A pergunta-título deste artigo parte da dedução de que, se as cidades — nos moldes modernos — são entes espaciais possuidores de um ponto originário e demarcatório de desenvolvimento, logo, as mesmas também detêm um ponto (ou linha) equivalente de finitude. A questão poderia ser sanada de imediato ao se valer da cartografia. Sob a ótica administrativa e organizacional, mapas permitem, de certo modo, definir a extensão de todo e qualquer aglomerado urbano. Contudo, os limites arbitrados por bases de representação escalar não dão conta de derrogar a reflexão, pois o senso de apreensão da cidade é muito mais complexo. Como elabora Ferrão (2003), numa fala que abarca, para além da geografia e arquitetura, a dimensão sociopolítica da matéria: a cidade é um “objeto de contornos cada vez mais invisíveis.”
Em algumas capitais brasileiras, a exemplo de São Paulo e Recife, o marco zero simboliza fisicamente o ponto inicial de contagem para a ordenação numérica das ruas e quilometragem das vias cujas cabeceiras se localizam em tais municípios. Com a dupla função de orientar a sistematização do ambiente construído e servir como um elemento icônico de imageabilidade, como qualificaria Lynch, o marco zero pode ser lido como o nascedouro oficial dos caminhos de uma cidade, se dele dispuser. Nos dois exemplos supracitados, reforça o signo de centralidade o relevante conjunto arquitetônico que circunda esses totens e dá a eles importância na paisagem.
Cabe ressaltar, porém, que, ao colocar as efígies institucionais como as únicas matrizes de fluxos possíveis em seus respectivos sítios, arrisca-se recair, inevitavelmente, na narrativa de sobrepujação histórica do centro em relação à periferia, como num imutável binômio início-fim, hegemonia essa contestada no discurso introdutório dos painéis da exposição EXPOMUS, de 2004:
[...] Hoje São Paulo tem mais de 10 milhões de habitantes. A cidade é tão grande que, para poder administrá-la, foi preciso criar 31 subprefeituras nas diferentes regiões da cidade. Este é o mapa de São Paulo. Para você, cidadão paulistano, a cidade começa onde você mora. Este é o seu bairro. Você também faz parte dessa história.
(EXPOMUS, 2004b, p. 1 Apud JARDIM, E. A, 2019)
A definição trazida pelo fragmento, quando outorga ao bairro de cada morador a categoria de primeiro quinhão do território (“primeiro” em precedência de lugar, não de tempo), considera a origem das centenas de milhares de vetores que perfazem o meio urbano todos os dias como o referencial particular e soberano. Dessa forma, a cidade possui sempre uma miríade de “começos”, vários deles no extremo oposto daquele que carrega essa nominação.
Entretanto, se, de uma maneira ou de outra, há formas de indicar por onde uma cidade “começa”, o mesmo não pode ser feito para “encerrá-la” definitivamente. Sequer o é quando na condição de ilhas ou penínsulas, devido à hipótese de aterramento — vide ocupação mar adentro a qual permitiu a evolução do bairro do Comércio na Baía de Todos os Santos, em Salvador —, quanto mais se avizinhadas por terra. Ao pautar as grandes metrópoles e o processo de conurbação, isto é, o amálgama entre as terminações de dois ou mais distritos, aliado com o vertiginoso adensamento destas regiões no século XXI, se torna inócua a tentativa de firmar as bordas contíguas que separariam cada poligonal, uma vez que as mesmas se misturam e se deslocam. A rigor, as intersecções são tantas a ponto de não mais justificar linhas fechadas. Surge daí a chamada área metropolitana, constituindo uma unidade de funcionamento e gestão (CARMO, 2019) que tem por objetivo concatenar governamentalmente o tecido formado por essas diferentes continuidades.
A verticalização, mais um subproduto inerente às cidades apinhadas, contribui para esmaecer seus supostos confins. Os paredões envidraçados geram, eles próprios, significativas barreiras visuais. Assim, pela vista de quem está na cota da rua, ao menos, e a depender da posição em que esse observador se encontre, o alcance da vista é obstruído em algum ponto mais ou menos próximo a cada direção. O epílogo da cidade, dessa forma, passa a ser até onde se enxerga e é exclusivo do sujeito que o faz. A razão dessa relação reinicia a cada passo, a cada nova percepção que é lançada pelo indivíduo em trânsito. Nesses termos, tem-se, novamente, incontáveis e simultâneos atos, toda vez em que a inércia é quebrada.
Dada a singularidade da cidade e de sua poética, exaurir as elucubrações conceituais sobre onde ela começa e onde ela termina ou, inclusive, sedimentar que esses gestos de fato ocorrem, é uma ambição pouco modesta e não é intenção do presente texto. A urbe não-encastelada, sem cercanias, portões ou pontes levadiças voltadas às quatro direções inviabiliza a delimitação permanente, a menos que ao seu redor exista uma abrupta falha geológica ou outra condição intransponível para o crescimento com as tecnologias disponíveis. Tampouco é automático compreender seus nascimentos. Por essa razão, as indeterminações, os interstícios e, sobretudo, a subjetividade de reconhecimento desses núcleos por parte dos atores que neles habitam é o que faz os agrupamentos antrópicos serem indeterminações. A retícula urbana, constituída por camada em cima de camada, se mostra sempre dinâmica e incapturável, tal qual as suas intermitentes dilatações.
Referências bibliográficas
- FERRÃO, J. (2003). Intervir na cidade: complexidade, visão e rumo. Políticas Urbanas – Tendências, estratégias e oportunidades. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
- CARMO, J. C. B. (2019). A emergência do conceito de região metropolitana como unidade de planejamento. Geosul, 34(70), 315-338.
- JARDIM, E. A. (2019). A cidade começa no lugar onde você mora! Relações entre memória, identidade e território nos bairros-sede dos CEUs. arq. urb, (26), 102-116.