Imagine o dia a dia de um arquiteto hoje. Surge a demanda de um novo projeto, uma tela em branco repleta de inúmeras possibilidades. O deleite criativo prestes a ser iniciado. Estabelece-se as condicionantes principais: programa de necessidades, análise do terreno e entorno, orientação solar e ventos predominantes. Criam-se os primeiros esboços, sempre aliados com um conhecimento estrutural, mesmo que básico, fundamentalmente determinante para quem vive na aceleração gravitacional de 9,807 m/s².
Mas, e se dessas premissas básicas, restar apenas o programa de necessidades?
Os que estão se aventurando pela arquitetura do metaverso, com certeza, já se perguntaram isso. Um ambiente lúdico onde todos os sonhos formais são possíveis, onde aspectos determinantes para a arquitetura como orientação solar, ventilação, clima não serão mais necessários, onde – para o desespero de Louis Kahn – não há mais jogo de luz e sombra, apenas um campo aberto e infinito.
A arquitetura surgiu no canteiro de obras, em uma época na qual não havia desenho, apenas experimentação. Com o tempo, graças a Brunelleschi e a cúpula de Florença no século XV, testemunhamos um primeiro distanciamento do canteiro, uma divisão social do trabalho da qual emerge a arte liberal e a arte mecânica. Esse distanciamento gerou diferentes desafios e colocou a arquitetura em um plano onírico, presa ao papel. Ou seja, nós não construímos nenhuma estrutura, nós as desenhamos. Agora, seis séculos depois, parece que estamos nos preparando para dar mais um passo longe do canteiro de obras, distanciando-nos abruptamente da engenharia e construção.
Projetar no metaverso requer uma revisão profunda do método projetual pois, se a forma seguiu a função na era modernista, a forma seguirá o que quisermos na era do metaverso. Se antes nos preocupávamos em criar abrigos e suportes para as atividades cotidianas, no metaverso focaremos em experiências formais, puramente visuais e sonoras. Por exemplo, não será mais necessário criar vestiários, banheiros ou camas; em vez disso, nos atentaremos aos sons as portas fazem quando se abrem. Quando não há regulamentações, engenharia ou até mesmo gravidade, tudo se torna possível.
Utilizando a metáfora da jornalista Stacy Suaya, no metaverso cada um de nós será capaz de construir a sua própria Dubai. Assim como a cidade árabe transformou o deserto com estruturas inimagináveis, o metaverso surge para romper de vez os limites da arquitetura de uma forma muito mais rápida e prática, eliminando guindastes e anos de cálculos e construção. Nesse processo, a engenharia aparentemente não teria mais nenhuma utilidade, desvencilhando a arquitetura de sua necessidade construtiva. A ideia de que um arquiteto de sucesso deve ter certo conhecimento estrutural, travando alianças precisas com bons engenheiros, cai por terra.
Nesse sentido, levando em conta a separação abrupta que se daria entre a arquitetura e sua preocupação estrutural, ainda haveria lugar no metaverso para a engenharia?
Ainda que a resposta negativa pareça óbvia, ainda é muito cedo para que possa ser feita qualquer afirmação a respeito, entretanto, o que se percebe é que grandes empresas de engenharia estão focando na ideia dos “gêmeos digitais” e do “metaverso reverso” como nichos a serem explorados nessa nova fase. A Arup, por exemplo, empresa de engenharia parceira de renomados escritórios como Zaha Hadid Architects, tem desenvolvido uma série de estudos sobre o assunto. Sempre na vanguarda das inovações tecnológicas desde a década de 1960, quando usou a computação gráfica para modelar as conchas acústicas da Ópera de Sydney, a empresa agora está focada em transformar estruturas reais em virtuais e vice-versa.
No âmbito dos “gêmeos digitais” a engenharia entra como parceira para mapear e entender o espaço físico (de pequena ou grande escala, como uma cidade), diagnosticar possíveis problemas e trazer soluções, antes mesmo do ambiente ser construído. Seria como uma evolução das maquetes de estudo que fazíamos já na época de Gaudí, abarcando agora situações mais complexas e visualizações mais reais. O “metaverso reverso”, por sua vez, representa a movimentação que tem ocorrido no sentido contrário, na qual estruturas projetadas digitalmente são recriadas no mundo físico. A Meta Residence, por exemplo, é uma mansão criada pela Voxel Architects em parceria com a ONE Sotheby's, metaconstruída em sandbox e que será fisicamente construída em Miami.
Mas ainda assim, mesmo no reino dos sonhos do metaverso, nas situações em que a arquitetura é projetada exclusivamente para o mundo digital, sem nenhuma preocupação ou conexão física, parece difícil transformarmos a tríade vitruviana em um duo, desvencilhando-nos de séculos de metodologias programáticas.
Pode até ser que não precisaremos de reuniões e discussões com a equipe de engenharia, porém, ainda assim é possível que permaneça um apetite pela arquitetura tradicional, com elementos e objetos que são familiares e nos conectam com determinadas ações ou apropriações. Afinal, são séculos alimentando arquétipos de arquitetura. Além disso, elementos facilmente reconhecíveis, que já fazem parte do nosso vocabulário, serão importantes para servir de guias, como “encontre-me no sofá amarelo”, por exemplo.
A própria questão gravitacional também não será completamente abandonada de forma repentina. De acordo com Sevince Bayrak, considerar a gravidade é importante para nos conectarmos aos espaços virtuais. “Mesmo em nossos sonhos, a gravidade é um dos sentimentos mais substanciais. Pessoas com medo de altura não conseguem andar em uma passarela e pular de um prédio de 50 andares de altura em um ambiente virtual, onde os usuários experimentam uma sensação real de queda.”
Na escolha entre considerar a gravidade ou não, entre se ater simbolicamente a estruturas familiares ou criar mundos completamente fantasiosos, projetar no metaverso é um desafio que está sendo lançado. Uma situação em que a própria falta de limites pode ser tornar limitante e até mesmo assustadora pois, assim como o arquiteto e cofundador da iniciativa Tomorrow's Thoughts Today, Liam Young afirmou, o metaverso terá porções iguais de medo e admiração. Disso tudo, pode-se afirmar que no futuro incerto da tecnologia, a forma como nossas profissões irão se comportar é objeto de muita especulação. Entretanto, independente da disciplina, uma coisa é certa, todas elas precisarão se adaptar e se reinventar para acompanhar os novos hábitos e as inovações que estão por vir.
Nota do Editor: Este artigo foi publicado originalmente em 07 de setembro de 2022