De um lado, a velocidade exorbitante representada pela rápida propagação por minuto, pela transcendência de fronteiras, pelo alastramento por todos os continentes, pela multiplicação desenfreada. De outro, o intacto, o imóvel, o claustro doméstico, o isolamento e a reclusão na tentativa de evitar qualquer movimento brusco, na supressão do ímpeto, no controle do ambiente. De um lado o vírus, do outro o homem.
Neste cenário pandêmico no qual um vírus mortal é gestado na velocidade interrupta dos nossos movimentos, tornando – nós mesmos – a sua potência, a imobilidade é vista como parte importante do antídoto. Uma imobilidade que nos custa caro, nos encerra em nossos lares e nos obriga a revisar a forma como experienciamos o mundo.
Na época em que toda a métrica espacial é vivenciada como um obstáculo, a imobilidade - não só obrigatória, mas sob risco de vida -, surge, portanto, como um grande desafio. Aquele sujeito contemporâneo liberto de amarras físicas e psicológicas, desafiadoramente livre para moldar-se de acordo com as circunstâncias, vê-se obrigado aceitar a única condição para qual, talvez, não estava preparado.
Sob a análise deste crescente incômodo fomentado pela supressão dos deslocamentos – seja no devaneio habitual pela própria cidade, seja no atravessamento de fronteiras internacionais -, é possível traçar um interessante paralelo sobre o que representa a mobilidade nos tempos atuais.
Hoje em dia, essa condição parece significar mais do que mero movimento, ela carrega um simbolismo que, muitas vezes, representa liberdade, aventura, transgressão, tédio ou perigo. É uma forma de estar presente no mundo, essencial para experiência humana atual.
Isto que podemos chamar de “nomadismo contemporâneo” significa, segundo afirmação de alguns autores como o antropólogo francês Marc Augé ou o sociólogo conterrâneo Michel Maffesoli, um movimento migratório que não é determinado unicamente pela necessidade econômica ou social. O que incita aos deslocamentos constantes é mais um desejo de evasão, uma “pulsão migratória” que estimula o indivíduo a “mudar de lugar, de hábito, de parceiros, e isso para realizar a diversidade de facetas de sua personalidade”. Uma situação que pode representar, ainda, a dissolução dos laços entre os cidadãos e suas cidades, na qual o sentimento de pertencimento ao espaço geográfico – originário ou não – já não possui o mesmo valor. A cidade dos nômades é, portanto, aquela definida por fluxos contínuos onde há uma bruta mudança de escala, ela é mundo inteiro, a cidade global.
A pujança e o deleite pelo movimento nos fazem, agora, enfrentar a dificuldade de nos mantermos estáticos em meio a uma pandemia que obriga o isolamento e supressão dos deslocamentos. Neste sentido, fomentado por tal situação, um formato especifico de arquitetura vem sendo revisitado. As estruturas portáteis ou nômades surgem neste contexto como uma possibilidade de nos deslocarmos sem, de fato, sair de casa.
São modelos mínimos que desafiam o cenário da vida cotidiana no conceito de lar, facilitando o deslocamento e o nomadismo das mais diversas formas. Pequenas estruturas onde o espaço interior, antes submetido ao zoneamento, assume agora uma instalação fugaz e individualizada na qual se habita provisoriamente. Parasitando pelo tecido urbano, sua distribuição aleatória implica uma ausência de preocupação quanto a composição de um todo, respondendo autonomamente sobre si mesmo.
Iñaki Ábalos, arquiteto espanhol, vai além do próprio significado estrutural e arquitetônico de tais formatos afirmando que, em termos sociológicos, essa peculiar forma é convencionalmente descrita como um aumento da mobilidade e, paralelamente, como uma diminuição da importância da família e da razão doméstica. Essa associação tradicional estabelecida entre um lugar, uma casa, uma linhagem familiar e uma localização física em que se inscreve a própria existência. Um formato incita reflexões não somente sobre própria arquitetura, mas também sobre a instituição tradicional da família.
Carregadas de simbolismos do nosso próprio tempo, as estruturas nômades manifestam, portanto, a forma como nos posicionamos no mundo, reforçando nossa temporária hospedagem na cidade global.
Apesar de, para alguns, esse formato parecer estranho e distante, ninguém pode se dizer totalmente alheio a essas estruturas. Somos nômades por essência no mundo globalizado, nossas referências, nossas atitudes, nossas existências parasitam por lugares e situações diferentes – física ou digitalmente. Este modelo não está, portanto, a margem de nós mesmos, mas sim, representa uma forma de antecipar o habitar no mundo hiperglobalizado questionando os limites do público e do privado e trazendo à tona a potencialidade da liberdade espacial, mesmo em tempos de pandemia e isolamento.
Neste sentido, como forma de inspiração, selecionamos a seguir alguns exemplos de projetos que experimentam essa tipologia e nos fazem rodar o mundo, sem sair de casa.
Casa para a mulher nômade / Toyo Ito
Neste projeto pouco conhecido Toyo Ito investiga a conduta nômade trazendo como personagem principal para sua narrativa uma jovem mulher. As instalações Pao 1, 1985 e Pao 2, 1989 – ainda contemporâneas - são habitadas pela “mulher independente, ociosa e consumista, um sujeito em si mesmo banal, mas que, com sua mera presença — parasitária —, coloca em questão a trama social japonesa, altamente hierarquizada, sexista e tradicional”. Dentro do tênue envoltório que separa a vida pública da privada, são abrigados apenas os elementos básicos para existência da mulher os quais se afastam da concepção tradicional do funcionalismo doméstico, representando o mais inerente da sua vivência diária (toucador, mesa de telecomunicações e cadeira de descanso). Por meio deste modelo, Toyo Ito percorre diferentes pontos de reflexão, desde a inserção das estruturas nômades nas cidades consolidadas, até o perfil deste novo habitante, reforçando a necessidade de se revisitar conceitos tradicionais relacionados ao homem e seu habitat urbano.
Abrigo urbano / Gabriela Gomes
Esta escultura habitável questiona as relações entre a fruição artística e a questão habitacional. Feita para ser inserida em espaços públicos, como praças e parques, o objeto experimental combina escultura, design e arquitetura. Parasitando de maneira, ao menos, curiosa seu contraste material e formal com o entorno o torna um objeto marcante interferindo também na apropriação urbana do espaço ao seu redor.
Abrigo da montanha / Lusio Architects
Se o exemplo anterior foi projetado para ser instalado em meio aos centros urbanos, este possui características especiais para vencer as mais variadas intempéries relacionadas ao clima hostil das regiões montanhosas. Com uma combinação de sustentabilidade, materialidade e tecnologia, o abrigo ora se camufla na natureza por sua superfície reflexiva, ora se torna um farol, com luzes e sons que facilitam sua localização, mesmo em meio a um nevoeiro.
Abrigo para pescar - ‘Noun.1 Unavailability’ / Gartnerfuglen Arkitekter
Com uma estrutura de madeira facilmente dobrável, este abrigo é montando em apenas alguns minutos. Especial para os que não requerem muito espaço e procuram um reencontro com a natureza, o abrigo serve tanto a temperaturas baixas quanto aos climas mais amenos. No frio severo, as placas de gelo que compõem suas paredes criam um bolsão de ar quente. Já no verão, elas dão lugar as telas metálicas que podem receber trepadeiras e outras vegetações.
MARSHA / Spacefactory
Para quem não se contentar em montar sua casa portátil em solos terráqueos, a agência multi-planetária AI SpaceFactory desenvolveu esse protótipo feito com impressora 3D especialmente para ser instalado na superfície marciana. Construída a partir de uma mistura de fibra de basalto extraída de rochas marcianas e bioplástico de base vegetal, sua forma verticalizada, centrada no próprio ser humano, difere de outros protótipos que servem a mesma função - na sua maioria horizontais e mimetizados na paisagem.
TERA / Spacefactory
O TERA é a versão terráquea do modelo acima. A partir da mesma tecnologia usada no MARSHA a agência busca revolucionar as práticas convencionais de construção por meio do uso de materiais produzidos com base em plantas que são até três vezes mais resistentes que o concreto. O TERA apresenta um impacto muito baixo no ambiente podendo ser desmontado, reciclado e reimpresso em outro local.
Ecocapsula / Nice Architects
Gostou da ideia e quer adquirir seu próprio modelo portátil? A empresa de arquitetura da Eslovênia, Nice Architects, comercializa a sua criação chamada “Ecocapsula”. Seu formato oval otimiza a coleta da água da chuva e próprio orvalho que, depois de filtrada, pode ser utilizada pelos habitantes, além disso, sua energia é gerada pelo sol e pelo vento. Entretanto, ser potencialmente sustentável não é a sua única vantagem, os fabricantes garantem que ela pode ser facilmente transportada – em contêiner ou até mesmo uma camionete – e instalada em qualquer lugar do planeta. Sua forma compacta, que inclui banheiro completo, mesa e cama, pode acomodar até duas pessoas.
Instabilidade e o sujeito móvel
Experenciar o nomadismo é algo que vem seduzido o homem há décadas e se tornando cada mais palpável na medida em que os anos passam e as distâncias são encurtadas. Trinta anos atrás com Toyo Ito e a mulher nômade ou, anterior ainda, no início da década de sessenta com o Archigram e sua “Walking City”, já podemos ver modelos que, antes de representar uma funcionalidade determinada, trazem reflexões sobre a solidez da arquitetura contemporânea frente a este sujeito líquido.
Em se tratando da situação atual, na qual pairamos sobre as incertezas de um futuro que, provavelmente, requererá mudanças drásticas, a ideia de se deslocar pelo mundo em sua própria – e higienizada – casa traz alento e descontração, necessários para sobrevivermos psicologicamente sãos aos tempos atuais. Neste sentido, os exemplos apresentados aqui são hipóteses ou sugestões que, além materializar este fetiche do nomadismo, nos tempos atuais representam também uma solução para nutrir nosso deleite pela vacância em escala global.
Referências bibliográficas
Iñaki Ábalos. A boa-vida. Visita guiada às casas da modernidade. Barcelona: Editora Gustavo Gilli, 2008.
Marc Augé. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2009.
Michel Maffesoli. Sobre o Nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Camilla Ghisleni é Arquiteta e Urbanista, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Urbanismo, Cultura e História da Cidade pela mesma universidade. É sócia-fundadora do escritório Bloco B Arquitetura e colabora com o ArchDaily Brasil desde 2014. Esse texto é fruto de uma pesquisa que está sendo desenvolvida em parceria com o Prof. Dr. Rodrigo Almeida Bastos da Universidade Federal de Santa Catarina.