Gerson Castelo Branco é um arquiteto autodidata do Piauí. Sua arquitetura é composta por um conjunto de referências e experiências vividas que ele sintetiza como "uma expressão de liberdade", a Paraqueira.
Nós, arquitetos, sempre tão formais, chamamos de internacional o que na realidade é apenas mais uma forma conhecida de construir. A arquitetura de Gerson Castelo Branco, não: ela é original e fica bem em qualquer lugar do planeta sem perder sua essência , que revela um Brasil puro, intocado, e, por isso mesmo, sem cópias, único. - Olga Krell, arquiteta e jornalista.
Este depoimento demonstra a forma ímpar como Gerson Castelo Branco concebe suas obras: longe dos cânones e linguagens acadêmicas. Sua arquitetura se inspira na natureza, a respeita e surge para o bem-estar do usuário. Sua obra rendeu uma comparação com Frank Lloyd Wright, realizada pela revista americana Architectural Digest na edição de setembro de 1995. Após uma conversa com o arquiteto, reunimos parte de sua trajetória que, apesar de ser publicada em diversos países e nacionalmente, ainda não possui o devido reconhecimento.
Um arquiteto autodidata
Gerson Castelo Branco nasceu em 1948 na Parnaíba (PI). Logo na infância descobriu sua ligação com o campo das artes e muito precocemente percebeu que "todo sistema era invertido, os objetivos eram de manipulação, [na escola] quando éramos mais ousados com qualquer tipo de inovação, havia um controle. O meu olhar não estava para meninas, estava para os meninos, isso gerava uma situação extremamente incômoda numa cidade retrógrada". Com 18 anos, saiu da casa de sua família e chegou em Salvador. Ao se deparar com a Baía de Todos os Santos, o "colorido fantástico" das ladeiras e a população soteropolitana, se viu apresentado para um Brasil que desconhecia, "um Brasil intenso". Fez vestibular para arquitetura, mas foi aprovado em sua segunda opção: Belas Artes. "Era incrível estar ali, Novos Baianos, carnaval da Bahia, tudo muito curioso, novos hábitos, nova cultura, no entanto, era muito difícil ter os recursos para se manter na cidade".
Foi o irmão de um amigo que dividia casa com Gerson que o encomendou a primeira proposta de trabalho com arquitetura: uma reforma em Teresina. O projeto foi bem sucedido e logo surgiu outro convite do mesmo cliente para desenhar de acordo com sua vontade um projeto desde o zero. Nessa época, curioso por temas como astrologia e fenômenos extraterrestres, Gerson passou a se influenciar por arquiteturas que viu em Salvador, nas quais elementos como os jardins que invadiam os espaços e a proximidade da piscina das casas o marcaram e passaram a trilhar seu caminho no campo dos projetos.
Após três anos e meio, sem concluir a faculdade de Belas Artes, Gerson retorna para Fortaleza, onde se encontra com seu irmão Cabeto, na casa de sua família.
Éramos muito modernos em sentido de comportamento, não sei se a palavra certa é essa, mas fomos uma referência de pessoas diferentes naquela Fortaleza conservadora, eu olhava para aquilo tudo e não conseguia mais viver ali.
Assim, decide fazer uma viagem para os países andinos, na qual reconhece que apesar de uma estrutura familiar cristã, teve seus valores testados. Uma experiência que o levou para uma nova fase em sua vida e obra.
O surgimento das Paraqueiras
Ao voltar da viagem, decidiu que não poderia morar nem em Teresina, onde havia obras de sua autoria sendo construídas, e tampouco retornar a Fortaleza. Por isso, optou por descer o litoral do Piauí e se instalou numa aldeia de pescadores a 30 km de distância da Parnaíba, sua terra natal. Ali, Gerson reconheceu que existia uma liberdade de comportamento entre os pescadores e as mulheres, que realizavam trabalhos artesanais, que ia além do que existia em centros urbanos. Se deparou com uma fluidez sexual e falta de julgamentos que trouxe "a possibilidade de ser criativo independente das regras do sistema".
A comunidade era protegida por algumas formações de dunas e pequenas lagoas. Gerson se acomodou numa cabana de pescador, feita de taipa e com pé-direito baixo. Inspirado pela:
Receita do pé-direito alto da casa da minha avó, com meias paredes e ventilações circulando em todos os ambientes.
Fez uma reforma em diferentes etapas na qual derrubou uma parede e subiu um telhado para fazer um mezanino.
A carnaúba - um material que estava sendo descartado em demolições de galpões na Parnaíba e, por isso, com um preço muito baixo - foi escolhida para ser utilizada estruturalmente e para compor painéis e portas pivotantes, com o objetivo de criar espaços integrados e dialogar com outras texturas da região como o tapete de taboa e esteiras de cipó de macaco, utilizadas também para fazer vedações que proporcionavam luminosidade interna.
A escada concebida tem como inspiração a icônica projetada por Lina Bo Bardi no Solar do Unhão, e este desenho passa a ser um elemento que ele virá a incorporar na maioria de seus projetos futuros, assim como a permeabilidade entre o espaço interno e o entorno ao redor. No caso desta cabana, o próprio banheiro possuía uma grande janela de frente ao caminho dos pescadores, que interagiam com Gerson enquanto ele tomava banho.
Em uma viagem para Fortaleza, ele foi apresentado para Olga Krell, que na época estava implementando a revista Claudia e se interessou em publicar as fotografias desta reforma. A partir disso, seu nome começou a ser olhado nacionalmente a partir de distintas publicações, que pretendiam demonstrar uma arquitetura além da realizada em São Paulo e Rio de Janeiro.
Assim surgiu a que viria a ser a primeira Paraqueira - nome que ele dá às suas arquiteturas. A inspiração para este título surge do apelido que recebeu em sua adolescência, Paraca, pois dizem que ele "parecia um paraquedas, sempre se abrindo para a vida". "Se eu era o Paraca, estando de bem com a vida, essas arquiteturas podem ser uma Paraqueira, foi daí que surgiu essa expressão", explica.
Do boicote ao reconhecimento
No início da década de 1970, Gerson recebeu a encomenda de uma casa para ser realizada na praia do Futuro, em Fortaleza, onde "não havia nada naquela época, além dos objetos voadores". O projeto consistia numa casa de alvenaria comum em forma de vela. No entanto, o órgão da prefeitura não permitiu a construção, fato que ele considera um boicote à sua obra no momento. Felizmente, na mesma época, um vizinho dele pediu um projeto e isso lhe rendeu a oportunidade de adaptar o desenho para um novo terreno.
Por fim, a casa foi realizada em outra praia e publicada entre os quarenta projetos selecionados por Oscar Niemeyer para o livro Arte no Brasil, organizado por Pietro Maria Bardi.
A partir deste episódio, a carreira de Gerson passa a ser dividida por dois tipos de trabalho: projetos mais urbanos realizados em Teresina - onde não havia nenhum arquiteto trabalhando na época, fato que possibilitou que ele tomasse diversos direcionamentos projetuais na cidade: agências bancárias à fábricas, passando por paisagismo e praças - e uma outra arquitetura que ele considera "totalmente despreocupada com conceitos e regras que as escolas de arquitetura estabeleciam". Tudo sempre acompanhado de um engenheiro que se responsabilizava pelas estruturas e obras.
Gerson conta que "pelo fato de eu viajar muito, nas estradas eu percebia uma coisa que terminou abrindo a minha cabeça para os recursos da madeira, tinha muitos caminhões que carregavam elas, eu olhava aquilo e pensava: ninguém tá usando isso?", ele cita nomes como Severiano Porto, Zanine Caldas e Cláudio Bernardes, mas reafirma que raramente havia a conotação de uma arquitetura diferenciada. Ao juntar as características locais do Piauí, com as próprias referências que teve na casa de sua vó, as experiências na praia e do clima, Gerson começa a adotar este estilo onde os telhados são trabalhados como velas mais altas e, por possível influência da obra de Burle-Marx em Brasília, traz sempre a presença da água para seus ambientes, fazendo com que as casas dialoguem de forma natural com seu entorno, um modo de abrigar parte da natureza na arquitetura.
Processo criativo
Quando questionado sobre seu processo criativo, Gerson afirma: "Tenho certeza absoluta que é a natureza, Para mim, criar, é uma pedra, é uma árvore, é a própria definição de terreno, que pode mudar, trazer uma referência qualquer, um processo literalmente de transmissão da natureza através do pensamento, da imaginação, do campo elétrico ao magnético".
O arquiteto adiciona que gosta de pedir autorização aos campos de energia antes de projetar em algum lugar. No caso de seu projeto em Loiba, na Espanha, conta que era "muito cheio de cruzes todos os lugares, terra onde as pessoas se protegiam das bruxas, eu tenho é que pedir autorização a elas, eu acredito que existe - e existe! -, então peço autorização para chegar". Quanto ao processo de trabalho, ele indica que é na prancheta que maior parte de seus projetos são executados.
Como exemplo de criação, ele cita sua própria casa, em Viçosa do Ceará (CE):
"Eu já havia feito muitos telhados em asas deltas no litoral de Teresina. Então, neste caso, decidi fazer um telhado com espaço para inserir três pisos: o térreo, o segundo como área social e o terceiro onde ficam os dormitórios. A primeira coisa que fiz, foram as cabines de dormir que eu chamo de camarinhas, compostas por duas vigas de madeira presas nas laterais, divididas por talos de babaçu que sustentavam toldos e cortinas de um lado ao outro. Ali eu recebia muitos amigos, grupos de casais e dizia 'olha, vamos nos acomodar, mas não se mexam muito e nem transem. Se forem transar, combinem!', todo mundo dava risada, curtindo um campo de energia único".
Trata-se de espaços literalmente integrados, abertos, sem nenhuma preocupação com a coisa estabelecida pelos conceitos de moralidade e comportamentos. Não existia promiscuidade, mas sim o ser humano vivendo em liberdade com a própria natureza. Isso para mim que era o fundamental.
O cenário atual da arquitetura
Gerson conta que em sua trajetória se sentiu muito tranquilo para realizar suas obras apesar da distinção proposta. Nas décadas de 1970 e 1980 era mais fácil deixar as pessoas serem levadas e ainda hoje existem clientes que são extremamente abertos, que pedem conceitos, ideias e formas. No entanto, atualmente, ele sente mais dificuldade neste sentido devido ao mercado existente "depois das feiras de decoração, de um mercado saturado, uma quantidade imensa de profissionais sendo formados com fornecedores que os pagam através da reserva técnica, uma prostituição na profissão. Não é mais o cliente que paga o arquiteto, termina sendo o fornecedor, que também mantem essa grande passarela de arquitetura, de modismos, de revestimentos e estabelecem o que deve ser e o que não se deve".
Ao dar palestras em diversas universidades brasileiras, me senti incomodado pela caretice das escolas de arquitetura, pelo condicionamento que fazem com a cabeça da juventude no Brasil. Uma falta de busca de caminho próprio, uma subordinação ao mercado, aos materiais.
Em geral, pode-se dizer que Gerson reflete seu descontentamento com o cenário atual da arquitetura, assim como ele não conseguia se ver dentro da cidade, "convivendo normalmente, eu passei a minha vida inteira me escondendo, buscando situações de beira de praia, de campo". Por fim, a ausência de uma formação acadêmica, a não subordinação ao mercado regente, as castrações sociais versus a liberdade experimentada e a proximidade com a natureza junto do modo como se apropria do clima são alguns dos principais fatores que ajudaram a moldar seu caráter e forma de pensar o espaço. Sem dúvidas, uma maneira distinta da qual se aprende a pensar a arquitetura e que muito tem a ensinar.