Alienação e espaço narrativo na série “Ruptura” da Apple TV+

Uma das produções televisivas mais bem avaliadas dos últimos tempos, “Severance” (“Ruptura”, no Brasil), série sci-fi da Apple TV+ lançada em 2022, estabelece instigante premissa: funcionários da misteriosa Lumon Industries se voluntariam a participar de um experimento que criará em seus cérebros a separação definitiva entre a vida pessoal e profissional, de modo que as memórias do trabalho e da rotina privada não mais se cruzam. O procedimento gera, dessa forma, um alter ego intermitente, alheio mutuamente ao ego e hiperfocado na sua respectiva dimensão. A hábil direção de Ben Stiller e Aoife McArdle, somada às atuações afinadas do elenco, faz jus ao ótimo plot de Dan Erickson, mas ponhamos em destaque aqui como a ambiência principal do show — a matriz da corporação, situada na fictícia cidade de Kier — acentua a angústia passada pela exígua equipe de empregados através da arquitetura que os abriga e aliena durante o expediente diário.

Como o tópico não concerne ao enredo, esse artigo está livre de spoilers.

A empresa de tecnologia da trama se materializa entre cenários de estúdio, montados pela equipe de Design de Produção capitaneada por Jeremy Hindle, e tomadas interiores e exteriores do estonteante Bell Works, em Holmdel, New Jersey. Desenhada por Eero Saarinen no fim da década de 1950, o complexo modernista de 2 milhões de metros quadrados já comportou gigantes americanas de telefonia ao longo da sua história e hoje sedia startups da região em novas e antigas salas, considerando as últimas adições do projeto de renovação com assinatura da Alexander Gorlin Architects, em 2013. Contudo, a confluência da cinematografia, sob as lentes dessaturadas de Jessica Lee Gagné, com os efeitos visuais orientados por Hindle, enevoa o estado anímico do lugar, dando ao envoltório de concreto, vidro e metal um aspecto gélido, opressivo e insuperável. O jogo de ângulos instaura, assim, o tom de um receptáculo que faz o ocupante se sentir impotente, seja pelos corredores labirínticos como pela estrutura massiva ao seu redor. As sequências da peça audiovisual distópica não fazem questão, porém, que se compreenda o espaço em termos lógicos. A estranheza é uma das características da qual "Severance" lança mão já nos primeiros minutos, e uma visita guiada no terceiro episódio só amplifica tal sensação.

Alienação e espaço narrativo na série “Ruptura” da Apple TV+ - Imagem 5 de 5
Saguão do elevador. Fonte: Apple TV+.

Os enquadramentos abertos dos headquarters da companhia (deixemos o objeto real de Saarinen, para fins de análise, apenas como o intérprete passivo do edifício-personagem) conferem uma escala quase entômica à figura humana diante do que mais está disposto em tela. Em boa parte do tempo colocado no eixo central da imagem em cenas amplas, o protagonista do roteiro, Mark Scout, se encaminha com letargia até o grande prisma para ser engolido e processado pelo labor diurno como um elemento, ainda que necessário, significativamente menor comparado à imensidão dos acres para além do que os olhos alcançam. No núcleo do átrio onde fica a recepção, o pé-direito múltiplo encimado pelas clarabóias a iluminar naturalmente o complexo, aliado com a simetria da posição da câmera, afasta o sujeito retratado das bordas laterais e verticais para isolá-lo em suas próprias agruras suprimidas dia após dia, toda vez em que o turno reinicia.

O vestiário e o elevador do prédio cumprem a função de meio transitório entre as versões dos encarregados submetidos ao rompimento neural, sendo o segundo o grande ignitor da alteração de chave na mente bipartite dos mesmos. Após os seus pertences serem guardados em um dos armários e a cobaia passar pela porta automática, o "outie" – o “eu” da vida fora da firma – fica gradualmente inerte para que o "innie", aquele responsável unicamente pelo ofício, emerja e tome o comando pleno das ações psicomotoras pelas próximas oito horas. A cabine segue o padrão contemporâneo, com vedação em painéis de aço inoxidável, não fosse a largura e profundidade mais estreitas, o que sugere uma capacidade individual. O processo tem a duração exata do tempo de subida e estabilização do elevador no pavimento. A dinâmica da alternância de personalidades dá a entender, inclusive, que a desativação e ativação só funcionam em uma pessoa por vez, o que justifica a entrada e saída escalonada da pequena equipe do departamento de refinamento de microdados liderada por Mark, bem como o design econômico da circulação mecânica.

Alienação e espaço narrativo na série “Ruptura” da Apple TV+ - Imagem 2 de 5
Corredor de um dos cenários criados. Fonte: Apple TV+ via Metropolis Magazine.

O “andar da ruptura”, assim nomeado no argumento, é uma espécie de radicalização do piso corporativo default da segunda metade do século XX. Tudo ali é ou referência o típico da arquitetura organizacional do ocidente dessa época em diante; desde o forro baixo em placas de gesso até as divisórias modulares opacas de cor clara e uniforme. A luz, agora, é somente artificial, com temperatura cromática indo do neutro ao frio. A metragem do escritório com teto de caixotões é exagerada para as quatro estações de trabalho que ficam num quadrante qualquer, ilhadas de fronteiras físicas com o externo. A incongruência da relação espaço e ocupação é ainda mais bizarra ao reparar o estacionamento, enorme e sempre repleto, o que faz indagar onde trabalham todos os outros colaboradores da unidade. A caricatura do ambiente empresarial e sua tediosidade massacrante, aliás, guarda semelhanças com o longa “Vivarium” (2019) de Lorcan Finnegan, embora este abrace um surrealismo mais escancarado e em um contexto doméstico. Cada um à sua maneira leva ao limite caracterizações tipológicas comuns para extrair delas outros significados, como num fenômeno de saciedade semântica, em que a repetição exaustiva de determinada palavra provoca a perda temporária do seu sentido original e a formação de um novo, dissociado.

A esterilidade sufocante dos cenários indoor, segundo o que afirma Hindle em entrevista ao A.V. Club, é fortemente inspirada nas produções de Stanley Kubrick, o que é perceptível ao traçar paralelos com a fotografia de Geoffrey Unsworth em “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968) nos momentos que se passam nas naves futuristas. Predominantemente branca, tais como o ofuscante lobby da Space Station V do clássico de Kubrick, as dependências oclusas da Lumon são um purgatório asséptico para os variantes cujas “vidas” — se é que é possível atribuir essa condição — se resumem à tarefa incompreensível a qual foram destinados cirurgicamente a cumprir. Para reforçar a limpidez das superfícies, é usado o contraste de gradações escuras de azul, verde e ocre, que serve, também, ao propósito simultâneo de transmitir a seriedade da instituição e do seu alto escalão.

Alienação e espaço narrativo na série “Ruptura” da Apple TV+ - Imagem 1 de 5
Imagem aérea da sede da Lumon Industries. Não à toa o sítio oblongo lembra um cérebro partdo ao meio. Fonte: Captura de tela.

Em "Severance", os méritos técnicos e criativos criam uma (ou mais de uma) arquitetura insólita, possível graças, também, à edição, que perpassa com brilhantismo pelas locações e define um lugar em que se crê, dentro das regras daquele universo. É, a todo instante, rígida, de diferentes formas. Em todas elas, os membros subalternos que aceitaram renunciar a um terço dos dias, absortos em seus afazeres inescapáveis, atendem a algum interesse desconhecido enquanto agem como ratos de laboratório até o horário de serem regurgitados e devolvidos à vida privada, quando reassumem sua noção particular sobre os sentimentos, dores e sonhos que guardaram no armário para, então, repetir o ciclo na próxima manhã.

Galeria de Imagens

Ver tudoMostrar menos
Sobre este autor
Cita: João Santos. "Alienação e espaço narrativo na série “Ruptura” da Apple TV+" 12 Mai 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/981611/alienacao-e-espaco-narrativo-na-serie-ruptura-da-apple-tv-plus> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.