"O piso plano é uma invenção dos arquitetos. Adapta-se a máquinas, não a seres humanos." Inspirado pelos secessionistas vienenses e pelos artistas austríacos Egon Schiele e Gustav Klimt, assim como pelas ousadas formas gaudinianas, o autor dessa frase, Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), foi um prolífico pintor, escultor e arquiteto. Suas obras são marcadas pela dualidade entre a disciplina e a indisciplina, entre o esperado e o inesperado, o racional e o irracional. Na sua aventura criativa, Hundertwasser não era um simples inimigo da linha reta, ele desprezada o racionalismo arquitetônico reivindicando formas fluídas e cores marcantes.
Além disso, suas obras também são caracterizadas por fomentarem a importância da experiência arquitetônica para além do sentido da visão. Hundertwasser afirmava que o tato, particularmente, era um dos sentidos mais importantes e constantemente rejeitado dentro da composição arquitetônica. Com isso, seus projetos vão além de materiais diferentes com arranjos improváveis, como as paredes azulejadas com mosaicos coloridos ou os tetos rugosos e abobadados. Em muitas das suas criações arquitetônicas há uma desconstrução do que seria um espaço “tradicional” com paredes curvas e, principalmente, com pisos irregulares e ondulados.
O artista defendia a ideia de que a “arquitetura deveria elevar e não subjugar o homem”, sendo assim, segundo Hundertwasser, um piso irregular e “animado” significaria a recuperação do equilíbrio mental do homem, da sua dignidade que foi violada pelo sistema urbano antinatural e hostil dentro do qual se vive. Nessa dança das superfícies, o inesperado percurso ondular obriga o usuário a estar atento ao seu entorno, marcando a sua experiência na arquitetura por meio dessa apropriação que é incomum e inesperada.
Na linha tênue entre o equilíbrio mental e o desequilibro físico, as superfícies irregulares tem marcado presença em diferentes composições arquitetônicas, extrapolando as criações mirabolantes do artista austríaco e surgindo em projetos contemporâneos de grandes arquitetos. A Casa da Cultura, localizada na região espanhola da Galícia, projetada por Peter Eisenman e sua equipe emerge como uma superfície curva que não é uma figura nem terreno, mas ambos, criando uma topografia artificial que marca a experiência dos visitantes e ainda os conecta com o relevo acidentado do entorno. Assim como Eisenman, a proposta de Jean Nouvel para o National Art Museum of China também incorpora superfícies onduladas na base da edificação, gerando espaços públicos de encontro e contemplação. Além deles, Zaha Hadid, a mestre das formas orgânicas e fluidas, também deve ser mencionada com projetos com o Grande Teatro de Rabat no Marrocos, tal qual Rem Koolhaas e o entorno da Casa da Música, no Porto, Portugal.
Entretanto, além de grandes obras públicas e culturais — como as citadas anteriormente —, que usam o artifício da irregularidade para marcar a experiência arquitetônica do usuário, os pisos dançantes são vistos com certa constância também em projetos voltados para as crianças. Entendendo os pequenos usuários como mais propensos a aventuras e desafios, parques infantis e centro comunitários desconstroem o que seria uma arquitetura “tradicional” para estimular a capacidade física e intelectual dos visitantes. Um exemplo interessante é o Centro Comunitário para Crianças The Playscape, na China, que, por meio da sua topografia acentuada, potencializa o desenvolvimento da noção de equilíbrio e da liberdade de tomada de decisão. Os morros e rampas permitem que as crianças explorem e avaliem os riscos de percorrer as diversas inclinações em diferentes velocidades entendendo os seus limites e se desafiando ao mesmo tempo. Além dele, o Jardim de Infância YueCheng, também em Pequim, traz superfícies onduladas e coloridas à la Hundertwasser, criando uma paisagem lunar na qual as crianças podem se sentir livres para explorar.
A ideia da exploração e da aventura também ganha lugar em praças públicas como a Praça Santa María Mazzarello, na Espanha, a Praça Israels Plads e City Dune, ambas na Dinamarca, exemplos que incorporam superfícies irregulares, seja por conta da própria topografia na qual estão inseridos, seja por um gesto puramente intencional. Independente do motivo, suas ondulações possibilitam diferentes apropriações e brincadeiras dispersando o cidadão autômato.
Nas criações experimentais de Hundertwasser ou nos projetos de grandes nomes da arquitetura contemporânea, as superfícies irregulares e onduladas representam mais do que uma simples ousadia arquitetônica. Elas devem ser valorizadas como estratégias de reconexão entre o usuário e a arquitetura em uma era da velocidade na qual as pessoas tendem a se deslocar, mesmo a pé, o mais rápido e autonomamente possível.