Que relações entre o campo social da memória e a construção da cidade podem ser identificadas no período da ditadura civil-militar brasileira? Partimos da ideia de que a formação da cidade envolve uma série de disputas e concessões entre os mais diversos entes que compõem a sociedade. Uma vez que, como sabemos, cada agente social possui um lugar de fala diferente dos demais, as suas opressões ou privilégios são transportadas ao campo das memórias, que por sua vez se transcrevem na construção do ambiente urbano. Isto é, as opiniões e vontades de determinadas comunidades, por dotarem de mais recursos, determinam muitas vezes como os lugares serão erguidos e as narrativas tecidas sobre eles.
Nesse sentido, versões hegemônicas, na maioria das vezes, refletem posições de grupos em situação de dominância e privilégio, dado fato de que o acesso às instâncias de autenticação de discursos presta-se mais a favor dessas classes. A partir dessa noção, perpetuação de discursos sobre lugares na história, constroem na memória coletiva um instrumento de poder que enfatiza as crônicas e sistemáticas opressões de grupos (LE GOFF, 1990). Na medida em que as sobreposições e reconstruções da cidade estabelecem um vínculo simbólico com parcelas determinadas da sociedade e as ideologias que são transmitidas. Entende-se, portanto, que os edifícios e intervenções urbanas são erguidos a partir de narrativas sobre a memória, porém desde que são dispostos na trama urbana também passam a atuar como produtores de sentido sobre fatos e lugares.
Podemos considerar que o território da cidade se instrumenta a partir de asfixias de memórias, as quais por sua condição de subalternidade são historicamente soterradas em tentativas de apagamento (TRAVERSO, 2007). Os mecanismos de apagamentos são múltiplos, e atuam na construção da cidade tanto no plano simbólico como na sua concretude. As narrativas sobre lugares talvez sejam a possibilidade mais acessível de entender os antagonismos que constroem os apagamentos, ou asfixias, de memórias, podendo categorizar as memórias centrais – e assim, hegemônicas – e as memórias locais – que são entendidas como subordinadas (TRAVERSO, 2007).
Conectadas a elas nesse contexto se encaixam os lugares de memória de dor e consciência e, mais especificamente, o conceito de Urbanismos difíceis, o qual é desenvolvido no “Guia das Memórias Difíceis”, coordenado por Renato Cymbalista. Urbanismos difíceis seriam lugares que expressam tanto o autoritarismo dos momentos em que foram elaborados como os que colocam condições inóspitas para sua ocupação.
Assim, ao analisarmos o desenvolvimentismo que se alinhou à ditadura civil-militar brasileira podemos encontrar nitidamente como um modo de fazer cidade serve a uma postura política de soterramento de vozes dissidentes. As camadas de silenciamento que se apoderaram do urbanismo da cidade durante o regime militar se caracterizam principalmente pela destruição criadora dos territórios para implementação de grandes infraestruturas viárias e automobilísticas. A criação dessas mega intervenções gera também uma estrutura cultural de manutenção e sustentação política do governo.
As grandes intervenções viárias não podem ser comparadas aos abusos, torturas e assassinatos perpetrados pelo Estado ditatorial nesse período. Entretanto, diversos investimentos do poder público nessa época revelam outra forma de violência estatal, que operava explicitamente em corroborar com as noções simbólicas de autoafirmação do regime. Visto que não só se apresentava na construção de discursos e das propagandas, mas impactava por sua implantação perene no tempo e no espaço da cidade. São intervenções geradoras de lugares difíceis que perduram até hoje – não só como rasgos físicos nunca cicatrizados na cidade (CYMBALISTA, 2019).
Como expressão dessa violência e sistema autoritário de poder, a cidade de São Paulo converte-se em palco de nova onda de intervenções viárias a partir da gestão de Faria Lima (1965-1969) – potencializada com aumento do orçamento pós-reforma tributária de 1964 – com a entrega de, ao menos, uma grande obra viária por ano, até o início de 1980 – quando o ritmo de obras se arrefece diante da crise econômica daquela década. São Paulo tornou-se uma grande peça publicitária do regime. Sua grandiloquência, sua vocação ao moderno (JACQUES, 2020), o exemplo de um futuro promissor e reflexo de uma nação que avançava em ritmo irrefreável e exacerbado no ritmo das vias expressas, na escala do automóvel e na inevitabilidade do progresso (JACQUES, 2020).
Nesse contexto e como paradigma dessa criação destruidora, múltiplas e sucessivas intervenções entre 1968 e 1971 desenharam o arco viário expresso responsável por conectar os trechos oeste (Minhocão) e leste (Radial Leste) da cidade – servindo de recorte espacial notadamente rico para compreender esse modo de fazer a cidade oficial, revelar como tamanhas estruturas foram viabilizadas, quais as narrativas, existências e memórias foram (e são) por elas soterradas e, então, como lidar com tais heranças. Justificando-se, não só pelos possíveis ensinamentos e diálogos com o momento político social vivido hoje, mas também por trazer dados essenciais para lidar com essa cicatriz espacial e temporal ainda hoje marcante e definidor da cidade (e em especial das áreas adjacentes).
Esse recorte de análise, que no ensaio denominamos de “Arco”, compreende-se também como a expansão viária da segunda perimetral do centro de São Paulo (NEVES, 2019). Esse eixo pode ser entendido como segunda perimetral, já que foi desenvolvido posteriormente ao Plano de Avenidas, o qual determinou a configuração física da cidade na década de 20 e 30. O objeto de estudo foi projetado durante os anos de 1960-1970, em um momento que a região central já estava consolidada e se pretendia expandir essa conexão viária às áreas mais distantes.
Nesse contexto de muitas mudanças, as grandes obras viárias ganharam espaço nos discursos políticos, midiáticos e consequentemente populares (NEVES, 2019). O período ditatorial utilizou da ideia de desenvolvimento e progresso do país para se justificar nessas grandes obras urbanas feitas com recursos públicos, seguindo uma pauta política e econômica dos países capitalistas do norte global.
Esses grandes viadutos eram emblemas de uma época em que a construção civil e a técnica eram muito valorizadas e estavam muito presentes nos discursos políticos como o meio de se alcançar o progresso. Foram construídos de maneira descompassada, ao longo de um período de governanças distintas. Entretanto, mesmo com essa heterogeneidade de características, lógica estrutural, fases de implantação, eles podem ser lidos como um sistema que representa um instrumento indireto de violência estatal e propaganda do regime.
A infraestrutura urbana constituída pela Ligação Leste-Oeste, dessa forma, configura um território de memória (CATELA, 2001) dentro dos bairros do Bixiga, Liberdade e Glicério. Deve-se, então, entendê-los como um entrelaçado material e imaterial, físico e simbólico, onde se estabelecem relações que marcam, produzem e ressignificam práticas sociais, podendo estar imersas em uma lógica de referência ao passado, ou ao presente (CATELA, 2001). Esse território, ainda, teve grande parte de seus espaços modificados por essa grande obra de infraestrutura urbana que alterou drasticamente seu relevo topográfico original, sem se atentar às especificidades locais de cada um dos bairros.
Outro fator que exemplifica a condição sistemática de operação do Arco se dá pelo curto intervalo de tempo em que se depreenderam tanto as ações de demolição das preexistências como da construção dos viadutos. Sendo que as demolições ocorreram de 1964 a 1968 e a fase de construção de 1969 a 1972. É interessante observar que mesmo que o plano da Leste-Oeste tenha sido premeditado em 1961 pelo governo municipal de Prestes Maia, somente após a instituição da ditadura civil-militar que os planos de derrubada são efetivados, e então continuados pela gestão de Faria Lima.
O desenho dessas novas vias não seguiu os eixos viários já existentes, sua execução desapropriou quadras inteiras, cortando os bairros do Glicério, Bixiga e Liberdade ao meio, fragmentando as dinâmicas internas existentes. Por serem bairros predominantemente residenciais, inúmeras famílias foram desapropriadas em prol dessas melhorias públicas. Foi um verdadeiro soterramento de memórias e dinâmicas espaciais e sociais que existiam até então nesses bairros. Por serem moradias mais populares, não estavam no novo plano de cidade pretendido. Dessa forma, o modelo cidade-periferia foi intensificado, a população de baixa renda que antes vivia de aluguel nas regiões centrais, agora estava comprando terrenos na periferia, que sem planejamento algum, foi sendo adensada por aqueles que não eram bem-vindos na cidade formal.
A partir desse modo de fazer o espaço urbano do regime autoritário militar, suas intervenções e obras compreenderam uma política sistemática de apagamentos, elaborando novas memórias oficiais e hegemônicas. As construções que contornam o viaduto sofrem de uma obsolescência programada, enquanto o miolo dos bairros enfrenta a especulação imobiliária.
Portanto, notamos que existem 3 primordiais perdas para o estabelecimento do Arco, que se colocam evidentemente em maior ou menor medida ao longo do perímetro. A primeira circunscreve-se na perda de uma dinâmica de cidade e suas continuidades, evidenciada principalmente no uso e ocupação da rua como extensão das dinâmicas familiares, as quais vão sendo progressivamente diminuídas com o avanço do rodoviarismo e sofrem uma evidente cisão com as novas estruturas. A segunda consiste no desencontro entre via e topografia, desde a limitação de uma única cota criando situações de estrangulamento de edificações como até na total desconsideração de um morro, como ocorreu na Praça Almeida Júnior no bairro da Liberdade. Já a terceira constitui-se pela separação de caminhos e espaços públicos sobre a perspectiva do pedestre, sendo talvez uma desconsideração dos percursos existentes pela impressão do traçado do sistema, além de uma criação de espaços residuais pelo martírio de situações passadas.
Uma nova dinâmica de cidade já se criou a partir dessa estruturação dos bairros, novos espaços, memórias e dinâmicas sociais foram desenhadas no decorrer do tempo. Não apenas fragmentos anteriores ao viaduto, mas outras que se acumularam e se sobrepuseram. A relação da população com o território até hoje é marcada pelas intervenções realizadas no período militar.
Dessa forma, o Arco, além de sua escala e magnitude contrastante para com o seu entorno, evoca uma univocidade e supressão na sua implantação. Principalmente, ganha um valor de monumento, já que parte das narrativas que o constroem o conotam dessa maneira, ademais, é capaz de produzir sentidos e narrativas após sua construção. Nessa perspectiva, fica clara a relação propagandista que ele, e as outras grandes intervenções urbanas do período, abarcam enquanto sistema de codificação da São Paulo.
Pode-se, então, entender esse sistema – não apenas o arco de viadutos, mas todas as sobreposições distintas de cidade – como uma tecnologia de poder. Visto que a construção do Arco envolve além de uma mais evidente reestruturação do espaço através do poder de coerção e convencimento do Estado, possibilidades de vigilância e controle. Aqui se aborda um conceito mais amplo, dado pela constante presença das formas de governança e seus agentes, tanto nas demolições como na construção, o exercício do poder de construir sobre a distribuição dos corpos explicita as escalas de força entre população e regime. A possibilidade de mudanças tão drásticas no território sem a menor consulta ou tato sobre os habitantes faz parte do exercício do poder que um governo naturalmente possui, mas exerce preponderantemente quando detém o autoritarismo como governamentalidade. Isto é, a forma como se conduziu a imposição do sistema abrange uma outra camada de repressão da ditadura.
A dimensão simbólica do poder se materializa não só na medida em que essa estrutura se firma e naturaliza no território, mas também quando erguida promove esforços de apagamento sobre o que estava ali antes. Sobre a dimensão monumental que atua repartindo quase todo centro expandido da cidade, é que também os modos de representação e atuação sobre o espaço refletem as tentativas de legitimação da ditadura. O Arco caracteriza como a interpolação dos anseios de um governo autoritário se alinham a narrativas desenvolvimentistas, muito utilizadas no período, como propaganda mas também ferramenta de controle, evidenciando a importância da arquitetura e suas diversas formas de expressão com a sociedade. A sedimentação de narrativas materiais, como o Arco, na cidade de São Paulo, não somente influenciam como pautam muitas vezes as perspectivas sobre momentos históricos, como a ditadura civil-militar, já que como argumentado, estão intimamente conectados com a memória coletiva da sociedade.
Este ensaio é fruto das discussões sobre o trabalho desenvolvido para disciplina de Estudio Transversal na Associação Escola da Cidade ao longo do segundo semestre de 2020. O tema provocativo intitulava-se por “Espaços para respirar”, o trabalho ocorreu sob a orientação da Dra. Marianna Al Assal e prof. Luis Mauro Freire.
Referências bibliográficas
- CATELA, Ludmila da Silva. Situação-Limite e memória - A reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Anpocs, Aderaldo & Rothschild: Anpocs, 2001.
- CYMBALISTA, Renato (Org.). Guia dos lugares difíceis de São Paulo. São Paulo: Anablume, 2019.
- JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança. Salvador: EDUFBA, p. 46. 2020
- LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 1990.
- NEVES, Deborah Regina Leal. A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
- TRAVERSO, Enzo. Historia y Memoria: Notas sobre un debate, in Marina Franco y Florencia Levín (comps.). Historia Reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires, Paidós, 2007.