No início desse ano presenciei uma situação instigante. Acompanhei, via um amigo arquiteto, a negociação para a contratação de um projeto arquitetônico de uma residência unifamiliar. A proprietária do terreno, uma professora da rede pública, buscou auxílio profissional para construir sua tão sonhada casa, estimada em mais ou menos 60 metros quadrados. Tratava-se de um terreno desafiador, com recortes específicos e uma topografia muito acentuada que era compensada pela vista da cidade. O orçamento limitado e o histórico da proprietária indicavam que essa seria a versão litorânea da famosa Casa Vila Matilde do Terra e Tuma.
No desenrolar da história, a primeira proposta apresentada pelo meu colega não foi aceita, estava muito além das expectativas de gasto da futura cliente. Entretanto, já era tarde, o arquiteto estava envolvido demais com a história e o desafio que viria com o projeto, por isso, sugeriu que ela fizesse uma contraproposta de acordo com o seu orçamento. A contraproposta foi feita e, com um valor simbólico, decidiram iniciar o projeto. Porém, algo aconteceu entre o aceite verbal e o contrato formal. Após uma conversa com o mestre de obras que seria responsável pela construção, a cliente declinou sua oferta e decidiu seguir a aventura sem a ajuda de um profissional.
As expectativas do colega arquiteto ruíram, assim como, muito provavelmente, a qualidade arquitetônica da casa, e esse desfecho infeliz trouxe à tona uma série de reflexões importantes. Há muito se fala sobre a democratização do acesso ao projeto arquitetônico, um tema que conta com inúmeras iniciativas criadas por arquitetos para que o projeto se torne mais acessível, principalmente, em termos financeiros.
Além de estratégias independentes que oferecem projetos e consultorias gratuitos ou a preço popular, como essa do colega citado anteriormente, outras iniciativas do gênero podem ser elencadas. Uma delas é a Lei da Assistência Técnica em Habitações de Interesse Social (ATHIS) a qual, na prática, é um subsídio governamental para elaboração de projetos, acompanhamento e execução de obras voltado para famílias com renda inferior a três salários mínimos. Seu principio fundamental é a universalização do acesso aos serviços de arquitetura e urbanismo custeando o trabalho técnico e enfrentando o preconceito/desconhecimento da categoria por parte das comunidades.
Em outra linha de atuação, arquitetos bastante reconhecidos também têm contribuído para facilitar o acesso ao projeto arquitetônico por meio de iniciativas como os compartilhamentos open source. Seu expoente, sem dúvidas, foi o arquiteto chileno vencedor do prêmio Pritzker, Alejandro Aravena, que em 2016 forneceu gratuitamente quatro de seus projetos mais famosos, possibilitando o uso e adaptação de forma livre por qualquer interessado. Com essa estratégia, Aravena focou nas iniciativas privadas e governos, afirmando que assim não haveria mais desculpas para que não invistam em bons projetos de moradia popular. Além dele, outras plataformas internacionais disponibilizam projetos gratuitamente como o Paperhouses que oferece projetos livre de arquitetos renomados como Tatiana Bilbao Architects, EMBT e architecturespossibles, ou a Wikihouse que fornece projetos de baixo custo para construção de habitações sustentáveis.
Fundamentais para democratizar o acesso ao projeto arquitetônico, essas iniciativas — com abordagens e níveis de atuação bem distintos — demostram que há um esforço dos profissionais nesse sentido, apesar de ainda ser necessário um longo caminho para que, de fato, consigam contemplar adequadamente toda a população necessitada. No entanto, ao que parece, além das estratégias de compartilhamento do conhecimento técnico que tornam o projeto arquitetônico mais acessível financeiramente, há barreiras estruturais e ideológicas que precisam ser rompidas para que essa democratização, de fato, aconteça.
As vantagens da contratação de um profissional de arquitetura são inúmeras, elencá-las aqui é reafirmar o básico, porém, tais vantagens claramente compreendidas por nós parecem não ser tão evidentes assim para grande parte da população. Essa falta de valorização da arquitetura acontece em diferentes situações e por diversos motivos, algo que não é exclusivo de uma classe social, da escala do projeto ou do valor a ser investido, apesar de ser possível perceber uma maior resistência aos serviços arquitetônicos nas classes menos abastadas devido, principalmente, ao estigma de ser uma atividade de luxo que encarece os gastos na obra.
Ou seja, democratizar o projeto arquitetônico também significa democratizar o acesso à informação a respeito da profissão por meio de iniciativas que apresentem o papel da arquitetura e do urbanismo e sua capacidade de transformar os espaços de forma genuína. No Brasil, o próprio Conselho de Arquitetura e Urbanismo e tem organizado estratégias e eventos com o intuito principal de reforçar a valorização dos serviços dos arquitetos e urbanistas, demonstrando que o custo é baixo e que isso possibilita economia significativa nas reformas e construções. No entanto, essas iniciativas ainda custam a sair do circuito arquitetônico e atingir outros públicos.
Em suma, não basta disponibilizar conhecimento técnico de forma altruísta se não há uma compreensão clara das vantagens de ter o respaldo profissional de um arquiteto. Nesse sentido, talvez tenha faltado ao meu colega melhor argumentação a respeito do tema, um esforço final a fim de mostrar a importância do projeto arquitetônico para que essa democratização fosse efetiva e aceita.
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