À medida que nossas cidades crescem a um ritmo cada dia mais vertiginoso, intensifica-se também a demanda para que arquitetos e construtores realizem seus trabalhos de forma mais eficiente e rápida. A pré-fabricação e modularidade foram introduzidas na arquitetura há séculos, um conceito que transformou e revolucionou a forma como concebemos e construimos nossos edifícios. Ao trabalharmos com padrões e relações de escala entre os vários componentes de um edifício, a arquitetura modular nos permite alcançar uma maior flexibilidade espacial, assim como rapidez, eficiência e economia de recursos durante o processo de construção.
Ao longo das dinastias Ming e Qing, em um período que abrange desde meados do século XIV até o início do século XX, a arquitetura chinesa em madeira evoluiu até atingir o seu auge. Caracterizada por elementos de encaixe e uma abundância de ornamentos e cores, a arquitetura tradicional chinesa não apenas dá origem à construção modular no país, mas, sobretudo, oferece uma fonte de inspiração aos profissionais contemporâneos.
Unidades Modulares Tradicionais
De acordo com Yingzao Fashi (traduzido como “Tratado sobre Métodos Arquitetônicos ou Normas de Construção Estaduais”), o mais antigo manual técnico chinês sobre os padrões de construção de edifícios, arquitetos e construtores chineses têm utilizado mecanismos de dimensionamento e técnicas de mensuração de diferentes elementos de madeira desde o ano de 1103.
Li Jie, autor do primeiríssimo código de obras chinês, serviu por muitos anos como superintendente na construção de edifícios do Estado, e posteriormente em 1100, como diretor das obras do palácio. Naquela ocasião, Li Jie sugeriu a adoção de uma medida padrão, a qual chamou de “cai”. Sua intenção com o emprego de uma unidade primária era padronizar os principais elementos de madeira utilizados na obra, permitindo assim calcular com mais precisão a quantidade de materiais necessários e consequentemente, ter uma noção mais exata dos custos—um mecanismo que finalmente poderia ser utilizado para controlar o orçamento das obras geridas pelo Estado. Foram criados 8 tamanhos ou graus de “cai”, fornecendo um elemento de escala para a mensuração dos diversos materiais e componentes de madeira utilizados em um edifício. Cada grau foi então segmentada em 15 partes iguais em altura e 10 em largura, definindo assim uma unidade de medida secundária nomeada “fen”. A partir de então, todos os componentes de uma construção em estrutura de madeira deveriam ser medidos e padronizados segundo estas novas regras e proporções.
Isso significa que cada “cai” foi definido com uma relação profundidade / largura de 3: 2. A partir dessa proporção, os marceneiros especializados seriam capazes de cortar elementos de madeira em blocos de tamanhos específicos, facilitando a posterior montagem e encaixe de elementos construtivos diversos como pilares, vigas, e esquadrias. A invenção e adoção de uma unidade modular padronizada acelerou e muito o processo de construção na China do século XII. Ocasionalmente, a introdução de elementos padronizados na construção civil deu início a um processo de regulamentação da quantidade de material necessário para a construção de determinados elementos e edifícios.
Sistema de Medidas
Sem dúvida, a redação do Yingzao Fashi e a consequente incorporação de um sistema padrão de medidas forneceu uma base sólida para o posterior desenvolvimento da arquitetura chinesa em madeira—especificando unidades de medida, padrões de projeto e princípios construtivos. Uma das consequências diretas da aplicação do novo sistema de medidas chinês pode ser visto nos elemento estruturais “Dougong”, utilizados na construção da Cidade Proibida, um conjunto de suportes de madeira criados para conectar pilares e colunas à estrutura do telhado.
Li Jie havia especificado em seu livro-código Yingzao Fashi cada um dos componentes modulares de madeira que compunham um dougong. Deste então, ao longo das dinastias Ming e Qing, o dougong foi amplamente utilizado na construção de palácios imperiais, principalmente devido à sua notável estabilidade estrutural e resistência à abalos sísmicos. Dougongs podem ser freqüentemente encontrados sob os beirais destes magníficos edifícios em madeira. Na ocasião de um terremoto, o dougong é capaz de transferir o peso da cobertura do edifício para as colunas de suporte. Além disso e talvez o mais interessante disso tudo, é que a modularidade de cada um de seus componentes foi pensada para que tudo se encaixe, permitindo que edifícios inteiros sejam “montados” sem a necessidade de vínculos rígidos, ou seja, sem nenhum prego, parafuso ou qualquer tipo de cola.
Através de um sistema estrutural em dougong, o peso da estrutura de um edifício pode ser distribuído de maneira mais uniforme e além disso, suas relações de escala e proporção permitem alcançar uma maior harmonia e simetria entre suas formas. Componentes de madeira de diferentes escalas e tamanhos são utilizados para dar forma à estrutura dos telhados, colunas, janelas e móveis.
A “ordem” do dougong está para a arquitetura chinesa assim como a ordem clássica está para a arquitetura ocidental. O dougong é um sistema de medidas fundamentado na concepção de design modular e que portanto, define e organiza as principais regras de escala e proporção na arquitetura. Como um conhecimento profundamente enraizado na cultura chinesa, o dougong foi utilizado ao longo dos últimos séculos, redefinindo as relações de escala na arquitetura tradicional chinesa, desde pequenos detalhes construtivos como encaixes e desenho de mobiliário até a construção de edifícios interiores e da própria Cidade Proibida.
Aplicação nos Dias de Hoje
Durante a Exposição Mundial de 2010 em Xangai, o Pavilhão da China—projetado pelo arquiteto chinês He Jingtang—foi construído como um símbolo representativo do espírito da cultura tradicional chinesa. A estrutura principal do pavilhão é composta por uma cobertura inversamente escalonada em seis camadas, 30 metros de altura e 56 suportes de madeira concebidos segundo os padrões dougong—representando simbolicamente as 56 minorias étnicas da China.
Durante uma cerimônia de inauguração do pavilhão, Yang Xiong, o vice-prefeito de Xangai, disse:
“O projeto de arquitetura e construção do Pavilhão da China para a Exposição Mundial de 2010, por ter sido desenvolvido segundo nossos antigos padrões de sistemas de medidas, é um símbolo da sabedoria incorporada na cultura tradicional chinesa. Além disso, esta estrutura também possui traços modernos e contemporâneos que fazem dela, atemporal. Algo que nos permite encarar o próprio tema da Expo 2010 a partir de uma nova perspectiva.”
O sistema dougong também foi escolhido naquela ocasião por sua compatibilidade com elementos pré-fabricados e a consequente facilidade e rapidez de montagem no local. Considerando que maioria dos pavilhões de uma Exposição Mundial sejam temporários, os materiais utilizados precisam ser minimamente recicláveis além de ambientalmente sustentáveis. Nesse aspecto, o dougong, como um sistema modular, não só representa a sabedoria da antiga arquitetura tradicional chinesa, mas também atende aos mais rígidos padrões contemporâneos de sustentabilidade.
Já se passaram décadas desde que o conceito de arquitetura sustentável apareceu por primeira vez. Desde então, o conceito de design modular foi ganhando importância e novos adeptos até se tornar um elemento imprescindível em nossa prática profissional. O projeto modular é celebrado por arquitetos e engenheiros do mundo todo como uma ferramenta fundamental para um processo de construção rápido e eficiente, resultando ainda na economia de recursos e materiais assim como permite uma alta adaptabilidade e flexibilidade da construção em si. Ainda assim, é importante estarmos atentos com as escalas, e como estes módulos podem ser melhor adaptados segundo cada contexto específico. O antigo tratado chinês nos ensina uma importante lição: as relações de escala entre cada um dos componentes é de extrema importância—senão da maior importância. Não se trata de apenas memorizar números e regras para então projetarmos um edifício; muito pelo contrário, é fundamental apreendermos de antemão as noções de escala e modularidade, incorporá-las em nossa prática diária, talvez, como a primeira e única regra do jogo de se fazer arquitetura.
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