Ao longo de quase um século, o maior sonho do americano médio era comprar uma casa com jardim, garagem e uma cerquinha branca. O sonho da casa própria e a ideia de viver em um bairro familiar afastado da agitação da centro da cidade eram considerados o estilo de vida ideal e o auge do sonho americano. Mas com o passar do tempo e as sucessivas crises econômicas e sociais que abalaram os Estados Unidos ao longo das últimas décadas, as autoridades locais começaram a perceber que bairros suburbanos exclusivamente residenciais não necessariamente eram um sonho, mas sim, um pesadelo.
Embora sejam muitos os motivos pelos quais as cidades estadunidenses tenham se tornado extremamente desiguais ao longo das últimas décadas, um dos fatores determinantes por trás do desproporcional aumento do custo da terra em áreas urbanizadas do país tem a ver com planos de zoneamento urbano ultrapassados e a consequente falta de oferta de moradias populares e acessíveis. Considerando o fracasso de muitos projetos recentes de revisão de planos diretores em proporcionar novas oportunidades e estabelecer moradias a preços acessíveis, sem falar na sensação de desconfiança que eles provocam, ainda há um grande desafio pela frente no que se refere ao estabelecimento de cidades mais acessíveis, democráticas e consequentemente, menos violentas. Ao longo das últimas décadas, a sociedade norteamericana voltou-se à cidade grande, com as novas gerações cada vez mais urbanas e menos suburbanas, algo incompatível com o antigo sonho da casa própria e a consequente hipoteca de trinta anos que à acompanha. Neste contexto, é imperativo que as leis de zoneamento urbano passem por uma revisão e atualização para que as cidades possam melhor se adaptar às demandas do século XXI.
E acontece que, este não é um problema que se limita apenas aos Estados Unidos. Em menor ou maior grau, este é um fenômeno que provavelmente afetará a grande maioria dos países do globo no futuro próximo. A maioria dos grandes centros urbanos já está enfrentando os efeitos da falta de oferta de moradias acessíveis. Se formos observar a atual situação de Hong Kong, por exemplo, onde o código de obras local limita a um máximo de 7% a quantidade de lotes urbanos que podem ser utilizadas para a construção de moradias, as consequências são obviamente desastrosas. Como uma das cidades mais densas do planeta, Hong Kong praticamente não tem mais para onde crescer. Considerando isso, a falta de novas áreas urbanizáveis somada a crescente demanda por moradias faz com que os preços por metro quadrado superem o valores do absurdo, forçando as pessoas a viverem em espaços cada vez menores e a um preço cada vez mais impraticável. A cidade de Londres também está encontrando dificuldades para se adaptar às novas exigências impostas pela crescente demanda por moradias. Como solução emergencial as autoridades locais aprovaram uma lei que permite transformar áreas de garagem não utilizadas em moradias unifamiliares, possibilitando absorver este imprevisto enquanto ganha tempo para se planejar para os desafios do futuro.
Em 1916, o Conselho de Estimativas da cidade de Nova Iorque lançava aquilo que ficaria conhecido como o primeiro mapa de zoneamento urbano da história do país, uma organização bastante setorizada que definia seus bairros e distritos como “residenciais”, “comerciais” e “industriais”. A primeira ferramenta legal a entrar em vigor nos Estados Unidos também segregava áreas residências unifamiliares de multifamiliares, um zoneamento urbano que de cara deixava ver que a cidade caminhava em direção à verticalização, privilegiando a construção de edifícios multifamiliares em detrimento de casas isoladas no lote. Ao longo dos últimos dez anos, as autoridades da cidade de Nova Iorque foram obrigadas a revisar muitas de suas leis de uso e ocupação, muito em razão da crise imobiliária que se instaurou no país ao longo das últimas duas décadas. Como resultado disso, uma nova legislação foi aprovada, estabelecendo a obrigatoriedade de disponibilizar unidades habitacionais a preços acessíveis. Embora a maioria dos bairros tenham sido inteiramente rezoneados, na prática as coisas não funcionaram como previsto e muitas concessões tiveram de ser feitas—ressaltando a urgente necessidade por um constante processo de revisão e adaptação das normativas vigentes.
Outras cidades, como é o caso da capital dos Estados Unidos, adotaram medidas aparentemente mais simples, afrouxando as limitações e permitindo densificar e verticalizar determinadas áreas da cidade. Tal política tem o poder de transformar radicalmente o caráter de um bairro ou região da cidade, permitindo que a cidade se adapte de acordo com as demandas da população e a boa vontade dos investidores. Iniciativas como esta também podem ser controladas e estabelecidas com critério. A cidade de Washington D.C. aprovou recentemente uma ferramenta legal para promover diferentes estratégias de financiamento e regeneração urbana. Neste contexto, um antigo terreno junto a Union Station foi reurbanizado e cedido ao mercado imobiliário, estabelecendo um novo bairro de uso misto de quase 150 hectares em pleno coração da capital. O empreendimento será responsável por gerar uma receita de mais de 50 milhões de dólares em impostos e taxas sobre a propriedade na cidade de Washington todos os anos. O projeto foi considerado um grande sucesso, muito porque os próprios proprietários de terras e incorporadores foram obrigados a investir parte do seu capital em obras de infraestrutura pública em troca do direito de construir.
Um ano atrás, a cidade de Minneapolis apresentou uma proposta com a qual procurava eliminar por completo todas as áreas de uso residencial exclusivo na cidade, proporcionando um incremento imediato de 60% no solo disponível para a construção de unidades multifamiliares no tecido urbano existente. Além disso, a prefeitura de Minneapolis exigia que os incorporadores disponibilizassem uma certa porcentagem de unidades habitacionais para serem comercializadas a preços abaixo do valor de mercado, ou seja, subsidiadas, garantindo assim uma oferta homogênea de unidades habitacionais à população de baixa renda. Como resultado disso foram construídos uma série de casas geminadas, pequenos edifícios em altura e apartamentos com jardins que permitiram preencher a demanda por moradia sem precisar ampliar ou expandir a malha urbana existente. Em um país onde apenas duas tipologias reinaram absolutas por quase um século— arranha-céus e casas isoladas no lote—, a necessidade por soluções alternativas e intermediárias se faz urgente e imprescindível.
Mas será que isso vai funcionar? O conceito de “up-zoning”, como no exemplo da cidade de Minneapolis, é um instrumento urbanístico relativamente novo e é muito difícil prever se dará certo em outros contextos. Embora uma maior variedade de soluções habitacionais possa significar uma maior diversidade de moradores e classes sociais, não há maneira de garantir o sucesso desta iniciativa. Muito dependerá de como as leis são interpretadas e atualizadas ao longo do tempo. Quantas cidades americanas do meio-oeste estão dispostas a abolir suas áreas residenciais de uso exclusivo? Quem estará disposto a subsidiar parte destas novas unidades para que possam ser comercializadas à preços mais baixos para que possam ser direcionadas àqueles que mais precisam? Todas as revisões das leis de zoneamento devem incluir áreas de uso misto e estratégias de incentivo à economia local? Seja como for, nossas cidades precisam lidar com este fenômeno, e a única solução parece ser a flexibilização das antigas normativas e um processo constante de revisão das regras de zoneamento urbano de uma cidade.