As mãos seguram o peso do corpo inteiro, sentindo em sua membrana fina a textura áspera da argamassa não rebocada. Mesmo com todo corpo estirado contra o muro ainda assim não era possível ver o que havia por trás dele. O suor, num misto de adrenalina e calor, escorria por entre as têmporas indicando a movimentação para um esforço final, um derradeiro impulso antes da queda iminente que, por alguns segundos, permitiu ultrapassar a última fiada. Abriu-se, então, o campo de visão para um mundo fragmentado, desconexo e estranhamente livre. Uma potência urbana que se deixava estrangular pelo alento da vegetação tropical enquanto era consumida pelo abandono em meio a cidade ativa e dinâmica.
Do outro lado desse muro instaura-se a peculiar atmosfera da ruína contemporânea, um espaço em constante processo que celebra a efemeridade e declara a estranha beleza do perecível. Como resultado da acumulação de pisos, paredes, tempos e histórias as edificações abandonadas apresentam uma nova forma que tem sentido e inteligibilidade próprios, estimulando diferentes sensações e subvertendo convenções estéticas e, até mesmo, funcionais. Suas estruturas são marcadas pelo vazio de um tempo que ali existiu onde a natureza implacável retoma seu lugar em meio aos entulhos que um dia foram chamados de lar.
O esforço em espiar por entre as frestas, de pular os muros, assim como as séries fotográficas e pinturas que retratam os espaços abandonados, os filmes de ficção que têm como cenário lugares esquecidos e destruídos, ou a própria curiosidade mórbida que sentimos ao ver edificações abandonadas e destruídas por causa de catástrofes e guerras, são alguns sinais que indicam o deslumbre que tais estruturas nos trazem.
No limite entre o estranho e o familiar, buscamos nos abandonos vestígios que rementem a antigos usos e apropriações, instigando-nos a exercitar a imaginação e reconstruir possíveis cenas do passado. Em um conjunto arquitetônico esfacelado pelo tempo, como restos fragmentados de um todo, seus pedaços de paredes, de janelas, de pisos indicam algo estranho, porém familiar, similar ao conceito abordado pelo historiador e crítico de arquitetura Anthony Vidler, que entende o “estranhamente familiar” como uma metáfora do corpo humano em fragmentos, aflorando o lado horripilante do sublime, o medo de ser privado do rigor físico.
A estética do abandono, ao questionar a integridade da matéria traz à tona a nossa própria fragilidade e efemeridade, lembrando o término certeiro de tudo, fazendo com que o homem, ao mesmo tempo, se espelhe e se estranhe no próprio abandono. O resto abandonado, como espetáculo da finitude em meio ao cotidiano urbano pode carregar, portanto, o próprio peso da existência, a ênfase da degradação no mundo real. Longe da concepção de beleza e eternidade platônicas, os entulhos incorporam o disforme, nos trazendo de volta para o abismo existencial do mundo em ruínas.
Segundo Peter Eisenman, na deformidade do abandono são explorados “simultaneamente o belo no feio e o feio no belo”, assemelhando-se a imagem do grotesco – uma complexa forma de beleza que inclui características antes ditas como feias - a “ideia do disforme e do supostamente não natural”. O grotesco que, da antiguidade até hoje, sempre esteve presente na cultura, mas mantido numa espécie de subclasse da arte por estar em desarmonia com essa “metafísica do belo”, construída até a Idade média e difundida como estética artística a partir do renascimento. O “belo artístico” foi associado à proporção, harmonia, simetria, forma, perfeição, ao bem e ao verdadeiro. Os espaços abandonados, por sua vez, podem ser definidos pela negação de todas essas características, em uma estética de oposição que retrata a decadência, a deformidade, a fragmentação e a imperfeição. Entretanto, mesmo estando à margem dos conceitos de beleza tradicionais, esses espaços nos causam fascínio em uma beleza grotesca que nos convida a enfrentar o mundo real.
Da curiosidade ao medo, do fascínio à repulsa, a desfragmentação arquitetônica evoca um sentido grotesco revelado à subversão das normas, que se caracteriza pelo indeterminado e que põe em questão os quinhentos anos de dependência da arquitetura em relação à norma da beleza como categoria estética dominante.
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