Em uma era de globalização sem precedentes, nossas cadeias de abastecimento de alimentos – as instituições e mecanismos envolvidos na produção e distribuição de suprimentos – tornaram-se mais longas. Tanto que dificilmente são percebidas como cadeias ou sistemas. Elas foram integrados em nossas vidas e em nossas cidades e transformaram nossas relações com a comida. E, no entanto, essas longas cadeias de abastecimento de alimentos estão envolvidas em alguns dos nossos problemas globais mais prementes, desde a segurança alimentar e o desperdício até a biodiversidade e as mudanças climáticas. Essas cadeias de abastecimento chegaram ao seu estado atual, sua extensão atual, ao longo de décadas, ou talvez séculos, por meio de todos os tipos de processos políticos, sociais, culturais e econômicos, e carregam consigo uma série de fardos: relações vagas entre produtor e consumidor, e uma série de externalidades ambientais negativas, entre muitas outras.
Diminuindo a cadeia de suprimentos
As chamadas cadeias curtas de abastecimento de alimentos, seu inverso, são caracterizadas por relações produtor-consumidor geograficamente mais próximas com menos intermediários. Elas estão conectadas a noções de circularidade e sustentabilidade porque, entre outras coisas, são vistas como aterramento da produção e do consumo na economia local, minimizando a carga ambiental associada a longas distâncias de transporte e reduzindo o risco de interrupções ligadas a longas e globalizadas cadeias de abastecimento de alimentos. Elas também estão conectadas a uma visão de economia mais circular porque facilitam o estabelecimento de sistemas que "recirculam" recursos dentro de um espaço limitado. Desta forma, elas estão envolvidas em um conjunto mais amplo de ideias e aspirações para um sistema alimentar que seja ambientalmente sustentável, resiliente, economicamente robusto e acessível a todos.
Para algumas cidades, ideias como circularidade alimentar e cadeias curtas de abastecimento de alimentos tornaram-se anseios, fantasias políticas e direções para uma ação projetiva. Isso tem sido, em parte, uma resposta à demanda, às necessidades e aos valores articulados democraticamente, às vezes de forma desconfortável, nas comunidades urbanas e rurais.
Da fazenda à mesa
Talvez mais urgentemente, elas também responderam à nossa necessidade planetária de reinventar nossos sistemas, incluindo sistemas alimentares, de forma mais sustentável e inclusiva. Vimos, por exemplo, o projeto FORCE, uma colaboração entre as cidades de Lisboa, Copenhagen, Hamburgo e Gênova, que procura minimizar “a fuga de materiais [alimentos e resíduos biológicos incluídos] da economia linear”. Vimos também a OCDE e a cidade de Tallinn trabalhando em estreita colaboração elaborando uma proposta de desenvolvimento que busca tornar a economia de Tallinn mais circular, como parte das ambições de Tallinn 2035.
No coração da Europa, o Green Deal é a estratégia Farm to Fork, um movimento em direção a sistemas alimentares mais justos, sustentáveis e saudáveis. E no centro dessa estratégia está uma estrutura regulatória para sistemas alimentares sustentáveis (FSFS), a ser lançada em 2023 pela Comissão Europeia. Antecipando a estrutura, fazemos a seguinte pergunta: qual é o papel das cidades e da governança nessa história? E como os sistemas alimentares urbanos podem ser transformados à imagem desse objetivo? Como projetamos estratégias urbanas em torno da resistência à mudanças, emissões de carbono e acesso amplo e equitativo a alimentos sustentáveis e nutritivos? Como as cidades podem embarcar em novos projetos transformadores que sejam socialmente significativos e não meros símbolos de alcance político?
Tallinn 1.5
A cidade de Tallinn é o lar dessas questões e de nossas especulações. Em uma análise de uso do solo de 2018, vimos que o espaço urbano de Tallinn é projetado principalmente para suportar o movimento de veículos e estacionamentos, resultando em uma cidade que sofre de desigualdade espacial, desigualdade de mobilidade e de desenvolvimento urbano. Ao mesmo tempo, o abastecimento de alimentos de Tallinn é altamente dependente de importações regionais e internacionais.
Hoje a cidade tem apenas 1% do terreno necessário para produzir os alimentos de que necessita - são 285.450 m² contra os 30.500.000 m² necessários para produzir seus próprios alimentos com os padrões alimentares atuais. *Terra é dedicada à produção de alimentos dentro da área urbana funcional.
Os produtores locais estão lutando para encontrar espaço urbano para a produção de alimentos, e o conceito de cidade inteligente produziu mais infraestrutura do que terra permeável. E tudo isso está acontecendo enquanto vivemos a urgência planetária de trabalhar em direção a uma economia circular.
Em uma nota mais positiva, há uma consciência renovada entre os cidadãos de Tallinn em relação aos benefícios da produção urbana de alimentos e muitas iniciativas de hortas comunitárias têm surgido a partir de 2010. A cidade de Tallinn começou estrategicamente a apoiar a jardinagem urbana, iniciando 21 hortas comunitárias nos últimos anos. Atualmente, cada distrito da cidade possui pelo menos uma horta com um total de 1.035 jardineiros.
Nossas perguntas urgentes
Nosso projeto para a Bienal de Arquitetura de Tallinn é intitulado Tallinn 1.5: Uma Visão para uma Cidade Planetária, um plano para uma Tallinn autossuficiente exibindo como seria a cidade se produzisse toda a comida necessária para se sustentar e se seus cidadãos adotassem uma “Dieta Planetária” para ajudar a melhorar a sua saúde bem como a do nosso planeta. Para isso, Tallinn precisaria produzir 800 milhões de calorias de alimentos por dia, tarefa a qual exigiria que quase 20% de todo o espaço urbano fosse transformado em terras dedicadas à produção de alimentos.
Quanta terra precisamos recuperar da cidade inteligente para produzir comida a fim de nos tornarmos autossuficientes? E podemos?
O projeto consistirá em duas cartografias, uma mapeando a produção de alimentos em Tallinn hoje e a outra detalhando um plano especulativo de uso da terra necessário para a autossuficiência da cidade, caso toda a sua população participe de uma dieta mais sustentável. As duas cartografias – uma longa e linear hoje e uma curta e circular amanhã – são colocadas juntas para gerar questões sobre o espaço intermediário, as etapas necessárias para a transformação de uma para a outra e o que seria necessário para chegar onde queremos.
Para o primeiro mapa, a situação atual, nossa equipe conduziu uma análise de dados de uso da terra para exibir os padrões relacionados à produção de alimentos de Tallinn, que hoje são relativamente mínimos. Este mapa será realizado usando o cadastro nacional de usos da terra e o registro nacional de usos de edifícios. Como os habitantes de Tallin são conhecidos por cultivar alimentos em seus quintais e varandas, nossos parceiros da TalTech criaram um processo de mapeamento participativo usando o Maptionnaire que permitirá aos cidadãos e ativistas mapear locais informais de produção de alimentos em Tallinn - aumentando a riqueza do mapa e a qualidade de sua representação.
O segundo mapa, o cenário espacial, é baseado em um projeto de pesquisa onde avaliamos os usos da terra necessários para satisfazer a demanda local de produção de alimentos em Tallinn. No entanto, produzir alimentos localmente não é a solução se a dieta em si não for sustentável. Para atingir as metas de 1,5 grau estabelecidas no Acordo de Paris, o que as pessoas consomem também precisa mudar. Imaginamos que todos os habitantes fariam a transição para a "Dieta planetária", um programa de avanço projetado para retardar o aquecimento global, mantendo um estilo de vida nutricionalmente equilibrado. Nossa equipe calculou a quantidade de terra necessária para fornecer comida suficiente para todas as pessoas que vivem em Tallinn se todos os cidadãos estivessem seguindo essa dieta. Nosso cenário especulativo, por sua vez, apresenta um plano de uso da terra consciente do clima para uma Tallinn sustentável.
Transições sem conflitos
Transições sem conflitos requerem tempo e apoio público. Nesse contexto, propusemos um sistema de rotulagem de carbono para produtos alimentícios a fim de aumentar a conscientização sobre o impacto ecológico dos alimentos que consumimos. Além de incluir a pegada de carbono, também medimos o impacto espacial da produção de alimentos na cidade. Este é um fator crucial ao planejar uma Tallinn autossustentável e é uma verificação da realidade para os formuladores de políticas envolvidos neste processo.
Se Tallinn produzisse — dentro dos limites da cidade — toda a comida que precisa, haveria espaço suficiente? Qual seria o produto mais eficiente para cultivar?
Para projetar um sistema de rotulagem de alimentos que mostre tanto o impacto espacial quanto o de carbono, calculamos a quantidade de espaço necessária e o carbono emitido para produzir uma caloria de cada tipo de alimento. Aproveitando um design minimalista que utiliza duas escalas diferentes, queremos mudar o meio para informar os cidadãos e sensibilizá-los nos seus hábitos diários. Em uma campanha de mídia social, publicamos vários rankings de emissões de alimentos e eficiências espaciais. A campanha ocasionou observações como "o futuro são os fungos" – uma referência ao baixo impacto espacial e emissões carbono do cogumelo. Nossa opinião é que um sistema de rotulagem de alimentos ajudaria a melhorar nossa consciência do impacto ambiental de nossos alimentos, que é um primeiro passo crucial para a transição rumo a um futuro livre de carbono.
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— SPIN Unit (@spinunit) May 10, 2022
What does a city that can feed itself look like?
•••#selfsufficiency #circularity #foodsecurity pic.twitter.com/5I9fptyz4m
O espaço entre a longa e linear de Tallinn hoje e seu curto, circular e mais sustentável amanhã é significativo, e há muito trabalho pela frente se as cidades quiserem embarcar na circularidade e se comprometer com a sustentabilidade urbana. A produção de alimentos é apenas uma e, só para isso, Tallinn precisaria de 99% a mais de terra do que tem hoje. Depois, temos biodiversidade, gerenciamento de resíduos, espaço público e muito mais a serem adicionados à lista de usos da terra recuperados da cidade inteligente.
Essa análise sugere que é hora das cidades recuperarem espaço de infraestrutura urbana obsoleta, estradas e estacionamentos superdimensionados, shoppings subutilizados e antigas áreas industriais para embarcar em um empreendimento valorizando os benefícios de nosso interesse e os requisitos de uma economia circular.
Isso começa apoiando comunidades interdependentes e os indivíduos que lhes dão vida. Acima de tudo, sugere que agora é a hora de agir, que não há tempo - ou comida, aliás - para desperdiçar.