A arquitetura como o que nos conecta e transforma: Terra, a 6ª Trienal de Arquitectura de Lisboa

Terra. Termo usado para definir o planeta no qual vivemos, o solo no qual pisamos, matéria-prima para as mais distintas obras. Dela deriva a palavra território, que para além do significado simbólico em sentidos de configuração de cultura, de visões de mundo, é também a base de qualquer assentamento e da própria natureza. A potência de todos os significados que essa palavra carrega é tomada como título da 6ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, que explora temas sobre a relação humana com seu contexto e os processos de revolução que envolvem as mais distintas escalas da arquitetura.

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Na visão de Ailton Krenak, a arquitetura cobre a Terra com uma camada sensível e invisível. É através do fino revestimento de cimento das calçadas que perdemos a compreensão de pertencer ao mundo e a percepção da identidade que existe sobre o território que compartilhamos. Através de suas palavras, o líder indígena demonstra como perdemos um senso de pertencimento na natureza e nos desconectamos do que há de mais primordial para a nossa vivência. Num contexto completamente distinto, os franceses também aludiam à terra quando diziam “Sous les pavés, la plage!” (Debaixo do calçamento, a praia!) durante os protestos de maio de 1968 em Paris, através de uma ação que retoma o sentido do movimento coletivo para a materialização de uma ideia. 

Pode-se dizer que na comunhão de ambas as representações citadas acima se cria um prólogo possível para a ideia por trás da sexta edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa. Os curadores responsáveis por essa edição, Cristina Veríssimo e Diogo Burnay, vislumbram uma exposição que extrapola o sentido de uma mostra arquitetônica, pretendem que ela seja uma chamada de ação para toda a sociedade com o objetivo de manter a biodiversidade do planeta viva e compreender como a arquitetura e a forma como construímos e ocupamos as cidades são ferramentas fundamentais neste processo.

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Retroactivar. Foto: © Sara Constanca

Com um conteúdo que compreende o passado para olhar o futuro, a trienal de 2022 envolve arquitetos e agentes sociais que buscam criar mudanças significativas em diversos contextos socioeconômicos ao redor do mundo, ampliando o olhar para além do que já está posto por países do norte global e diversificando a forma como percebemos e criamos lugares sustentáveis e inclusivos. Uma mostra que pretende rever o atual modelo de sistema linear e fragmentado de produção para um modelo que seja motivado por um maior equilíbrio entre os processos, comunidades e recursos, demonstrando todo o potencial que o campo da arquitetura pode exercer como fenômeno cultural.

Para cumprir com isso, o programa desta edição é composto por quatro exposições, quatro livros, três prêmios, três dias de conferências e uma seleção de projetos independentes. Abaixo, falamos um pouco sobre cada exposição e seus eixos temáticos:

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Ciclos. Foto: © Sara Constanca

Ciclos

Localização: Garagem Sul - CCB
Curadoria: Pamela Prado, Pedro Ignacio Alonso 
Expografia: rar.studio

Dar forma aos materiais é uma das funções primordiais da arquitetura. Com o passar do tempo, diferentes determinantes foram colocados como fundamentais para conceber um projeto. Hoje, a sustentabilidade é um deles. Compreender o ciclo completo dos recursos que envolvem construir um edifício se tornou uma questão do desenho arquitetônico e a exposição curada pelos chilenos Pamela Prado e Pedro Ignacio Alonso investiga processos que vão desde a fonte dos materiais até possíveis ressignficações de recursos e resíduos no processo projetual e construtivo. 

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Ciclos. Foto: © Sara Constanca

Visando debater aspectos da memória, economia, sustentabilidade e patrimônio, a exposição também comissiona instalações artísticas para introduzir a urgência do problema existente. Segundo os curadores, os artistas conseguem indicar a natureza do problema e ir direto ao ponto que temos perante a questão circular colocada pela exposição. Junto disso, os trabalhos coletivos aqui são enaltecidos, mostrando que a partir de uma visão ampla e plural é possível mudar a forma de pensar a arquitetura e fazer com que ela contribua para uma melhora no cenário atual.

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Ciclos. Foto: © Sara Constanca

O destaque da exposição fica para os quatro filmes que compõem a obra "Mundo material: as cadeias globais de fornecimento de materiais de construção", realizada por Charlotte Malterre-Barthes, Kathlyn Kao, Severin Bärendbold e estudantes da Escola Superior de Design de Harvard. Localizada na entrada da exposição, a série audiovisual demonstra as cadeias globais de exploração para que os materiais da construção civil mais predominantes (madeira, concreto, tijolo e ferro) se façam presentes no mercado. Compreender a sua economia política, ou seja, o que está envolvido por trás de suas extrações para se tornarem arquitetura, é se confrontar com o "neoliberalismo extrativo" que, além da destruição de ecossistemas, passa por camadas de colonização e violação dos direitos humanos. Uma exposição necessária que levanta questionamentos sobre quais custos estamos dispostos a pagar na hora de selecionar os materiais que compõem o nosso projeto. Na busca por outras alternativas, Ciclos aponta possibilidades mais sustentáveis e formas de reutilizar o que já temos em mão.

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Ciclos. Foto: © Victor Delaqua

Visionárias

Localização: Culturgest
Curadoria: Anastassia Smirnova com SVESMI
Expografia: Bureau (Carine Pimenta, Daniel Zamarbide, Gallian Zamarbide).

A fim de explorar processos de criação visionários dentro da grande narrativa sobre a sustentabilidade e as alterações climáticas, a curadora Anastassia Smirnova mira em práticas que aspiram mudar o mundo de forma estrutural. Para isso, ela estrutura a exposição a partir de três conceitos principais: Monovisões, Pensamento Catedral e Futurologia no Íntimo.

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Visionárias. Foto: © Sara Constanca

O primeiro fala sobre autores que, no século passado, projetavam de acordo com o seu gênio individual, brindando visões que podem contemplar alternativas para o futuro e que levantam questionamentos sobre a relevância no mundo atual deste tipo de pensar arquitetônico que preza por uma linguagem própria e única. Longe dos nomes já consagrados, destaca-se aqui, a sala que retoma o trabalho do arquiteto eclesiástico holandês Dom Hans van der Laan (1904 - 1991), um monge que a partir de sua clareza racional e pouco ortodoxa desenhava nas mais distintas escalas: da arquitetura, do mobiliário e de vestuários. Para isso, ele criou o seu próprio sistema proporcional chamado Número Plástico. van der Laan acreditava que a arquitetura possuía seu propósito divino e desenvolveu essa metodologia para torná-la democrática a ponto de ajudar todos os arquitetos a construir espaços harmoniosos independente do programa. 

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Visionárias. Foto: © Victor Delaqua

O segundo momento se inspira nas grandes obras dos tempos medievais, sobretudo as catedrais, que eram iniciadas por diferentes coletivos que não viveriam para ver a conclusão da obra. Aqui a autoria se extingue para dar espaço a uma prática em processo constante para a execução de algo maior, a curadora cita que "embora o termo 'pensamento catedral' não esteja oficialmente incluído nos glossários teóricos, ele capta o espírito próprio desses esforços impulsionados por objetivos comuns épicos. Implica uma autoria sinfônica e um modus operandi laboratorial". Portanto, essa abordagem apresenta projetos que miram em horizontes distantes e que dependem de uma construção colaborativa. Já o terceiro eixo demonstra como intervenções em pequena escala, mais próximas do quotidiano, podem ajudar a desenvolver novos hábitos que podem ser a porta de entrada para transformações fundamentais, dando a devida importância aos pequenos gestos que são revolucionários na escala doméstica e pública.

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Visionárias. Foto: © Victor Delaqua

Sob esses temas vale realçar a agudeza curatorial que consegue selecionar projetos tão distantes, em questões de proposição, programa e escala, para gerar uma linha narrativa que deslumbra possibilidades de fato visionárias para a arquitetura. Entre a utopia e práticas efetivadas, de infraestruturas marítimas à banheiros públicos, projetos celebrados como os Escritórios Second Home em Hollywood do Selgascano e o RUN RUN RUN realizado por Andrés Jaque / Office for Political Innovation passam a discutir o binarismo dado pelas esferas do público e do privado tão limitadas pelo pensamento arquitetônico. Já o núcleo Evasão apresenta um rumo a casas autônomas, passando pelo projeto Ca'n Terra do ENSAMBLE STUDIO, que encontra um espaço escavado nas entranhas da terra e reinventa seu uso, projetos residenciais japoneses para aqueles que buscam a introversão em meio a sociedade ou ainda os impressionantes desenhos realizados pela arquiteta da Agência Espacial Soviética OKB-1, Galina Balashova, "a mulher que domesticou o cosmos", que tenta introduzir uma dimensão humana num contexto desprovido de humanismo: a colonização espacial.

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Visionárias. Foto: © Victor Delaqua

Multiplicidade

Localização: MNAC
Curadoria: Tau Tavengwa, Vyjayanthi Rao
Expografia: Miguel Vieira Baptista

Como as populações ao redor do mundo compartilham suas vidas cotidianas diante de problemas de mobilidade, falta de recursos e um passado colonial de extrema violência? Qual o papel da arquitetura sob uma perspectiva naïf e crítica?  Essas são algumas das questões que são levantadas diante do cenário de incerteza global por essa exposição. Para debatê-las, os curadores Tau Tavengwa e Vyjayanthi Rao apresentam a arquitetura como fruto da produção cultural e que pode funcionar como uma ferramenta hábil para recuperar e redefinir nosso lugar no mundo, através de intervenções espaciais que engendram as relações entre nós, os outros e o contexto que vivemos. 

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Multiplicidade. Foto: © Sara Constanca

Multiplicidade se coloca como uma grande biblioteca de referências, pequenos catálogos e pranchas de projetos, que expõem práticas espaciais - não necessariamente realizadas por arquitetos - que ajudam a enfrentar os desafios globais a partir de métodos que se dissipam do entendimento tradicional e canônico da arquitetura, moldando novas possibilidades de pensar o espaço que abrigam a esfera coletiva e, assim, atravessam camadas políticas e sociais. 

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Multiplicidade. Foto: © Sara Constanca

A exposição se divide em cinco núcleos: Alertas, Produção, Reinícios, Sistemas e Cânones, o espaço expositivo trata cada um deles com projetos e ações ao redor do mundo que demonstram o quanto a criação espacial pode influenciar o nosso quotidiano. Além disso, totens que podem ser carregados ao longo da exposição trazem depoimentos em áudio de nomes importantes do campo arquitetônico como Diébédo Francis Keré e Lesley Lokko sobre os mais distintos temas: arquitetura e ativismo, arquitetura e raça, criação de oportunidades no espaço, diversidade, propriedade coletiva, resistência, construção do imaginário coletivo, temporalidade. 

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Multiplicidade. Foto: © Victor Delaqua

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Localização: MAAT
Curadoria: Loreta Castro Reguera, Jose Pablo Ambrosi 
Expografia: CASCA Arquitectura e Design

Os curadores mexicanos Loreta Castro Reguera e Jose Pablo Ambrosi se atentam ao fato dos ambientes urbanos não serem necessariamente desenhados e que parte deles encontra-se deteriorada ou inadequada. Migração, propriedade fundiária, superpopulação, resíduos, água, saneamento, vulnerabilidade geológica, violência e mobilidade são os temas que levam à criação do termo "Cidades Quebradas", afinal elas não são necessariamente informais ou marginalizadas.

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Retroactivar. Foto: © Victor Delaqua

A exposição pretende examinar esse fenômeno apresentando situações que atravessam os tópicos citados para posteriormente nos introduzir a iniciativas que buscam soluções para transformar o domínio urbano e público que são capazes de unificar a comunidade e retificar a infraestrutura inadequada relacionada aos problemas presentes em cada contexto. Ressalta-se que as intervenções apresentadas não surgiram em propostas de projeto, mas sim de instituições públicas ou a partir da própria comunidade, levantando o questionamento sobre onde estão os profissionais da arquitetura para auxiliar na construção do ambiente construído sendo eles os responsáveis técnicos por isso?

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Retroactivar. Foto: © Victor Delaqua

Para responder a isso, surge a maior sala da exposição que apresenta infraestruturas retroativas, expondo trabalhos de ateliers de arquitetura de todo o mundo que procuram utilizar a arquitetura como ferramenta capaz de construir uma ligação entre as pessoas e o seu contexto, ao mesmo tempo que reconcilia diferentes necessidades relacionadas com os problemas levantados anteriormente pela exposição. Segundo os curadores, é nesse espaço que nos deparamos com os projetos que possibilitam a imaginação de futuros diferentes e melhores. 

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Retroactivar. Foto: © Victor Delaqua

Para mais informações sobre o programa completo da 6ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, consulte o site oficial.

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Sobre este autor
Cita: Victor Delaqua. "A arquitetura como o que nos conecta e transforma: Terra, a 6ª Trienal de Arquitectura de Lisboa" 23 Out 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/990094/a-arquitetura-como-o-que-nos-conecta-e-transforma-terra-a-6a-trienal-de-arquitectura-de-lisboa> ISSN 0719-8906

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