Aproximadamente metade das crianças e jovens entre cinco e 14 anos mortas no trânsito no planeta são pedestres e quase um terço são passageiras de veículos motorizados. No Brasil, o trânsito é a principal causa de morte não-natural de crianças nessa faixa etária. De acordo com dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, somente entre janeiro e agosto de 2021, o SUS totalizou mais de seis mil crianças e jovens hospitalizados em estado grave devido a atropelamentos no país.
Reverter esse cenário passa por tornar as nossas ruas mais seguras e confortáveis para a caminhada, pensando principalmente nas necessidades das crianças. A cidade que atende bem a uma criança é uma cidade mais próspera e agradável para toda sua população.
Reconhecendo a vulnerabilidade das crianças e jovens, a Prefeitura do Rio de Janeiro vem aprimorando e expandindo a iniciativa “A Caminho da Escola”, programa que visa sensibilizar a comunidade escolar para o trânsito e transporte seguro. Neste ano, o projeto contou com o apoio do ITDP Brasil e com financiamento da FIA Foundation.
A iniciativa piloto realizada em Realengo, na zona oeste da cidade, identificou que mais de 60% dos alunos fazem o trajeto até a escola a pé e por isso precisam de um ambiente viário mais seguro e menos hostil, pois sofrem com a falta de sinalização viária, a precária manutenção das calçadas, além das velocidades excessivas de veículos e o desrespeito dos motoristas. “São por essas razões que o programa A Caminho da Escola busca incorporar a temática do desenho de ruas e velocidades seguras. É de extrema importância proporcionar às crianças e professores da rede escolar municipal a oportunidade de discutir esses temas.” conta Mauro Ferreira, coordenador de educação para o trânsito da CET-Rio, ao tratar da importância de minimizar a vulnerabilidade das crianças.
A vulnerabilidade das crianças no trânsito
Crianças e jovens são particularmente vulneráveis aos ferimentos decorrentes de sinistros de trânsito, uma vez que características físicas, cognitivas e sociais fazem com que sua segurança demande medidas específicas e muitas vezes mais restritivas do que no caso de adultos. Devido à baixa estatura, as crianças não têm visibilidade adequada dos veículos que circulam no seu entorno, assim como condutores podem ter dificuldade de enxergá-las. Sua percepção visual está em desenvolvimento e em função disso têm dificuldade de julgar a distância de outros objetos, especialmente quando estão em movimento. Além de que também têm dificuldade de discernir de onde vem o som, e, consequentemente, a direção de onde está vindo o veículo.
O corpo ainda em desenvolvimento as torna particularmente vulneráveis a ferimentos graves. Se comparada ao adulto, a cabeça de uma criança é proporcionalmente maior, fazendo com que seu centro de gravidade seja mais alto e aumentando a predisposição a ferimentos. Da mesma forma, seu crânio, ainda em desenvolvimento, é mais suscetível a impactos.
Os impactos dos ferimentos no trânsito vão além da dor e trauma de uma colisão ou atropelamento. Ferimentos graves em crianças com frequência demandam tratamentos longos e recorrentes devido à sua idade e características psicológicas. Somam-se a estes impactos os altos custos de tratamento e aulas perdidas, cujos impactos recaem sobre toda a família.
Perspectivas sobre segurança viária e educação para o trânsito
A abordagem tradicional para a redução de mortes no trânsito coloca a responsabilidade principal dos sinistros no comportamento inadequado de condutores, pedestres e ciclistas. Nesse ponto de vista, os ferimentos e mortes no trânsito são tratados como acidentes causados por erros humanos imprevisíveis e não como uma questão de política pública. É por esta razão que “sinistros de trânsito” é a expressão atualmente utilizada no debate de segurança viária para substituir “acidentes de trânsito”, reconhecendo que as mortes nesse caso no trânsito são evitáveis e portanto, não devem ser definidas como acidentes.
Esse olhar tradicional fez com que, por muitos anos, a prática da segurança viária fosse majoritariamente concentrada em ações educativas que visam reforçar as regras de circulação para motoristas, ciclistas e pedestres. Em geral, chamam a atenção para o uso do cinto de segurança, capacete e cadeirinha para crianças; não dirigir após o consumo de álcool ou para o respeito ao limite de velocidade e às faixas de travessia. Ou seja, são ações relacionadas ao comportamento humano.
Nas últimas décadas, no entanto, uma abordagem conceitual ampliada - a abordagem sistêmica para a redução de mortes no trânsito, ou sistemas seguros, consolidou-se internacionalmente como o novo paradigma de segurança viária e foi adotada pela Década de Ação pela Segurança no Trânsito da Organização Mundial da Saúde. Essa nova abordagem foca na vulnerabilidade do corpo humano e considera os técnicos e gestores dos sistemas de transporte co-responsáveis pela promoção da segurança e prevenção de mortes e ferimentos graves.
Dessa forma, assume-se que o erro humano sempre pode ocorrer, mas que o sistema de transportes deve ser planejado e implementado para evitar que esses erros resultem em ferimentos graves ou mortes. As mortes no trânsito são vistas como evitáveis, causadas por falhas sistêmicas cuja responsabilidade envolve, além do usuário, o poder público e os técnicos responsáveis pelo projeto e pela implantação do sistema de transporte.
Nesse sentido, a própria infraestrutura viária deve estimular o respeito às regras de trânsito, em especial a priorização de pedestres e ciclistas, considerados os usuários mais vulneráveis do trânsito. Por exemplo, um controle efetivo das velocidades veiculares pode ser obtido com a limitação da velocidade de circulação nas regulamentações de trânsito e/ou por meio da aplicação de técnicas de desenho viário que impeçam, dificultem ou desincentivem a circulação em velocidades maiores que a permitida.
Estas intervenções físicas, visando a modificação do comportamento humano, é um dos elementos centrais dos sistemas seguros e são conhecidas como acalmamento ou moderação de tráfego. Faz-se necessário, portanto, que a atuação da educação para o trânsito acompanhe a evolução para a abordagem dos sistemas seguros, expandindo-se para além do foco no comportamento humano e incorporando a importância do desenho da rua e da redução de velocidades.
Como a Prefeitura do Rio de Janeiro está ampliando a abordagem da educação para o trânsito
Desde 2008, a Coordenadoria de Educação para o Trânsito (CEDUT) da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET-Rio) visa conscientizar a população sobre a necessidade de incorporar procedimentos seguros no trânsito por meio do programa “A Caminho da Escola”. Em 2021, a iniciativa teve sua metodologia aperfeiçoada por uma parceria entre ITDP Brasil e CET-Rio, com o objetivo de aprofundar essa atuação, aliando teoria e prática e fazendo com que seu elemento central seja a transformação do espaço viário no entorno das escolas em um local mais seguro por meio de um processo participativo. “Quando a infraestrutura viária é desenhada de acordo com parâmetros que visam proteger a vida dos mais vulneráveis, as ruas se tornam automaticamente mais seguras para todos e todas. As rotas seguras para a escola são um passo importante para tornar nossas cidades mais caminháveis, trazendo benefícios são só para a segurança no trânsito, mas também para o meio ambiente, enfatiza Oscar Edmundo Diaz, representante da FIA Foundation.
O programa A Caminho da Escola 2.0 tem como atividades:
- Orientar os professores das escolas atendidas sobre o tema da mobilidade sustentável para a realização da atividade com os alunos;
- Avaliar o entorno escolar e elaboração do mapa de risco por estudantes e docentes;
- Traduzir o mapa de risco em um projeto e implantar o as intervenções físicas no entorno das unidades de ensino para melhorar as condições de segurança no trânsito, principalmente de pedestres.
O lançamento da nova versão do programa foi marcado por uma iniciativa piloto de reorganização do espaço da rua no entorno de duas escolas municipais no bairro de Realengo.
Considerando o mapa de riscos no entorno escolar desenhado pelos alunos e os dados coletados pelos técnicos, a ação implantou, em dezembro de 2021, medidas e elementos de moderação do tráfego para reduzir os conflitos viários e induzir o comportamento seguro por parte de motoristas, ciclistas e pedestres. A intervenção permitiu à população vivenciar e observar as transformações solicitadas para a rua, demonstrando que é possível promover modificações que induzem os condutores a reduzir a velocidade, aumentam a segurança dos pedestres e proporcionam uma nova experiência no espaço urbano. “Os alunos percebem que tudo que eles relataram está sendo posto em prática, e isso é muito impotante porque eles estão se sentindo úteis. Eles participaram de algo que está tendo um retorno para a realidade deles“, relata a professora Luciana. Desde então, a Prefeitura já expandiu a ação para escolas de outros cinco bairros da cidade.
Essa nova fase do programa fez com que a Prefeitura inserisse entre suas metas o desenvolvimento de 36 projetos de intervenção urbana no entorno de unidades de ensino e a implantação de 18 intervenções desse tipo em 2022, seguindo os conceitos trabalhados, com foco na segurança viária e na melhoria das condições de circulação principalmente de pedestres e ciclistas no entorno das escolas.
A inclusão das crianças no planejamento das ações propostas e a sensibilização destas com relação ao tema da segurança viária faz com que elas se sintam pertencentes à cidade e se tornem multiplicadores de boas práticas para além do ambiente escolar. “Ao tornar o território da cidade uma ferramenta educacional, o programa também multiplica a população atendida. Seu impacto passa a ser não somente na comunidade escolar, mas em toda a população que circula pela região, que passa a ser exposta a medidas de excelência em segurança no trânsito, especialmente o acalmamento de tráfego”, completa a gerente de mobilidade ativa do ITDP Brasil, Danielle Hoppe.