A arquitetura vernácula nasce da escassez, da restrição de materiais e recursos disponíveis assim como de barreiras físicas, geográficas e dificuldades para transportar matérias primas de um lugar para outro. Ela se adapta ao seu contexto, utilizando materiais locais e técnicas construtivas tradicionais. Como uma tendência sempre presente, muitos arquitetos ainda buscam inspiração no passado, e cada vez mais têm incorporado com sucesso materiais e técnicas construtivas locais em seus projetos. Este artigo pretende oferecer uma visão abrangente de como os materiais tradicionais, como tijolos e telhas de barro, pedras, bambu, estruturas de madeira e taipa estão sendo ressignificados em um movimento que talvez poderíamos chamar de “a nova arquitetura vernacular chinesa”.
Muros de pedra como um tributo aos pequenos vilarejos desaparecidos na China
A Residência Qingxiao, localizada na vila de Liangjiashan no condado de Wuyi, província de Zhejiang, é um projeto concebido pelo Shulin Architectural Design com o principal intento de valorizar os materiais e recursos naturais locais como uma resposta a falta de serviços e mão de obra especializada na região. Utilizando telhas recicladas, paredes de taipa, blocos de alvenaria, bambu, e antigas pedras de cantaria, os arquitetos coletaram diversos materiais descartados durante a demolição de aldeias vizinhas além de desenvolver uma abordagem de projeto fundamentalmente baseada em técnicas construtivas tradicionais. Pilhas e mais pilhas de telhas velhas foram cuidadosamente selecionadas e transformadas em preenchimento para as paredes externas da casa. A qualidade de execução destes elementos, depois de centenas de anos de uso, ainda se faz evidente a medida que se encaixam perfeitamente uns sobre os outros para dar forma a nova estrutura da casa.
Esta abordagem, profundamente consciente e respeitosa para com a natureza e os recursos disponíveis na região, resulta em uma economia monumental de tempo e dinheiro, minimizando os gastos com transporte além de dar um destino justo a uma série de materiais de qualidade incontestável. É importante reforçar que, utilizando materiais com os quais as pessoas daquele lugar estão familiarizadas, é possível construir pontes entre o passado e o presente, aproximando a arquitetura contemporânea da experiência visível das comunidades locais.
Bicicletas abandonas são transformadas em biblioteca móvel para crianças como resposta à economia compartilhada
A proposta apresentada pelo LUO studio, ao reaproveitar uma série de resíduos industriais de forma criativa, lúdica e sustentável, é digna de nota. Com a rápida e voraz urbanização das áreas rurais do país e o desenvolvimento desenfreado das grandes cidades chinesas, antigas bicicletas — tradicionalmente utilizadas como único e principal meio de transporte de muitas pessoas no interior da China — estão perdendo lugar para outros sistemas mais modernos, como as bicicletas compartilhadas. Muitas empresas têm investido nesta direção, ironicamente, muitas outras bicicletas estão sendo abandonadas e comumente são vistas no lixo ou jogadas no meio da floresta.
Com uma proposta ousada, o LUO studio surgiu com uma solução criativa para transformar antigas bicicletas “aposentadas” em bibliotecas móveis para crianças. Chamada de “ Shared Lady Beetle”, e construída com chapas metálicas descartadas e outros materiais ecológicos, a biblioteca móvel concebida pelo LUO studio tem como principal objetivo reaproveitar o lixo industrial de forma criativa e divertida.
Pavilhão temporário construído em estrutura de andaimes se transforma em centro social em comunidade rural no leste da China
Outros materiais industriais amplamente utilizado na construção civil atualmente, andaimes e estruturas desmontáveis, receberam um novo uso no projeto da Galeria Temporária de Shichengzi desenvolvido pelos arquitetos do Fu Yingbin Studio. Construído para o festival da colheita da pequena vila de Shichengzi, província de Hebei, o pavilhão efêmero foi assim concebido devido tanto ao prazo curto para a instalação e remoção da estrutura do festival além de um orçamento bastante limitado. A ideia era construir uma estrutra leva de forma rápida e econômica. Após um primeiro contato com o cliente, os arquitetos propuseram uma estrutura construída com andaimes alugados, a qual foi projeta e construída em apenas uma semana gerando um resultado que surpreendeu à todos.
A instalação do pavilhão temporário foi executada em estrutura de andaime, a qual foi pintada na cor laranja para complementar as telas de segurança de mesma cor utilizadas como opção de fechamento. Esta estrutura móvel e modular foi completamente recauchutada pelos arquitetos, transformando-se em um dos principais atrativos do festival daquele ano. Para combinar com as malhas translúcidas coloridas, o acabamento grosseiro dos andaimes foi adaptado para um tom mais quente e suave. Composto por uma série de pátios abertos e entrelaçados, o pavilhão temporário da feira de Shichengzi assumiu o papel de centro social e espaço de encontro no famoso festival da colheita deste pequeno vilarejo da província de Hebei.
Arquiteto chinês desenvolve sistema de painéis plug-in como solução alternativa para a construção de estruturas sustentáveis e recicláveis
Fazendo uso de peças recicladas de bicicletas e andaimes, os painéis “plug-in” criados pelos arquitetos do People’s Architecture Office oferecem uma ótima oportunidade para a construção de estruturas leves e montadas no local. Chamada de Lakeside Plugin Tower, a estrutura proposta pelo People’s Architecture Office como um protótipo para a nova área de Xiong’an, utiliza um sistema de construção em painéis que permite o máximo de flexibilidade ao longo da vida útil do edifício. Cada um destes elementos conta com um sistema exclusivo de encaixe, permitindo uma instalação fácil, rápida e descomplicada. Como um sistema extremamente flexível, os painéis plug-in podem ser acoplados uns aos outros ou removidos conforme a necessidade de seus usuários, permitindo adaptar-se aos mais diversos programas e funções específicas.
A pedra como portadora de memória e símbolo de identidade local
Tanto o projeto do Terminal Náutico do Rio Yaluntzangpu — projetado pela ZAO / standardarchitecture + Embaixada — quanto o Anfiteatro Ninho do Pedra — concebido pelo He Wei Studio —, fazem uso dos rochedos naturais locais como fonte primária de sua arquitetura, ressignificando um dos materiais construtivos mais arcaicos da história da humanidade para reaproximar comunidades com seu contexto do local específico. No projeto do Terminal do Rio Yaluntzangpu, todas as paredes e pisos foram construídos a partir de pedras reaproveitadas de antigas estruturas desocupadas. As paredes foram levantadas por construtores tibetanos, através de seus próprios padrões. Como a parada mais remota ao longo do rio Yaluntzangpu, este terminal náutico permite tanto a população local quanto os visitantes se conectem com a história do lugar, experimentando uma forte sensação de pertencimento e identidade local.
Em comparação, o Anfiteatro Ninho do Pedra do He Wei Studio se concentra mais na preservação da paisagem natural e no estabelecimento de um diálogo direito entre os usuários e a natureza. Inspirados pela arquitetura do Antigo Teatro de Epidauro, os arquitetos transformaram este antigo poço de pedra abandonado em um novo teatro à céu aberto, um espaço público que trará novas energias e novas oportunidades para a comunidade local.
Um teatro de bambu para celebrar antigas tradições
A importância do bambu na cultura chinesa surge de uma série de qualidades, como sua estrutura flexível, o efeito de luz verde cintilante que um bosque de bambu cria, suas muitas variedades e propriedades técnicas como material. Inspirados por tais qualidades, os arquitetos do DnA desenvolveram o projeto do Teatro de Bambu, um palco cênico que procura propagar a narrativa histórica que faz da aldeia de Hengkeng um lugar tão especial. Sentar-se à sombra deste bambuzal e curtir as performances ao vivo convida as pessoas à viajarem no tempo, como se estivessem vivendo em outra época, conectando-se com o espírito do lugar.
Estruturas de madeira como guias para a meditação
Além do bambu, estruturas leves de madeira têm sido utilizadas como outro importante material no resgate da arquitetura vernacular chinesa, proporcionando um pano de fundo ideal para a apreciação das qualidades da paisagem natural. Para o projeto desta modesta biblioteca no vilarejo de Huarou, apenas duas horas de carro do centro de Pequim, os arquitetos do Li Xiaodong Studio utilizaram estruturas leves de madeira para criar um ambiente de leitura como um cenário de uma contemplação silenciosa.
Depois de visitar a aldeia, os arquitetos perceberam que os moradores utilizam a madeira para fazer fogo, empilhando grandes quantidades de toras de madeira ao redor de suas casas. Assim, eles decidiram apropriar-se deste material quase banal de uma forma extraordinária, revestindo o edifício com texturas familiares de uma forma extremamente sensível.
Madeira reutilizada em respeito à história das aldeias chinesas
Assim como o bambu, a madeira também desempenha um papel fundamental na arquitetura vernacular chinesa, um material facilmente reciclável e versátil. Em seu projeto para o Museu Histórico da Vila Qifeng, os arquitetos do SUP Atelier utilizaram a madeira como o principal material construtivo, preservando antigos elementos a fim de estabelecer algum tipo de conexão com a história do lugar. Desta maneira, apropriando-se da estrutura de uma antiga casa comunal de dois pavimentos, que havia sido no passado um importante espaço público para a comunidade da Aldeia Qifeng, o SUP Atelier desenvolveu um amplo e respeitoso projeto de reforma, trazendo sua estrutra de madeira de volta à seu antigo esplendor.
Um edifício feito da própria terra como espaço para a perpetuação da memória coletiva
O projeto do Centro Comunitário Macha em Huining, província de Gansu, foi concebido pelo Oneartharch Architect como uma celebração dos métodos construtivos tradicionais e do estilo de vida peculiar de seus cidadãos. Organizados ao redor de um pátio central aberto destinado a acolher diferentes eventos públicos, os quatro volumes que compõe a estrutura do centro comunitário foram construídos em paredes de taipa utilizando matéria prima retirada do próprio terreno. Além disso, as escavações feitas para recolher a terra para a construção dos edifícios seguiram estritas diretrizes definidas no projeto de drenagem do lote, concebido para minimizar a deterioração do terreno com a erosão do solo. Desta forma, os volumes do novo centro comunitário de Huining parecem brotar da terra, respondendo diretamente as condicionantes locais, protegendo seus espaços dos ventos fortes e abrindo-se para o centro do pequeno vilarejo a fim de proporcionar um novo local de encontro e socialização para a comunidade local.
Estruturas de tijolos como portadoras de memória e significado social
Outro projeto desenvolvido pelo Fu Yingbin Studio que utiliza materiais locais é o Templo do Deus da Abundância, localizado na cidade de Lu'an, província de Anhui. Neste projeto encomendado pelas autoridades locais, o programa de necessidades solicitava aos arquitetos a construção de um espaço pedagógico para a conscientização da população à respeito dos valores da floresta e da importância de sua preservação para o futuro. Pensando nisso, os arquitetos do Fu Yingbin Studio apresentaram o projeto de um edifício construído com tijolos ocos, pois desde tempos imemoriais os chineses tem o hábito de escrever palavras de benção em papeis vermelhos e levar-los até os templos. Desta forma, o novo edifício transformou-se em um mecanismo de conexão entre as tradições do passados e as necessidades do presente.
Para concluir, a incorporação de materiais tradicionais na arquitetura contemporânea não apenas opera como um refúgio da memória e de costumes populares que parecem estar se perdendo no tempo, mas principalmente como uma forma de ressignificar antigas estruturas e técnicas construtivas tradicionais que correm um sério risco de perderem-se para sempre.