Um (novo) fim para o entulho na cidade de São Paulo

De que forma um resíduo pode se tornar recurso? Ou melhor, quando que um resíduo deixou de ser um recurso? Porque a arquitetura contemporânea ainda constrói como se nossos edifícios fossem grandes titãs que sobreviverão às diversas eras e às adversidades? Essas são todas questões que passam pela mente de um recém-formado em arquitetura. Um dos desafios atuais da produção arquitetônica em uma metrópole como São Paulo é compreender que, após a demolição, o edifício não desaparece. O que nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos nos aponta?

Mesmo que latente, esta questão é ainda pouco debatida dentro da academia, espaço que deveria ser de proposições constantes de alternativas ao nosso estilo de vida. E mesmo que debatida, onde está seu retorno para a população? De que forma podemos difundir esses aprendizados? A educação ainda sim é a chave para a mudança de trilhos do nosso futuro.

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O que diz nossa política

Em agosto de 2010 foi sancionada a Lei federal nº12.305 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). A PNRS determina por lei eliminar a disposição em aterros sanitários de resíduos de quaisquer materiais passíveis de reciclagem e recuperação. Ainda, um dos pontos fundamentais da política nacional é a indicação de um prazo de quatro anos para a extinção de todos os lixões do país e para a produção de um Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PGIRS) para cada cidade do país.

De introdução ao documento, de 2014, o governo municipal de São Paulo afirma que o modelo de gestão de resíduos atual da cidade é ineficiente, uma vez que se consome espaço, gasta-se com transporte e se desperdiçam materiais recicláveis. Apesar de datados do ano de 2012 até 2014, os dados apresentados são alarmantes e muito válidos para a compreensão do cenário da gestão de resíduos da cidade, em especial os resíduos da construção civil e demolição (RCD).

Das competências e responsabilidades, a PNRS e o PGIRS de São Paulo reiteram as aptidões estabelecidas pela resolução nº307 do CONAMA. Dentre elas está o dever dos pequenos geradores de fazerem a segregação prévia dos resíduos gerados de acordo com as normas estabelecidas, além de apresentar a Comunicação de Pequenas Obras na sua Subprefeitura, e informar-se sobre empresas de transporte de RCD licenciadas, quando necessário. Apenas quando sua geração de resíduos excede a marca de 1m³ diário o gerador pode deixar em um Ecoponto. Para quantidades de RCD superiores a 1m³, se é obrigado por lei a contratar um serviço licenciado de empresas de caçambas, para a correta disposição de seus resíduos.

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Panorama de uma das poucas áreas verdes no Jardim Elba, extrema zona leste de São Paulo. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Fonte Google Earth

Para tentar atender a população, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais (SMPR) inaugura desde 2002 áreas para a deposição regular do RDC e resíduos volumosos de pequenos geradores. Esses locais, intitulados Ecopontos, são destinados à entrega voluntária de pequenos volumes de entulho (até 1m³/munícipe/dia), grandes objetos (móveis ou poda de árvores) e resíduos recicláveis. 

Os Ecopontos são compostos por: duas caçambas de 12m³ para recebimento de RCD, duas de 24m³ para os grandes volumes, além de PEVs (Ponto de Entrega Voluntária de recicláveis), que são caixas verdes semelhantes a contêineres, para o recebimento e reciclagem de papel, vidro, alumínio e plásticos.

Também é cabível mencionar que a população que utiliza dos serviços dos Ecopontos é aquela carente de recursos para o aluguel de caçambas e carretos para o descarte apropriado de entulho. Coincidentemente, as populações de baixa renda também são responsáveis pela autoconstrução na cidade de São Paulo, e em sua grande maioria estão localizadas às margens da cidade, em suas zonas mais extremas, onde o número de Ecopontos é menor ou inexistente.

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Ecoponto da Vila Sabrina, na zona norte de São Paulo. Em primeiro plano observa-se as duas caçabas de 12m³ para o acúmulo de entulho, e mais ao fundo dois PEVs. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

Assim sendo, os cidadãos que mais utilizariam uma legislação democrática sobre a gestão e reciclagem do RCD fica desatendida, sendo a saída mais econômica e simplificada a disposição irregular de seus entulhos gerados em áreas públicas, longe do controle da legislação. Por outro lado, as camadas mais ricas da cidade gozam do seu privilégio monetário e abusam do sistema particular de caçambas, tornando-se muito simples e fácil reformar seu apartamento, uma vez que é mais simples de se livrar do seu lixo gerado.

De acordo com dados da PGIRS-SP, em 2012, das 532 mil toneladas de RCD regidas pelo poder público (em torno de 10% da geração total estimada da cidade), ¾ foram removidas de 4.500 pontos viciados, que impactam negativamente a cidade, e ¼ foi removido dos 52 Ecopontos existentes. Os pontos viciados (calçadas, praças, entradas de lotes não utilizados, várzeas de córregos) se formam pelo hábito recorrente de descarte irregular do RCD por parte de moradores, empresas e até por pequenos transportadores de entulho, o que demanda um processo contínuo de limpeza corretiva por parte do governo municipal. Uma vez recolhidos os entulhos, estes pontos recebem em pouco tempo outra carga; diante da fiscalização e ações da prefeitura, as descargas irregulares se estabelecem em outros pontos públicos da cidade, que se transformam em ambientes de criação de vetores de doenças e risco de acidentes, além de degradar a paisagem urbana.

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Mapeamento produzido para compreender qual é a cobertura espacial que a rede de Ecopontos tem na cidade de São Paulo, bem como a distância para os pontos finais de rejeitos. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

No mais, é válido ressaltar que os Ecopontos não são a saída mais sustentável para a problemática da geração de resíduos nos meios urbanos, uma vez que os resíduos são de lá destinados para um aterro inerte, ao invés de serem reciclados e reapropriados ao ciclo produtivo do consumo humano. Todavia, segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) a disposição final ambientalmente adequada é a distribuição ordenada de rejeitos em aterros, observando normas operacionais específicas de modo a evitar danos ou risco à saúde pública e à segurança, além de minimizar os impactos ambientais diversos.

Os registros da Amlurb (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana) informam que, na média de 2012, o recebimento de RCD nos três aterros sanitários com os quais o Estado mantém contrato (U.V.R. Grajaú, Aterro Riuma e Aterro Revita Itaquareia) foi de 4,3 mil toneladas diárias. Como os resíduos gerados em São Paulo são destinados tanto às áreas instaladas em seu território, como às áreas nos municípios vizinhos – uma vez que São Paulo não cabe em seus limites municipais –, foi considerado para o PGIRS do município a estimativa de geração de 18,5 mil toneladas diárias de RCD na cidade.

No mais, o PGIRS-SP elenca as principais carências e deficiências atuais da gestão de resíduos na cidade de São Paulo, que vão muito além da insuficiência da rede de Ecopontos, que não alcança a capilaridade desejável. A raiz da maioria das questões ainda enfrentadas pelo poder público é a falta de políticas educacionais de conscientização da população civil em relação à importância da reciclagem e a correta disposição de seus resíduos, em especial os RCD. Com ações mais próximas da população e não só no campo dos planos de metas e leis, acredita-se que as políticas públicas poderiam se apresentar mais tangíveis à vida comum do cidadão, como a segregação de resíduos na sua origem e a utilização dos Ecopontos. A adoção fácil dessas iniciativas impactaria em uma maior consciência ambiental do cidadão e de recursos, uma vez que o desperdício seria brutalmente diminuído, e a reciclagem dos resíduos já triados em sua origem se torna muito mais fácil e menos onerosa. 

Ao final do texto, a PGIRS-SP aponta as iniciativas relevantes já adotadas pela PMSP que são dignas de menção, e sobretudo dá a devida importância a ferramentas já operantes. Dentre elas, é importante mencionar a importância dada aos Ecopontos, que cada vez mais se apresentam como um equipamento indispensável para a vida urbana. Ainda, mesmo que já exista um decreto municipal determinando a utilização de agregados reciclados em obras e serviços públicos, o reemprego do RCD se dá somente como agregado para nivelamento de vias e camada de contrapiso para asfaltamento, ignorando a ampla potencialidade do RCD como agregado em novas misturas de concreto e argamassa armada.

Ainda, a prefeitura reconhece o valor da criação de canteiros ajardinados nos espaços públicos em que antes funcionavam pontos viciados de despejo. A transformação da ação estatal em prática recreativa e educativa se mostra uma ferramenta muito frutífera de reaproximação da população local com o direito à cidade e a sensação de pertencimento ao território urbano. Uma vez que você mesmo plantou begônias no canteiro onde antes era um ponto de despejo de entulho, você criará um laço com o espaço, zelando pelo seu mantimento e bom funcionamento. Para além de reconexão com as áreas públicas de lazer e o território urbano, a ação funciona como aula prática de educação ambiental, fomentando práticas de jardinagem urbana e controle de produção de resíduos.

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Antigo ponto de descarte revitalizado pela PMSP, ao lado de alça de acesso ao elevado João Goulart. A intervenção do estado vem por meio de limpeza, pintura de muros e construção de jardineiras feitas de materiais reciclados. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

Uma aproximação muito válida da PGIRS que deve ser ressaltada é a da importância dada para a logística do sistema de reciclagem de RCD. No final das contas, é ele, o transporte, que faz com que a balança comercial não seja rentável para o emprego de entulho reciclado, mas sim para a compra de novos agregados extraídos da natureza. Além dos maiores gastos, a logística do transporte do RCD reciclado pela cidade gera mais poluentes soltos em nossa atmosfera, ao emitir dezenas de toneladas de CO2 na combustão que ocorre no motor dos caminhões que o transportam. E se não bastasse, junto ao alto preço do transporte a tarifação do produto reciclado ainda o torna menos atrativo para a compra, sendo um verdadeiro desfavor para a disseminação de agregados reciclados no mercado da construção civil.

Um (novo) fim para o entulho

Agora, imagine se todo este entulho não tivesse que “sair” de algum lugar e nem “ir” para lugar nenhum. O que está em jogo, pautado pelas políticas municipais de gestão de resíduos, não é o fim do entulho, mas na verdade um recomeço. A cidade de São Paulo é o exemplo clássico de espaço demolido e reconstruído, todavia sem manter qualquer memória do que ali já existiu. O raciocínio desenvolvido pelo sistema econômico é o de que o tempo é a variável que torna ou não um empreendimento rentável. É muito mais rentável destruir um quarteirão todo com retroescavadeira em dois dias e enviar todo esse RCD para um aterro do que uma mão de obra e maquinário que desconstrua estas construções com inteligência e recicle seus materiais.

A questão é, neste mesmo raciocínio, paga-se para criar agregados a partir da demolição, paga-se também para descartá-los em um local adequado (ou paga-se ambientalmente com o descarte irregular) e então paga-se mais uma vez para trazer de alguma pedreira sacos de brita em tamanhos específicos para o emprego na nova construção. Afinal de contas, ao falar de RCD neste artigo, estamos tratando de resíduos cerâmicos e de concreto, grosso modo: pedras. Porque jogamos pedras fora, pagamos por isso, e depois compramos mais pedras numa loja para construir novamente?

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Entulho cerâmico coletado diretamente de caçamba e após a moagem. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagens cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

Em muitas partes do mundo a reciclagem de agregados gerados a partir da demolição é algo comum. No Brasil, mesmo que comum no âmbito da pavimentação de vias, ignora-se um enorme potencial estético desta tecnologia pouco difundida. E este potencial já foi apresentado ao mundo: em 2019 o Archdaily postou, em parceria com a revista Metropolis, um artigo sobre uma jovem arquiteta francesa chamada Anna Saint Pierre. A arquiteta desenvolveu em Paris um projeto denominado de Granito, que se resume em reapropriar os resíduos de prédios históricos da cidade em placas de revestimento com acabamento próximo ao das pedras calcárias de granito, reutilizando o resíduo como potencial estético. Para uma perspectiva mais próxima da América Latina, desde a década de 90 o escritório paraguaio Gabinete de Arquitetura, de Solano Benitez e Glória Cabral emprega restos de obras no próprio edifício final como acabamento, acentuando o estilo de projetar dos arquitetos.

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Abóbada de cobertura feita com cacos de tijolos quebrados no canteiro. Centro de reabilitação infantil da Teletón, Paraguai, Gabinete de Arquitectura. Imagem cortesia de Gabiente de Arquitectura
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Projeto Granito, de Anne Saint Pierre. Imagem © Anna Saint Pierre/Rimasùu

Grosso modo, um novo “fim” para o entulho nada mais é do que um recomeço. Um recomeço no raciocínio vigente de descartar tudo que é ultrapassado e importar para o terreno somente novos produtos, tecnologias e acabamentos, para “comprovar” que é uma nova construção tecnológica e interessantes. Já é sabido e certificado que RCD triturado pode ser empregado como agregado em misturas de concreto, atingindo resistências até estruturais para uma nova edificação. Não é necessário ir tão longe: no lugar de vigas, portais ou pilares, porque o cidadão não se atenta a escalas mais humanas e realidades mais terrestres, como mobiliários? E ainda, porque se contentar sabendo que o RCD está reutilizado dentro da mistura, porém não poder vê-lo? Por que não transformar o causador do problema do abandono e deterioração de muitas áreas públicas de São Paulo pelo descarte irregular de entulho, em sua própria solução?

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Acabamento de peça de concreto com agregado reciclado desenvolvida em laboratório. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro
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O problema como solução: as peças desenvolvidas com agregado reciclado buscam, através de sua modularidade, abarcar usos diversos. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

Por fim, as futuras estratégias de melhorias da gestão dos RCD no município de São Paulo têm um forte apelo educacional. Muito além de desenvolver ações de informação e educação ambiental, o Estado aponta, através da PGIRS-SP, o desejo de promover - com departamento acadêmicos, instituições de pesquisas tecnológicas, associações empresariais e de classe, organizações da sociedade civil e outras -, programas em parceria que promovam soluções com agregados reciclado, como por exemplo, para artefatos e mobiliário urbano. Isto já foi testado e é possível.  Ainda, a PGIRS da cidade de São Paulo aponta como meta também a elaboração de um Guia de Manejo Diferenciado de RCD, visando a recuperação e valorização máxima dos resíduos. 

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Capa do manual desenvolvido em pesquisa na Escola da Cidade, acessível pelo QRCode. Elaborado por Guilherme Trevizani Ribeiro. Imagem cortesia Guilherme Trevizani Ribeiro

Óbvio que a ampla difusão de um material com potencial para ser industrializado só vem sustentada por longos testes técnicos e estudos, contudo este artigo procura trabalhar na contramão do sistema vigente. E se pudéssemos mudar de baixo para cima? Das periferias para o centro? Da autoconstrução para a academia? O ponto de partida é claro: educação. E a forma mais fácil de se educar, relembrando as estratégias de Paulo Freire, é por meio da associação. Imagina-se que será muito mais simples educar uma população a não descartar o entulho numa praça abandonada próximo a sua casa se mostrar-lhes o que esse entulho pode se tornar. É necessário devolver às camadas populares o direito de agir, poética e criativamente, sobre o que antes era resíduo, mas pode se tornar recurso.

Referências bibliográficas
SÃO PAULO. “Plano de gestão integrada de resíduos sólidos da cidade de São Paulo”. Prefeitura de São Paulo. 2014.
RIBEIRO, Guilherme Trevizani. “Um manual para o reuso dos resíduos da construção civil”. Pesquisa experimental, Escola da Cidade - São Paulo, 2019.

O ensaio aqui exposto é fruto do trabalho de conclusão de curso “O início, fim e o meio” do curso de arquitetura e urbanismo na Associação Escola da Cidade com orientação do professor Valdemir Lúcio Rosa e da pesquisa experimental desenvolvida em mesma faculdade sob a mesma orientação intitulada “Um manual para o reuso dos resíduos da construção civil”.

 

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Sobre este autor
Cita: Guilherme Trevizani Ribeiro. "Um (novo) fim para o entulho na cidade de São Paulo" 04 Out 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/968292/um-novo-fim-para-o-entulho-na-cidade-de-sao-paulo> ISSN 0719-8906

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