Foi em 1972 que o historiador norte-americano George Kubler propôs o termo “plain architecture” para definir a arquitetura portuguesa entre a metade do século XVI e o início do século XVIII. Enquanto em sua grafia nativa, a tradução do termo entendia o estilo português como simples, o uso do adjetivo designa uma geometria pouco complexa, que remete ao abandono do ornamento manuelino nas construções de igrejas e conventos. Na tradução feita para a língua portuguesa, porém, o termo “arquitetura chã” reconheceu em seu próprio vocábulo a vocação tectônica da arquitetura lusa ao transpor a referência da geometria para o solo e resultou em uma caracterização clara e monossílaba a constante relação que se vê entre o construído (arquitetura) e o existente (chão, solo ou território). Para além da rigorosidade do desenho das formas portuguesas, o termo trata também de uma arquitetura que se amarra ao chão em seu sentido metafórico; uma arquitetura sempre alinhada com a compreensão do território em que se coloca.
A insistência no território como invariável para o projeto da arquitetura, percorre o discurso e a prática de João Luís Carrilho da Graça. Formado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1977, nos primeiros anos da democratização portuguesa após a queda do regime Salazar, Carrilho deu início a sua carreira numa Lisboa pós-revolucionária que desejava se tornar cosmopolita e urbana. Durante as quatro décadas de prática que coleciona, o arquiteto estabeleceu um conjunto de obras fundamentais para a arquitetura portuguesa, obras estas que, com sua elegância e precisão formal, trouxeram equipamentos que serviam a aspiração coletiva e urbana da cidade sem perder o raciocínio territorial que amarra sua obra ao solo português.
No texto “Metamorfose”, publicado pela primeira vez em 2002, Carrilho da Graça apresenta um epítome de seu processo de análise territorial tendo como plano de fundo a formação da cidade de Lisboa. Tomando de base o espaço geográfico da cidade, o arquiteto desenvolve um entendimento sobre o que foi a antropização daquele território e como essa ocupação formal da terra é justificada através das diversas manifestações topográficas. Através desse discurso, os pontos notáveis da natureza, dentre eles referidos no texto os vales, encostas, promontórios e linhas de festo, se amarram com a cidade que se coloca e se tornam chão primordial para o assentamento da arquitetura. Olhando de maneira puramente racional para o formal topográfico, o arquiteto entende o território como a própria realidade, e nela se propõe dispor sua arquitetura com imensa precisão utilitária. Sobre Lisboa, o arquiteto diz que
"Parece ter, ainda hoje, essa capacidade de deixar sentir de forma bastante clara, quase como um corpo, o território que a suporta; como se a cidade fosse o vestuário em cima de um corpo que permanentemente se revela e se torna visível" - DA GRAÇA apud LOPES, 2015.
A relação entre corpo e a cidade que o veste discorrida pelo arquiteto em seu texto, se dá repetidamente em sua obra, em contínuos exemplos de arquiteturas com assentamentos exímios e precisos em seus contextos. A trezentos quilômetros de Lisboa, na cidade de Covilhã, o pedestre assiste uma ponte cruzar um vale e ligar suas duas encostas. Como uma linha que divide o horizonte, a estrutura de aço liga as duas cumeeiras, contrastando com forte presença a diferença entre a cota baixa da água, a 52 metros de distância e a altura da Serra da Estrela, contexto aonde a ponte é colocada. A Ponte Peatonal sobre o Vale da Carpinteira (2003-2009) é uma obra que em seu percurso procura achatar a experiência do movimento, cruzando um extenso vale na mesma cota, e nivelando de forma adjetivamente democrática o percurso entre o centro da cidade e a zona residencial rural.
A linha, contradizendo a máxima euclidiana da ligação entre dois pontos, é composta por três secções retas que interligadas tornam o percurso discretamente sinuoso. A secção central, perpendicular ao vale, e paralela às encostas, se articula com pontos de inflexão em cada um de seus extremos para fazer as ligações com os outros tramos. (CROQUIS, 2014, 132-144) Duas vigas paralelas de aço definem a largura de quase 5 metros do caminho, e se alongam juntas pelos 220 metros de sua extensão. A necessidade de superação da topografia através da arquitetura, faz proveito de uma situação visual com as montanhas ao redor, e define novos enquadramentos à medida que os pilares espaçados pautam breves interrupções na paisagem. As faces brancas e pretas que se alternam preparam um jogo de sombra que torna o objeto-ponte um monólito cruzando a paisagem; uma estrutura rigorosamente geométrica que corta o ambiente natural aonde ela se coloca.
O corpo em movimento experiência nesse breve trajeto o que vem a ser a dita “vocação territorial” (SEQUEIRA, 2015) de Carrilho da Graça. No esforço constante que se vê em suas obras de responder ao programa estabelecendo relações com a geografia, se constroem ideias de Portugal, que contam a história da ocupação das cidades ao mesmo tempo que premeditam um futuro funcional, paramentado e urbano. De maneira quase contraditória do que se tem do imaginário português da terra, Carrilho da Graça insiste através da colocação de infraestruturas e arquiteturas coletivas no que seria a sua construção urbana, ligada ao território, permeada por um passado histórico e em constante avanço. A partir da leitura dos territórios particulares, sua obra estabelece um nexo intrínseco com o redor e, assim como num passeio de pedestre que vence um vale, constrói um chão sobre o qual se observa a paisagem.
Referências bibliográficas
KUBLER, George. A Arquitectura Portuguesa Chã: Entre as Especiarias e os Diamantes (1521-1706) (1987). Lisboa: Vega, 2005.
DA GRAÇA, João Luís Carrilho. Metamorfose. Jornal Arquitectos. Lisboa, nº 206, p. 8-11, maio – junho 2002.
DA GRAÇA, João Luís Carrilho et. al. (Orgs.). Carrilho da Graça: Lisboa. 1 ed. Porto: Dafne Editora, 2015.
SEQUEIRA, Marta. O território como invariável. In. DA GRAÇA, João Luís Carrilho et. al. (Orgs.). Carrilho da Graça: Lisboa. 1 ed. Porto: Dafne Editora, 2015. P. 31-62.
LOPES, Diogo Seixas. A Preto-e-Branco. In: GRAÇA, João Carrilho da et al (Org.). Carrilho da Graça: Lisboa. Porto: Dafne, 2015. Cap. 5. p. 86-93.
JOÃO CARRILHO DA GRAÇA ARQUITECTOS. Curriculum. Disponível em <https://www.carrilhodagraca.pt/curriculum> Acesso em 01.abr.2020.
João Luís Carrilho da Graça 2002 – 2013. El Croquis. Madrid, v. 170, 2014.
Trabalho realizado para a diciplina "Obras fundamentais - práticas contemporâneas (1970 a 2019)” ministrada pelo arquiteto Gabriel Kogan, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Escola da Cidade, no 1º semestre de 2019. Clara Varandas Abussamra é arquiteta e urbanista graduada pela Escola da Cidade (2019).