Se pararmos para pensar, a maioria dos alimentos que vemos em nosso prato possui uma história marcada por um longo trajeto que somos incapazes de descrever. Robyn Shotwell Metcalfe, em seu livro Food Routes: Growing Bananas in Iceland and Other Tales from the Logistics of Eating (2019), cita como exemplo a improvável rota dos peixes que são pescados na Nova Inglaterra, exportados para o Japão, e depois enviados de volta como sushi, revelando uma grande e complexa rede invisível aos olhos de quem compra a bandeja de comida japonesa no mercadinho da esquina.
Para se ter uma ideia da dimensão dessas rotas, Rafael Tonon no texto Da fazenda para a cidade, comenta que nos EUA 95% da comida percorre mais de 1,6 mil quilômetros para chegar aos pontos de venda. Ou seja, toda verdura disponível nos mercados do país demora uma semana para vir da Costa Leste e ser distribuída nos mercados. No Brasil, essa realidade não é diferente. Segundo o Plano Nacional de Logística, ainda em 2015, foram transportadas 2,4 trilhões de TKU (toneladas por quilômetros úteis) de cargas alimentícias durante todo o ano, sendo que, dentre elas, 65% foram viabilizadas via sistema rodoviário, seguidas por 26% na rede hidroviária. É muito chão percorrido até chegar nas gôndolas dos supermercados.
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Nesse sentido, não é à toa que hoje se utiliza muito o termo food miles em referência à distância percorrida pelos alimentos durante seu processo produtivo e os respectivos impactos ambientais dessa prática. Em suma, o termo traz à tona a defesa de um modelo que busca garantir a qualidade do alimento e a redução das perdas e desperdícios por meio de uma cadeia logística de distribuição e de comercialização mais eficiente, baseada em encurtar as distâncias entre a produção e o consumo.
Essa complexa e extensa rede de transporte alimentício também fez com que a acessibilidade espacial de alimentos saudáveis tenha se tornado um índice determinante de um estilo de vida saudável. Índice, infelizmente, pouco palpável para a maioria da população dos grandes centros urbanos que vive longe de áreas agrícolas e carece de espaços verdes e contato com a natureza.
Entretanto, na busca por alimentos realmente frescos – para além da mera imagem na embalagem – têm surgido muitos movimentos que procuram reconectar os habitantes das cidades com sua comida, uma certa volta às origens em que conhecíamos tudo que o consumíamos – modelo que, não à toa, culminou no fim de nosso nomadismo. São estratégias que procuram evidenciar as rotas de produção e consumo dos alimentos, mas também demonstram a crescente preocupação com o meio ambiente. Para se ter uma ideia, só o transporte alimentício rodoviário no Brasil emite mais de 100 milhões de toneladas de CO2 por ano. Tal situação tem incentivado práticas como o locavorismo, que é o hábito de comprar alimentos apenas de produtores ou pequenos comércios da região. Com isso, se busca evitar a perda de nutrientes, de frescor e o impacto ambiental gerados nas longas viagens que os alimentos percorrem até chegar aos grandes mercados.
Essas novas perspectivas no modo de consumir e se alimentar têm, obviamente, refletido no urbanismo e na arquitetura das cidades. Em contrapartida a uma realidade urbana caótica e improvável, surge, portanto, projetos que se esforçam em trazer o verde para dentro das cidades, aliando arquitetura, tecnologia e educação ambiental.
Não estamos falando apenas das pequenas hortas individuais, apesar de estarem cada vez mais presentes, tanto em casas quanto em apartamentos, mas também, e principalmente, dos grandes projetos de fazendas verticais ou hortas urbanas capazes de produzir toneladas de alimentos por ano. Exemplos que surgem como estratégia para aproximar os alimentos dos consumidores, mas não apenas: eles também podem ser vistos como táticas inteligentes para melhor o aproveitamento do solo, visto que, segundo projeções, espera-se que nos próximos 50 anos a população alcance no mínimo 9 bilhões de pessoas. Ou seja, também não haverá espaço suficiente para produção de alimentos se continuarmos a depender unicamente de métodos tradicionais e fazendas horizontais.
Diante desse prognostico nada animador, a boa noticia é que em alguns lugares do planeta esse futuro urbano verde já chegou e está longe da imagem futurista usualmente associada na qual a fazenda vertical é um enorme arranha-céu high-tech. A capital francesa, Paris, por exemplo, inaugurou uma enorme fazenda urbana de 14 mil m² sobre a cobertura de um edifício. O plantio ainda não cobre toda esta área, mas quando isso acontecer ela poderá ser considerada a maior da Europa e, talvez, do mundo. Batizado de Nature Urbaine, o projeto é realizado no Paris Expo Porte de Versailles – o maior parque de exposições da França. No topo do prédio, serão produzidas mais de mil frutas e vegetais por dia, de cerca de 20 espécies diferentes. Haverá sempre alimentos sazonais e fresquinhos da horta. Vinte jardineiros serão responsáveis por cuidar do cultivo e, o melhor, sem usar agrotóxicos ou fertilizantes químicos.
Além da apropriação das coberturas de edificações já construídas, surgem também estruturas independentes e vanguardistas como o Glasir, um sistema aeropônico modular para a produção de legumes e vegetais em pleno centro da cidade de Nova Iorque. Concebido pelo Framlab o projeto ofereceria produtos locais e acessíveis, promovendo uma maior resiliência aos bairros urbanos densamente construídos. Assim como a Superfarm, projeto ainda utópico, do Studio NAB uma estrutura vertical de seis pavimentos dedicada à agricultura urbana que “concentra sua produção na cultura de alimentos com alto valor nutricional”. O projeto é voltado a culturas de alta produtividade como modo de revigorar economias locais.
Falando em fazendas urbanas, não seria possível deixar de citar também o Distrito Agrícola Urbano Sunqiao, em Xangai. Com cerca de 24 milhões de habitantes para alimentar e um declínio na disponibilidade e qualidade de terras agrícolas, a megacidade chinesa criou um masterplan de 100 hectares proposto pela Sasaki Associates, dos EUA. Situado entre o principal aeroporto internacional de Xangai e o centro da cidade, Sunqiao introduzirá a agricultura vertical em grande escala na cidade famosa por seus arranha-céus. Embora responda principalmente à crescente demanda agrícola na região, a visão de Sasaki vai mais longe, usando a agricultura urbana como um laboratório vivo e dinâmico para inovação, interação e educação.
Em se tratando de iniciativas de média escala, vale ressaltar também o escritório Pasona, em Tóquio, que dedicou 20% da sua área para cultivo de vegetais, tornando-se a maior fazenda urbana do país. Porém, é importante notar que pelo fato de os jardins conterem tanto vegetais hidropônicos quanto plantados em terra, eles necessitam de um controle climático bastante preciso. Isto frequentemente significa manter estes espaços mais quentes que os níveis considerados confortáveis para escritórios e esta é, indiscutivelmente, a característica mais desagradável do edifício. Um desafio intrinsecamente relacionado ao pioneirismo da iniciativa.
Contudo, além dos grandes projetos, como os citados anteriormente, destaca-se aqui também as pequenas iniciativas e políticas públicas que fomentam a agricultura urbana de pequena escala nos centros urbanos. Entre elas está o projeto os ‘Quintais Sustentáveis’ aplicado em Roraima, norte do Brasil, que procura incentivar a plantação em quintais e jardins particulares, buscando não somente a produção sustentável de base agroecológica, mas também a segurança alimentar e nutricional, geração de renda e inclusão social e produtiva de públicos em situação de vulnerabilidade que vão desde produção de mudas até a comercialização de compostos orgânicos.
Outro exemplo interessante é a uma lei implementada em San Francisco há alguns anos que visa tornar mais sustentáveis os terrenos desocupados que existem na cidade. A normativa propõe que os proprietários dos terrenos possam pagar menos impostos se permitirem que esses espaços sejam destinados à criação de hortas urbanas abertas à comunidade durante um período mínimo de cinco anos.
De projetos megalomaníacos a estratégias pontuais, uma coisa é fato: estamos nos preocupando cada vez com a qualidade dos nossos alimentos, procurando viver de forma cada vez mais saudavelmente sustentável. Um desejo que inicia uma nova era nas cidades com surgimento de fazendas urbanas verticais. Um esforço ainda incipiente que requer trabalho conjunto entre arquitetos, cientistas da computação e agrônomos na criação de cidades verdadeiramente inteligentes que, longe de uma fantasia, têm se tornado cada vez mais uma necessidade.
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