Imaginar e experimentar outros modos de compreender a relação entre o corpo humano, os espaços e as ideias que o conectam com o mundo foi uma das principais elaborações que Hundertwasser trouxe à tona. O artista e arquiteto austríaco, nascido em 1928, desenvolveu grande parte da sua obra voltada para as questões ambientais, expondo seu ponto de vista através da teoria das cinco peles: epiderme, vestuário, casa, identidade social e o mundo. Um conceito que por sua universalidade ainda traz consigo um viés contemporâneo.
Para explorar as conexões dinâmicas que acontecem entre cada pessoa e seu entorno, é necessário primeiro entender que o corpo aqui é visto como um organismo de fronteiras fluídas e permeáveis, que se ampliam para compor instâncias plurais, nas quais confrontam novos pensamentos sobre ética e a responsabilidade coletiva colocada por ela. Vale ressaltar que, aqui, a ética própria não necessariamente se valida com uma coletiva. O próprio arquiteto em sua trajetória demonstrou criativamente como é possível estar fora das lógicas impostas por uma sociedade para viver dentro de suas próprias crenças através da natureza e dos meios sociais, ou cultura, sem desrespeitá-los. E é através das possibilidades experimentais das cinco peles que ele manifesta isso.
Primeira pele: epiderme
A camada exterior da pele, a epiderme, é responsável principalmente pela proteção do corpo. Trata-se de uma barreira impermeável e renovável que também configura o nível primário de nosso contato com o externo e, portanto, da nossa consciência e convivência com o todo: uma conexão direta entre os seres humanos e os ecossistemas.
Diante do caos tecnocrático, Hundertwasser aconselha andar descalço, experimentar a nudez e tomar ciência da própria expressão individual. As ações não devem ser moldadas para se adequar ou transparecer uma imagem que não seja a sua própria verdade. É através da natureza primordial que a pele se estabelece como uma ponte entre o homem e a realidade, revelando a diferença que existe em relação ao corpo em si e à imagem que se cria dele.
Segunda pele: o vestuário
Um passaporte social, uma afirmação perante a sociedade, a segunda pele, ou as roupas que vestimos, é um modo de expressar nossa individualidade.
Ao se contrapor à uniformidade anônima que as roupas produzidas em massa estabelecem na sociedade, Hundertwasser passou a costurar seus próprios trajes e clamava para que as pessoas trouxessem mais criatividade em suas vestimentas, como forma de proclamar o próprio individualismo, fator ideal para manter a diversidade do todo e possibilitar novos imaginários na sociedade.
Terceira pele: a casa
Aqui nos deparamos com a dimensão física que se estabelece na urbanidade e com o modo como a arquitetura deve prezar pela harmonia com a natureza. Hundertwasser manifestava sua aversão à linha reta e a rigidez que ela impunha ao ser-humano através de "estruturas estéreis". Se em suas pinturas ele trazia linhas orgânicas e através dela trabalhava todo seu potencial criativo, no espaço construído ele também clama pela possibilidade de liberdade para a criação no edifício.
Segundo o austríaco, as irregularidades não reguladas são imprescindíveis para alcançar a beleza. Através do uso das cores, de diferentes composições que podem gerar ritmos que diversificam o olhar, do (não) nivelamento do solo, do emprego dos materiais, em suma, tudo o que pode ser traduzido para um pensamento não-linear e que se aproxime da natureza podem trazer a dignidade da realização da criatividade individual.
Quarta pele: identidade social
A identidade dos seres humanos é baseada em como somos diferentes um dos outros e este fato se relaciona com o ambiente social através do qual nos afiliamos, da família até a nação. Em outras palavras, as afinidades eletivas proporcionam a vida numa coletividade que permite, através da convivência, trazer distintos aportes para a construção do caráter pessoal e de ideologias perante o comportamento moral e pensamento racional de cada pessoa.
Aqui é lembrado o modo como a sociedade age perante o meio-ambiente: o uso de agrotóxicos, a forma como opta por usar seu transporte, o uso de materiais renováveis ou o fato do lixo ser reciclado ou não. É um momento no qual o ser humano se encontra com o outro e deve se ver no meio do ciclo natural e aprimorar sua função. Por este motivo, Hundertwasser destaca a necessidade de proteger algumas tradições, símbolos, que são fundamentais para disseminar a mensagem de uma harmonia universal.
Quinta pele: o mundo
Diretamente relacionada com o destino da biosfera, a qualidade do ar que respiramos e o estado da crosta terrestre que nos abriga e nos alimenta, a quinta pele volta seu olhar para o fato da evolução do ser humano conduzir à sua própria ruína, uma vez que está em constante conflito com a natureza.
Portanto, a criação pessoal e sua pegada ecológica passa a exercer influência no projeto de sociedade. Sendo assim, é necessário que o homem esteja em harmonia com a natureza - vista por Hundertwasser como uma força ativa de importância superior da qual o homem é dependente - para gozar do seu direito de viver em espaços felizes e fluir através de redes de sensibilidade intuitiva que a criatividade pode trazer perante o contexto convencional de uma ideologia comum.
Da epiderme ao mundo, a latência individual é colocada em diferentes modos e escalas a fim de demonstrar a possibilidade de tecer a própria relação pessoal com a Terra, transformando-se numa nova perspectiva de vida, na qual a harmonia com a natureza prevalece e, através da liberdade, cada pessoa consegue explorar e trazer a criatividade para o entorno no qual vive.