A relação entre o mercado e o Estado tem sido tradicionalmente entendida como um esquema de três camadas. O Estado garante os direitos de propriedade e outras pré-condições dos mercados. Os mercados operam dentro desta estrutura e oferecem resultados eficientes. O Estado corrige as falhas do mercado por meio de instituições complementares como, em alguns casos, políticas de bem-estar social. A gestão das cidades não é diferente e questões como o desenvolvimento econômico, acessibilidade a bens e serviços, mobilidade, sustentabilidade, liberdade e bem-estar, dependem da relação entre os mercados e o Estado.
Os mercados são instituições nas quais indivíduos ou agentes coletivos trocam bens e serviços usando o dinheiro como meio de troca, o que leva à formação de preços. Um sistema de preços livres estabelece um mecanismo transacional espontâneo e descentralizado que transmite informações complexas sobre as preferências das pessoas, as condições de oferta e de procura de bens e serviços. Para Hayek, vencedor do Nobel em Economia em 1976, o conhecimento e as informações mantidas por vários agentes só podem ser utilizados plenamente em um sistema econômico descentralizado, de livre iniciativa. A segurança do direito de propriedade — principalmente a propriedade de terras e ideias, ou patentes — para que essas trocas possam ocorrer gerou os incentivos para inovação e investimentos que catalisaram a Revolução Industrial na Inglaterra em 1760.
A Era das Cidades
Com a industrialização e o comércio, a ordem espontânea criada pelos mercados se manifestou na forma de cidades. Aumentava a demanda por trabalhadores nas indústrias e pobres camponeses migravam para as cidades de todo o mundo em busca de renda. A palavra “slum”, em inglês, foi originada na Europa Ocidental no século XIX para caracterizar os locais pouco drenados e lamacentos, perto das fábricas, às margens dos canais, que acomodavam os pobres migrantes em habitações baratas, pouco drenadas e superlotadas, com densidades que superavam 40 mil hab/km².
Em 1830, Londres se tornava a cidade mais populosa do mundo com 1,3 milhões de habitantes, e a renda per capita de seus habitantes era de apenas US$ 1.749 (nos preços internacionais de 1990), o equivalente à renda per capita de Honduras, Moçambique ou Paquistão em 2003. Nos estágios iniciais de desenvolvimento, a pobreza era o estado padrão dos britânicos. O mesmo desenvolvimento da indústria e do comércio ocorreria no Brasil, mas um século depois, principalmente após a Declaração da República e, em seguida, com a rápida urbanização a partir de 1950.
O que os países em desenvolvimento enfrentam nos dias de hoje, os países desenvolvidos enfrentaram durante sua urbanização no passado. Ou seja, muitos dos atuais problemas de ordens econômicas e sociais como crime, habitações precárias e informalidade, estão na natureza do processo de urbanização em seus estágios iniciais e intermediários de desenvolvimento.
As cidades se tornaram atrativas ao proporcionar emprego e renda, diversidade de bens e serviços, lazer e cultura. Mas múltiplos problemas surgiram no processo. A expectativa de vida de recém-nascidos em Londres na Era Industrial era de apenas 12 anos — menor que no campo. Mas as cidades evoluíram com o empreendedorismo, investimentos, produtividade e comércio.
A cidade enriquece quando atrai novos investimentos ou quando exporta bens e serviços para outras cidades. Os preços associados à renda do trabalhador, como o transporte, a construção civil e a oferta de bens e serviços, moldam as cidades a partir de preferências e necessidades.
Antes das ferrovias, as fábricas se instalavam perto dos canais para se evitar custos de transporte. Sem recursos para adquirir boas habitações e meios de transporte, os pobres imigrantes aglomeravam nas áreas lamacentas perto das fábricas onde havia oportunidades de emprego. Os empregados assalariados se tornaram consumidores dos bens e serviços produzidos para as massas.
Os negócios competiam para atender a crescente demanda dos consumidores com mais qualidade e menor preço. As empresas se instalavam em locais que permitiam amplo acesso ao mercado de trabalho e de consumo. A localização urbana mais demandada, entretanto, era o centro comercial, geograficamente mais próximo de todos os cantos da cidade, e por onde partiam as linhas radiais de transporte ferroviário.
Mercado imobiliário
O elevado preço da terra na região central era um reflexo da demanda pelo local, o que exigia o maior aproveitamento da terra: mais área construída de escritórios, lojas e apartamentos, elevando a densidade. As edificações centrais em Londres eram tinham até trinta metros, aproximadamente dez pavimentos, com uma taxa de ocupação dos lotes entre 60 e 100%, resultando em construções com área de entre cinco e nove vezes a área dos terrenos. Em Manhattan, este índice de aproveitamento dos edifícios na virada do século XIX para o século XX chegava a vinte. Mais pessoas podiam assim acessar a localização central e os mercados de trabalho e consumo em menor tempo, otimizando a oferta e a demanda de bens e serviços, tornando a cidade dinâmica, competitiva e produtiva.
De 1800 a 2000, a população urbana mundial passou de 7% para 43% da população total. Para cada 1% de aumento na taxa de urbanização de um país, a renda cresceu 2%. Os dados históricos também sugerem que a renda per capita cresce ainda mais rápido após a estabilização populacional das principais cidades de um país.
Neste mundo cada vez mais urbano, diferente de uma sociedade rural, não é preciso obter quantidades significativas de terra para adquirir renda e qualidade de vida. Basta uma fração mínima, a conhecida fração ideal, para garantir um espaço na cadeia produtiva urbana. A multiplicação do solo em pavimentos empilhados permite a desconcentração da propriedade sobre a terra e otimiza o uso do espaço. Um habitante pode ocupar um imóvel de 100 m², mas sua fração ideal do terreno pode bem ser o equivalente a 1 m² de terra.
Como descreve o urbanista Alain Bertaud, por meio dos preços, os mercados transmitem as complexas informações que geram a ordem espacial das cidades. Na maioria dos casos, observa-se elevada intensidade de uso do solo nas regiões centrais e menor intensidade em regiões afastadas. Ainda assim, mercados permitem respostas a diferentes preferências em uma mesma cidade ou em cidades diferentes. Em Nova York, por exemplo, é possível estar em Upper East Site, região nobre próxima ao Central Park, cuja densidade atinge 60.000 hab/km², ou em Newark, região de densidade de 1.000 hab/km². O poder de decisão é do consumidor, seja por uma localidade central e próxima a empregos, ou por mais espaço em uma área menos densa ou demandada.
As preferências dos habitantes por localidades em uma cidade são transmitidas através dos preços no mercado imobiliário, cujo funcionamento ocorre como em qualquer outro mercado. Se muitos consumidores preferem um terreno, a competição por adquiri-lo pode elevar o preço a tal ponto que nenhuma pessoa sozinha consegue adquiri-lo.
Assim surgem os condomínios verticalizados, uma associação democrática de propriedade e uso da terra. Caso a demanda pelo local seja baixa, os preços serão menores, e a intensidade de uso da terra assim como a densidade populacional tenderão a ser menores. Ausentes as restrições à oferta, em um mercado de competição perfeita, nenhum participante tem o poder para definir os preços, que são ultimamente reflexo da ação coletiva. O preço é definido pelo mercado.
Mercados e políticas urbanas no Brasil
Os mercados transmitem por meio dos preços as informações que geram a ordem espacial das cidades e, quando os preços são distorcidos, o mesmo ocorre com a ordem gerada pelos mercados. — Alain Bertaud
Os planos urbanísticos no Brasil tendem a ignorar o funcionamento dos mercados, gerando graves consequências para as cidades. Diagnosticado internacionalmente, em face do crescimento econômico e populacional, leis restritivas causam o envelhecimento de áreas centrais e a dispersão do desenvolvimento imobiliário com a fuga de investimentos para áreas afastadas ou municípios vizinhos. A inelasticidade da oferta, isto é, a incapacidade de atender a demanda prontamente prejudica a acessibilidade à habitação e torna os imóveis mais caros relativos à renda.
Impedimentos a atividades na construção civil atrasam a produtividade e a redução do déficit habitacional. Como apontado por Alain Bertaud, ex-chefe do departamento de planejamento urbano do Banco Mundial:
Estamos enfrentando uma situação estranhamente paradoxal na forma como as cidades são administradas: os profissionais encarregados de modificar os resultados do mercado por meio de regulamentações (planejadores) sabem muito pouco sobre os mercados, e os profissionais que entendem de mercados (economistas urbanos) raramente estão envolvidos no projeto de regulamentações destinadas a restringir esses mercados.
Na visão de parte dos planejadores brasileiros, o trânsito, o clima, a desigualdade econômica e a especulação imobiliária são determinantes para a política de restrição ao aproveitamento do solo, e consequentemente, a restrição à produtividade do solo e a oferta de imóveis.
Mas estes fatores realmente se justificam? Tome Porto Alegre e Nova York, por exemplo. Os 1,48 milhões de habitantes em Porto Alegre ocupam uma área construída de 200 km². Os 1,63 milhões de habitantes de Manhattan ocupam uma área construída de 59 km². Como uma população 10% superior ocupa um território 70% inferior e obtém consideráveis índices de mobilidade, prosperidade e bem estar? No Brasil, projetos de edificações com mais de 150 metros de altura em um raio de 15 km dos aeroportos devem ser submetidos à aprovação do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (DECEA), sem critérios pré-estabelecidos, podendo ocorrer a proibição da construção ou limite a altura. Em Manhattan há edificações de mais de 400 metros a 8,3 km do Aeroporto de La Guardia.
Em se tratando do clima, Singapura está posicionada a 1,3 graus acima da Linha do Equador, sua temperatura média anual é de 27° C e o índice de aproveitamento básico dos terrenos na cidade chega a 25. Belém, capital do Pará, também está a 1,3 graus da Linha do Equador e sua temperatura média anual também é de 27° C, mas o maior índice de aproveitamento na cidade é 3,3. Com renda per capita de US$ 94.670 e IDH de 0,935, Singapura é uma das cidades mais prósperas do mundo.
Apenas para comparação, a renda per capita em Belém é de US$9.543 e o IDH é 0,746. O elevado aproveitamento do solo não afetou o clima em Singapura e nem a tornou mais pobre ou desigual — o índice GINI de desigualdade em Singapura é 0,48, menor que os 0,63 do estado do Pará. As cidades do Sul do Brasil, com temperaturas médias entre 19° e 21°, também possuem índices de aproveitamento de até 3. Ou seja, leis aplicadas no Norte do país são aplicadas de forma muito semelhante no Sul, independente do clima ou posição geográfica.
Com exceção de grande parte das cidades europeias — que desenvolveram parte considerável do seu ambiente urbano até o fim do século XIX, com índices de aproveitamento de até 10, e que hoje optam por preservar seu patrimônio histórico —, os índices de aproveitamento nas áreas centrais das cidades que ainda promovem o desenvolvimento são exemplos do grau de heterodoxia do planejamento urbano brasileiro. Como dito por José Aparecido Ribeiro, jornalista mineiro: “O mundo caminha para um lado, e o planejamento das cidades brasileiras caminha para o outro. Será que o mundo está errado e nós estamos certos?”
Os planejadores dessas cidades buscam manter índices de aproveitamento superiores ao índice do estoque imobiliário construído por basicamente quatro razões: permitir que seus habitantes e empresas cresçam ou consumam mais espaço construído por pessoa sem terem que mudar para áreas afastadas; reduzir a expansão horizontal da cidade e os custos associados em termos econômicos e ambientais; incentivar a reconstrução de edifícios obsoletos mantendo as cidades revigoradas e integradas; permitir o surgimento de economias de escala.
Uma propriedade passível de construção é precificada em função do seu potencial de produção e da preferência do consumidor pela localização. Mas na visão de grande parte dos planejadores brasileiros, o valor das propriedades deve restrito e igual para todos os proprietários. Esta é talvez a principal razão da regulação de índices de aproveitamento restritos e constantes no território das principais cidades brasileiras. Os fundamentos da equalização dos coeficientes de aproveitamento são formulados pelo jurista José Afonso da Silva como forma de reduzir a disparidade econômica, promovendo um tratamento igualitário entre os proprietários de terra.
Para a presidente do IAB-MG, Dorinha Alvarenga, conforme afirmação em coletiva de imprensa junto ao prefeito de Belo Horizonte em 2019, “ninguém deve poder construir mais que ninguém”. Nas cidades onde o índice de aproveitamento básico é 1, o desenvolvimento é condicionado à outorga onerosa que, de acordo com José Afonso, ajudará o poder público a recuperar a mais-valia oriunda do direito de construção. Já os membros da Secretaria de Planejamento de Belo Horizonte acreditam que tornarão as propriedades mais acessíveis às classes mais pobres restringindo o potencial de construção, ou seja, gerando escassez.
Hsieh & Moretti mostram que a restrição à oferta de habitações não só torna os imóveis mais caros como reduz a taxa de crescimento econômico e o bem-estar dos habitantes. Outro fator determinante para a política urbana brasileira é o argumento de que há concentração excessiva nas propriedades no mercado imobiliário, como se a realidade do sistema feudal ainda estivesse vigente. No entanto, ao longo da história houve desconcentração de propriedades, aumentando o número de proprietários de imóveis e permitindo que imóveis sejam transacionados para proprietários que façam melhor uso dos recursos.
Apesar disso, mercados não devem ser dominados ou monopolizados e o Estado deve corrigir falhas do sistema econômico, mas não o sistema em si. Como diz Bertaud: “Mercados são como gravidade, eles existem em todo lugar. Mas enquanto planejadores urbanos são bons em considerar a gravidade, eles tendem a ignorar completamente as forças de mercado em seus planos, resultando em um desenvolvimento urbano que frequentemente falha em endereçar as necessidades dos moradores da cidade.” Os principais objetivos do planejador deve ser garantir a mobilidade e o fluxo de bens e serviços e, nesse sentido, o provisionamento de áreas públicas adequadas para que a infraestrutura possa existir e ser expandida, assim como o bem-estar da população. Para isso, é fundamental o entendimento do funcionamento dos mercados.
O sucesso urbano de grandes metrópoles deve ser medido em função do tamanho da força de trabalho e de altos salários reais, isto é, elevada razão entre a renda e os preços de bens e serviços, e não o contrário. Não se torna propriedades baratas e acessíveis restringindo a oferta. Se um planejador urbano não entende ou rejeita os princípios básicos de consolidação de centros urbanos e economias de mercado, ele não deve planejar uma cidade.
Via Caos Planejado.