e Conselheiro Superior do IAB-DF, acompanhados pelo olhar único da fotógrafa Joana França sobre a capital brasileira.
Que a utopia vença a distopia
por Daniel Mangabeira - Bloco Arquitetos
Brasília e quarentena são antagônicas. Esta cidade não foi inventada para moradores em clausura. Obviamente nenhuma foi pensada para tal, mas o Plano Piloto de Brasília tem particularidades que tornam a reclusão a antítese do que ela foi pensada para ser. A cidade de filiação francesa de Lucio Costa nasceu livre, aberta e utopicamente democrática. A celebração dessa cidade imaginada e real, portanto, é imprescindível em tempos de confinamento.
O plano piloto não pode ser um exemplo a ser seguido, mas o que aqui é exacerbado, é precisamente o que falta em muitas cidades brasileiras: espaços públicos generosos e democráticos. Ainda que muitos desses vazios verdes insossamente gramados não sejam pensados para ter utilidade, são imprescindíveis para o bem-estar de seus usuários. Brasília, neste sentido, tem grande potencial para ajudar brasileiros a entenderem o que falta em suas cidades quando todos começarem a sair das suas clausuras. Norma Evenson escreveu um artigo onde afirmou que “não há nada no desenho de Brasília que indique um desejo de harmonizar as obras do homem com as da natureza”. Apesar de concordar com essa afirmativa e de saber que o cerrado não está presente em seus vazios – o que é uma pena - ainda assim, os amplos espaços verdes da nossa cidade precisam impulsionar o valor da não ocupação em outras cidades. Qual a importância de um parque para a salubridade? Por que ter árvores na rua? Por que ver o horizonte é importante em uma cidade? Qual a relevância do vazio dentro de um centro urbano? Questões simples e que podem ser facilmente respondidas por quem vive aqui. As cidades brasileiras precisam mais do que nunca de um pouco de Brasília.
O eixo monumental apresenta as obras mais celebradas do Plano Piloto, mas está no eixo rodoviário, nas asas sul e norte, o grande acerto de Lucio Costa. A cidade das padarias, dos bares, da esquina, do encontro, do mercado, da igrejinha, da frutaria, da academia, da floricultura, das escolas e de tudo o que precisamos para viver é monumentalmente humana. Esta é a cidade que deve ser celebrada!
O tributo aos 60 anos da cidade ocorrerá nas superquadras e não na esplanada. Ocorrerá na cidade utilitária, não na representativa. Ocorrerá onde o homem se sente protegido, resguardado e não onde se vê representado. Ocorrerá onde o indivíduo se conecta com seu habitat e não onde apenas com o seu lócus. Ocorrerá por aqueles que moram e fazem suas vidas na cidade e não por aqueles que estão de passagem por quatro anos. Estamos em quarentena, portanto não haverá comemoração, mas certamente haverá justa e necessária homenagem àquela que em sua origem foi feita para ser piloto, mas infelizmente virou exceção. Brasília existe, é linda, imperfeita e sou grato por morar nela.
Brasília: feita apenas por homens?
por Gabriela Cascelli Farinasso e Luiza Dias Coelho - Arquitetas inVisíveis
Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Um ditado tão comum quanto antigo, que por décadas sintetizou bem a relação entre arquitetos e arquitetas, e com Brasília não seria diferente. O processo de criação da nova Capital consolidou para sempre nomes da arquitetura e urbanismo brasileiros, todos homens. Mas ao lado deles houveram mulheres, que no final da década de 1950 estavam quebrando barreiras e escrevendo parte de uma história pouco conhecida. Hoje, completados 60 anos de sua inauguração, é passada a hora de Brasília conhecer e reconhecer as mulheres que ajudaram a construir a cidade, bem como aprender sobre como o olhar feminino pode contribuir para a transformação de espaços com mais segurança, acessibilidade, sustentabilidade e que favoreçam interações sociais positivas.
Brasília foi o sonho alimentado pela vontade de mostrar que poderíamos fazer algo grande, a frente do nosso tempo, algo único e melhor. Foi esse espírito que possibilitou a construção da cidade em tão pouco tempo, e a atuação das primeiras arquitetas e urbanistas em Brasília, seja pela criação da Universidade de Brasília e o seu curso de arquitetura, seja pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital que precisava de mão de obra para a criação e desenvolvimento de projetos para a construção e consolidação da nova cidade. Até mesmo o concurso de Brasília teve papel relevante para possibilitar a atuação profissional feminina.
Apesar da baixa representatividade, sim, havia mulheres projetando em um dos principais concursos de arquitetura e urbanismo da história brasileira. E ainda que a realidade do cerrado fosse tão dura, muitas mulheres vieram para a Capital com suas famílias, outras desbravadoras se aventuraram no pó vermelho do cerrado e vieram trabalhar e estudar na criação da Universidade de Brasília. Entre os registros da passagem feminina pela universidade, há também os relatos orais, as listas de filiação do Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB e as listas dos encontros comemorativos, os quais indicam que em torno de 30 arquitetas estiveram pela capital nos anos de 1960/70, o período de maior impulso na construção local.
Entre elas, destacamos Mayumi Watanabe Souza Lima. Mayumi nasceu na cidade de Tóquio - Japão, e se tornou brasileira em 1956. No mesmo ano ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, concluindo seu curso em 1960. Ela vem para Brasília no início dos anos 1960 com Sérgio Souza Lima, seu sócio e marido, viver o sonho coletivo de criar uma nova Universidade e aqui além de exercer seu papel de instrutora, desenvolve uma dissertação de mestrado, com o título de Aspectos da habitação urbana, onde enfrentou o desafio de transformar uma discussão teórica e crítica em relação à construção da cidade, que estava acontecendo, em uma proposição projetual¹. O projeto de habitação apresentado em sua dissertação se materializou nos blocos da Unidade Vizinhança São Miguel, o primeiro edifício de superquadra projetado por uma arquiteta em 1968.
A arquiteta elaborou uma série de projetos de escolas públicas para o país, tendo participado da construção de algumas delas. Desenvolveu ainda projetos de mobiliário e restauração para colégios. Ao longo de mais de trinta anos de trabalho junto a educadores, administradores de ensino básico, creches e crianças fora e dentro de instituições, discutiu e analisou questões relativas aos espaços destinados à criança em nossa sociedade. Seguindo nessa linha de trabalho, publicou dois livros: Espaços Educativos, uso e construção (Brasília, MEC/CEDATE, 1986) e A Cidade e a Criança (São Paulo, Nobel, 1989).
Mayumi desenvolveu o assunto também a partir da sua experiência acadêmica. Foi professora nas Faculdades de Arquitetura e Urbanismo da UnB, em Brasília, de Santos, de São José dos Campos e da Escola de Engenharia de São Carlos. Era filiada ao Partido Comunista e teve importante papel na discussão sobre a atuação profissional dos arquitetos a partir da crítica ao modo de produção capitalista. Colocava seus alunos em contato com as favelas no primeiro ano de estudo, buscando a politização dos estudantes, pois acreditava na arquitetura aliada às mudanças sociais.
A inquietude e curiosidade que nos fez revisitar a história da arquitetura em busca dos nomes femininos, por meio da coletiva Arquitetas inVisívies, nos presenteou com Mayumi Souza Lima e a Unidade Vizinhança São Miguel. Uma arquiteta que nos inspira com a sua trajetória profissional, engajamento pessoal e um projeto que nos é referência.
Levamos mais de 50 anos para reconhecer a produção e a história de Mayumi, por isso desejamos a Brasília neste aniversário que mais nenhuma de suas mulheres leve tanto tempo para sair da invisibilidade.
Sobre as pequenas experiências da vida urbana no coração de Brasília
por Maribel Aliaga Fuentes - Professora do Departamento de Projeto, Expressão e Representação da FAU-UnB
Hoje decidi me aventurar por um novo mundo fora do circuito Superquadras.
Logo de manhã sai do Setor Hoteleiro Sul perto do Parque da Cidade em direção ao Eixinho, cruzei a W3 e desci a rua interna do setor comercial sul em direção ao setor de autarquias.
Vi gente, comércio e comerciantes. Sapatos, roupas, lanchonetes. Gente!
A marquise dos edifícios sombreou o caminho. As ruas, corredores de vento.
Desci a galeria dos estados e cruzei o Eixão por uma passagem subterrânea.
Pra encerrar a aventura como se deve, tomei uma zebrinha de volta para a Asa Norte.
Foi uma experiência tão urbana, que por um breve momento fui feliz.
É tudo Brasília!
por Luiz Eduardo Sarmento - arquiteto e urbanista no IPHAN e Conselheiro Superior do IAB-DF
"(...) eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses (...). Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano (...). Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade". - Lúcio Costa²
Brasília talvez seja um dos mais excepcionais casos de crescimento urbano de que temos notícia.
A cidade capital, cujo projeto é fruto de concurso público nacional, foi pensada para aproximadamente 500 mil pessoas, é hoje a terceira maior metrópole do País, de acordo com dados do IBGE. Literalmente, “o sonho foi menor que a realidade”, como disse Lúcio Costa, ao visitar a plataforma da Rodoviária do Plano Piloto em 1984.
Assim como Lúcio fez ao visitar a cidade que nasceu seguindo seus traços, é importante que tenhamos um olhar mais cuidadoso. Muito se debate sobre a Brasília sonhada mas ainda temos que avançar muito na compreensão da cidade real, que é muito maior.
Entender que Brasília é hoje muito mais que a Brasília planejada para ser a capital do país, além de ser mais correto do ponto de vista territorial, é também um entendimento mais fidedigno do que é a cidade atualmente, incluindo enquanto citadinos da Capital todas e todos aqueles que vieram ao Planalto Central construir Brasília e seus descendentes que, muito cedo, foram expulsos do sonho modernista.
O território da Brasília sexagenária é bastante peculiar e desafiador pois é a metrópole brasileira que surgiu a partir de um núcleo modernista que possui qualidades reconhecidas, mas que atualmente apresenta problemas significativos que precisamos enfrentar para dar as soluções que uma cidade que nasce sob a égide da inovação demanda.
A genética da cidade moderna está presente em todos os assentamentos que foram surgindo ao redor do Plano Piloto, o que significa que temos uma mancha urbana bastante espraiada e uma segregação socioespacial muito clara, com distâncias e vazios urbanos mais extensos que o que se costuma observar nas demais metrópoles brasileiras. A morfologia das periferias é uma continuação da lógica rodoviarista do Plano Piloto, o que é um agravante nas Regiões Administrativas cuja população tem renda mais baixa e que portanto, o transporte, consome parte considerável de seus recursos. Nos assentamentos informais, é comum existir barracos cuja estrutura é extremamente precária, mas que reserva um espaço para guardar seu principal bem: o carro.
A peculiaridade de nosso tecido urbano apresenta dificuldades cotidianas, como problemas de locomoção e a contínua expulsão das pessoas mais pobres para as bordas da metrópole, assim como problemas de ordem simbólica, cultural e social, como a pequena interação entre as diversas classes sociais no tecido urbano, além de uma difícil apreensão da nossa metrópole fragmentada como um todo urbano. É tudo Brasília se está tudo tão longe?
Um fator que explicita essa segregação socioespacial é a distância entre o centro de Brasília e algumas regiões administrativas. Ceilândia, cujo nome vem de Centro de Erradicação de Invasões, foi um assentamento promovido pelo estado com o intuito de reassentar os moradores que viviam nos acampamentos na Região do Plano Piloto. Cerca de 50 anos depois, Ceilândia viu surgir em suas bordas, antigas áreas de produção agrícola e de cerrado nativo, a comunidade do Sol Nascente, que já foi considerada a maior favela da América Latina. Sol Nascente é um exemplar caso dessas enormes distâncias, entre o Eixo Monumental do Plano e a comunidade, são 30 km. Com essa distância é possível cruzar toda a ilha de Manhattan (21km) em sua maior extensão, e ainda sobrariam aproximadamente 9 km para serem percorridos. Isto é, a população do Sol Nascente está a mais de uma Manhattan de distância da área central da metrópole.
Essa enorme distância é tão marcante para os moradores que foi ironizada pelo cineasta Adirley Queirós no filme Branco sai, preto fica, de 2015, em que a população da Ceilândia precisa apresentar passaporte para entrar no Plano Piloto de Brasília.
Nesse momento em que, mais que comemorar precisamos refletir e compreender essa Brasília Metropolitana, é fundamental que o espírito inovador e de esperança que norteou o projeto da Nova Capital, seja retomado, principalmente em uma conjuntura nacional tão adversa.
Temos um território gigantesco para (re)projetar e qualificar, com problemas de mobilidade e desigualdade que demandam ações criativas, planejar e, principalmente, executar essas soluções podem recolocar Brasília como referência de gestão urbana, enfrentando problemas de mobilidade, habitações precárias, falta de infraestrutura urbana, ausência de arborização e equipamentos urbanos, com participação social, de forma democrática e inclusiva. Os desafios são grandes e nossa capacidade criativa e de execução precisa ser desenvolvida na mesma escala.
Se a realidade é maior que o sonho, precisamos sonhar maior ainda, é nosso dever histórico.
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¹ ALIAGA FUENTES, Maribel; COELHO, Luíza Dias ; TABOSA, Mayara . Aspectos da Habitação Urbana: Um olhar crítico de Mayumi Souza Lima à construção de Brasília.. In: 9º PROJETAR, 2019, Curitiba. Anais 9º PROJETAR 2019. Curitiba, 2019. v. 2.
² COSTA, Lúcio. Ingredientes da Concepção Urbanística de Brasília, 1995. In: XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio (Org.). Brasília: Antologia Crítica. São Paulo: Cosac & Naify, 2012. Cap. 5. p. 144-146