Sem conceito definido, o uso do termo cidades inteligentes é utilizado com mais frequência a cada ano que passa. Muitos teóricos apontam que a dificuldade conceitual está atrelada à rápida adesão e expansão do seu uso por grandes corporações e instituições, tonando-se, assim, um termo da moda. Apesar do discurso “inovador”, a escolha do modelo para implementação de uma cidade inteligente pode causar impactos segregacionistas e privilegiar determinado grupo se não desenvolvida considerando as particularidades e envolvendo as lideranças locais (MENDES, 2020). Neste ensaio será adotado um entendimento de que a inovação e inteligência não estão necessariamente ligadas ao uso de tecnologias digitais ou recursos de alto custo, mas sim ao novo olhar para os problemas urbanos e o desenvolvimento de soluções não tradicionais nas tomadas de decisão e execução.
A ideia de moradia como direito à vida adequada surgiu primeiramente na Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948 e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em 1946. As medidas para sua concretização seguem construídas até os dias atuais, como descrita na Nova Agenda Urbana (NAU ). Dentre as metas que norteiam a NAU (2016) está a garantia de acesso por todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, assegurando os serviços básicos, além da urbanização das favelas.
Somado aos objetivos determinados pelas Nações Unidas, as cidades inteligentes surgem com base na discussão renovada sobre o planejamento urbano pautado no direito à cidade, a partir da lógica democrática urbana na intenção de aniquilar processos discriminatórios no território. Contudo, a maioria dos planos e projetos dão maior enfoque nos investimentos tecnológicos, sem abordar outros atributos essenciais para resultados de impacto social, ambiental e econômico. Por exemplo, jardins de chuva e demais alternativas de infraestrutura verde podem ser consideradas uma solução inteligente para inúmeros casos de alagamentos de ruas, melhoria na qualidade do ar e bem-estar da população.
Na Europa, essa efetivação vem acontecendo de forma contínua ao planejamento urbano que já vinha sendo executado (MOROZOV; BRIA, 2019). Entretanto, em territórios como na América Latina, principalmente, os desafios históricos de acesso aos direitos básicos se tornam um maior desafio para elaboração de projetos, pois sem o essencial (moradia, saneamento básico, educação e saúde) não há como existir uma cidade inteligente (AQUILINO, 2017).
Ainda que tenhamos tantas normativas de estabelecimento de direitos e instrumentos que visam suas concretizações, o Brasil ainda possui alto déficit habitacional e inadequação de domicílios, segundo a Fundação João Pinheiro (2018). Em 2015, o Estado de São Paulo superava a necessidade de mais de um milhão de moradias. O déficit habitacional se constitui pela identificação do número de domicílios improvisados, rústicos, com coabitação familiar, adensamento excessivo em um cômodo ou ônus excessivo com aluguel, sendo este o fator mais expressivo na Região Metropolitana de São Paulo.
No processo de discussão para atender esse déficit e inadequações, um dos discursos mais recorrentes é a falta de espaço que as regiões metropolitanas encaram, principalmente de terrenos. Entretanto, a Fundação João Pinheiro (2018) identificou que em 2015 havia 595.961 domicílios vagos adequados para moradia, na Região Metropolitana. Esse número refere-se a 93% do déficit habitacional existente da época, sem mencionar que supera o índice de domicílios inadequados.
Engana-se quem acredita que este problema foi sanado. Em 2018 o déficit da Região Metropolitana de São Paulo chegou a 1,024 milhão de unidades, segundo a Fundação Getúlio Vargas, possuindo um crescimento médio de 10% ao ano desde 2011. A instituição afirmou que o cenário se agravou pela redução do crédito para financiamento de imóveis, o desemprego em alta e a queda na renda familiar. A tradução deste cenário é o crescimento e alto número de aglomerados subnormais, cortiços e ocupação de terrenos e edifícios sem função social.
Em 2017, a cidade de São Paulo possuía 206 ocupações, mais de 45 mil famílias, em terrenos e edifícios ilegais, ou seja, que descumpriam sua função social. Na região central, na mesma época, foram identificados no cadastro digital 94 prédios particulares, vazios e fechados há mais de um ano, no mínimo. Dentre essas ocupações, sua grande maioria é realizada por movimentos organizados de luta por moradia que buscam com isso pressionar o governo para desenvolver e efetivar políticas públicas habitacionais, denunciar a especulação imobiliária e fornecer moradia digna.
Simultaneamente, novos estabelecimentos de serviços começaram a se instalar na região central de São Paulo apresentando uma proposta de renovação e inovação, muito perceptível no setor gastronômico, mas principalmente nos empreendimentos imobiliários. Os lançamentos do estilo de studios e coliving atraíram novos moradores para os bairros centrais, que não necessariamente já moravam ou que dependem do centro para trabalho ou acesso à serviços, mas que desejam usufruir das comodidades e fazer parte da nova roupagem da área. Entre 2012 e 2017 houve um crescimento de quase 200% de lançamentos imobiliários na região central, enquanto a metragem média das unidades, no mesmo período, diminuiu de 62,8m² para 41,6m².
A moradia compartilhada e colaborativa, também chamada de coliving, é uma tendência que visa comunidade em harmonia e equilíbrio com a individualidade, aproximação de pessoas e troca de experiências, projeção compartilhada de moradias, economia de recursos naturais e divisão de decisões e tarefas, e muitas vezes está diretamente ligada à soluções tecnológicas para atividades diárias. Ou seja, são edifícios residenciais ou mistos que oferecem espaços comuns, antes exclusivamente privados (lavanderia, cozinha, sala de estar, sala de jantar), além de comodidades extras, academia, salão de jogos, salas de trabalho, piscina etc. Para diminuir os custos de produção, apesar dos investimentos nas áreas comuns, os apartamentos projetados são ofertados com metragens menores que as usuais – o conhecido kitnet - estratégia também utilizada para incentivar a interação e apropriação dos espaços semi-privados.
A praticidade extrapola a materialidade da edificação, logo, grande parte dos empreendimentos está localizada em áreas centrais, onde há uma maior oferta de serviços e infraestrutura, incentivando a mobilidade ativa ou uso de transporte público e consumo local, práticas fundamentais para cidades inteligentes. A combinação entre localização privilegiada, oferta de espaços multifuncionais, facilidades contratuais, decoração moderna, uso integrado de tecnologia e constante interação com pessoas diversas permitem que o produto imobiliário seja lançado no mercado com alto valor agregado, direcionado para classes média/alta. Neste cenário cresce o número de empreendimentos coliving, principalmente na cidade de São Paulo, onde se há maior flexibilização na legislação (instrumentos de incentivo) para construção de habitações com menor área e público consumidor de maior poder aquisitivo (NUNES; VIEIRA, 2019).
Por outro lado, o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), desde sua origem, desenvolve o controle urbano através do mapeamento de edifícios públicos e privados na região central que se encontram ilegais, sem cumprir sua função social. As ocupações destes imóveis são alternativas dignas, de qualidade espacial e acessível para que os sem-teto não se encontrem em situações ainda mais vulneráveis e/ou em situação de rua. A inovação reconhecida pelos novos lançamentos imobiliários não se distancia da realidade encontrada na Ocupação 9 de Julho, implantada como ferramenta de resistência e reivindicação de direitos.
O compartilhamento faz parte da gestão do MSTC desde seu primórdio, onde a luta por moradia digna não está ligada obrigatoriamente à propriedade privada, mas à conquista do acesso ao habitar e à disseminação da compreensão do ser coletivo urbano. Cada família possui seu apartamento e usufrui deste pelo tempo que acreditar necessário, contanto que exerça seus deveres dentro do Movimento. Essa condição também se materializa nos espaços comuns dentro da 9 de Julho, onde nos primeiros pavimentos e nas varandas dos pavimentos intermediários são distribuídos espaços comuns, como cozinha, refeitório, horta, salas multiuso e áreas de convivência no geral. No primeiro andar, acessado pela Av. 9 de Julho, há uma galeria de arte aberta ao público com exposições de cunho político a fim de apresentar a luta por moradia e direito à cidade pelo viés artístico. Estes são de acesso livre à sociedade, são realizados eventos culturais, festas, atividades lúdicas e até ações de promoção de saúde.
Internamente, na gestão da Ocupação, a participação dos moradores se dá nas assembleias gerais do MSTC, no processo de construção de projetos de ocupação dos espaços, na administração, manutenção, mutirões de obras (elétrica, hidráulica, civil) e limpeza dos espaços comuns. A gestão compartilhada e colaborativa é essencial na medida que a rotatividade dos cargos propicia ocupação aos desempregados e, principalmente, desenvolve senso de pertencimento, o que corrobora para o cuidado para com as condições dignas do espaço físico e manter os moradores na luta pelos seus direitos. A interação é constante e essencial para a existência da ocupação.
A distribuição dos apartamentos busca ser justa pautada na configuração familiar e nas condições físicas dos seus integrantes. Idosos e pessoas com necessidades especiais residem nos primeiros pavimentos e famílias numerosas são alocadas em espaços maiores. A equidade sexual e religiosa é um dos princípios do movimento, sendo assim, todas as famílias são tratadas igualmente, independente de sua composição, e incentivadas a terem mulheres como chefes. Dessa forma, com intenção de proteger crianças e mulheres, principalmente, da violência doméstica e dependência do cônjuge masculino, proporcionando maior autonomia e representatividade, a liderança interna possui rotatividade entre mulheres de cada andar, onde terão a responsabilidade de mediar conflitos, organizar atividades de limpeza, auxiliar em momentos de crise e comunicar informativos.
Atividades culturais e educativas são promovidas nos espaços comuns da Ocupação, atraindo centenas de pessoas em dias festivos e datas comemorativas. Durante os eventos os espaços utilizados tem a função de espaço público, não há censura para transitar, há diversidade de pessoas e de usos/atividades. Além de tudo, está situada no centro de São Paulo, próximo ao transporte público e serviços diversos. O caráter de espaço público-privado é tênue, a fluidez entre os espaços e a receptividade favorece para a identificação socioespacial.
O reconhecimento e identificação do espaço, primordial para o entendimento do direito à cidade e espaço público, também é realizado pelo movimento a partir de parcerias culturais e ações pedagógicas. A parceria com a Escola da Cidade, através da criação do Estúdio 9 de Julho, e o O Grupo Inteiro possibilitou a participação do movimento na Bienal de Arquitetura de Chicago, em 2019, resultando na publicação “Moradia como prática de cidadania”. A FIO Assessoria Técnica Popular, que se firmou dentro do movimento, colabora com os trabalhos de melhorias edilícias e construção de ferramentas para a consolidação da moradia por direito.
Reflexões finais
A flexibilização da legislação para o poder privado - variação de metragem quadrada das unidades, espaços privados mínimos, depósito de garagem, além das outorgas onerosas e a construção de um zoneamento urbano maleável atrai empreiteiras e construtoras devido menor custo de implementação e maior retorno de capital. As estratégias de mercado para venda dos novos empreendimentos no conceito coliving se alinham com a novas políticas públicas construídas para “renovação” e “reinvenção” do centro da cidade de São Paulo, atraindo público jovem, de configuração familiar reduzida e com maior poder aquisitivo. Por outro lado, essa necessidade já é sentida pelas classes mais baixas há muitos anos. A luta pela moradia no centro de São Paulo tem décadas de atuação, mas pouco foi visto de mudanças. Para mudar esse cenário, um dos passos é preciso que a população “marginalizada” seja considerada ator efetivo no processo de produção da cidade.
A Ocupação 9 de Julho e o MSTC, considerando suas escalas de atuação, desempenham os princípios e atuam segundo as ações de uma cidade inteligente, com qualidade espacial, densidade apropriada, usos urbanos mistos, multifuncionais, públicos e privados, e principalmente pela resiliência urbana. A conectividade tecnológica ainda é primitiva, se considerada as tecnologias de reconhecimento e automatização do cotidiano utilizadas nos empreendimentos coliving, mas isso pode ser explicado pelo capital investido no mesmo e pela segurança fundiária que esta possui, ou seja, a Ocupação utiliza de estratégias de fortalecimento e empoderamento social, qualidade urbana e garantia de direitos básicos.
Como expressado no início deste ensaio, a cidade inteligente vem sendo abordada como um conjunto de estratégias de reorganização e planejamento urbano inovador para solucionar problemas recorrentes, porém densificando problemas como gentrificação e segregação urbana. A Ocupação 9 de Julho é resistência e resiliência urbana materializadas. A busca pela garantia dos direitos através da arte, da cultura, o compartilhamento e interação social de diversas classes, raças, etnias, idades e funções profissionais ressignifica o edifício abandonado por quatro décadas, sem função social, e todo seu entorno. Apresenta, então, a luta por moradia como uma organização legítima e legal, apresentada como uma das poucas soluções para os que dependem da vontade política para ter uma vida digna.
Referências bibliográficas
AQUILINO, Andrea. Um modelo para análise quantitativa das Cidades Inteligentes na América Latina. Dissertação (Mestrado em Engenharia Urbana) – Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 111 p., 2017.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil. Diretoria de Estatísticas e Informações, Belo Horizonte: FJP, 2018.
GUIMARÃES, P; ARAÚJO, D. O direito à cidade no contexto das smarts cities: o uso das tic’s na promoção do planejamento inclusivo no Brasil. Revista de direito à cidade, v. 10, n.3, 2018.
MOROZOV, E.; BRIA, F. A cidade inteligente – Tecnologias urbanas e democracia. São Paulo: Editora Ubu, 2019.
NUNES, D; VIEIRA, L. Modos de habitar a cidade contemporânea: Moradia compartilhada e colaborativa. In: XVII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 2019, Natal. Anais da Enanpur [...]. Natal: [s.n.], 2019. Disponível em: <http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf.php?reqid=571>.
MSCT + Escola da Cidade + O grupo Inteiro (Org.). Moradia como prática de cidadania. São Paulo: Editora Escola da Cidade, 2019.
Este ensaio é uma adaptação do trabalho de conclusão do curso apresentado em abril de 2020 junto ao curso Habitação e Cidade - Pós-Graduação Lato Sensu da Escola da Cidade.