É perceptível a exclusão do gênero feminino da formação do espaço, refletindo um lugar de insegurança e de vulnerabilidade. Neste contexto, a mobilidade urbana, tal qual conhecemos, reproduz as desigualdades de gênero, raça e classe existentes em nossa sociedade. Seja por meio da caminhabilidade ou do transporte público, o fato é que a forma como os deslocamentos são realizados não se adequa às necessidades das mulheres, especialmente aquelas autodeclaradas pretas e pardas e com menor renda. Buscamos aqui, portanto, dar especial atenção para o modo como as noções de interseccionalidade têm operado nessa mobilidade urbana como um direito social para todas e todos.
O espaço urbano contemporâneo se revela diverso, disperso e fragmentado. Suas realidades são plurais; o seu tempo não é linear. As cidades, independente de suas grandezas, são percebidas como espaços de centralização de oportunidades, no entanto, são também, cenário de múltiplos problemas. E entender acertadamente a cidade e as causas de seus problemas é uma condição indispensável à tarefa de se configurar estratégias e meios apropriados para a superação desses. “As cidades adquirem, cada dia mais, um forte protagonismo tanto na vida política como na vida econômica, social, cultural e nos meios de comunicação.” (CASTELLS; BORJA, 1996, p.152). Pode-se falar, então, das cidades como atores sociais complexos e de múltiplas dimensões. Assim, para analisar o espaço urbano contemporâneo se faz crucial entender a sociedade contemporânea.
Territórios, lugares e cidades são reordenados em modos de formação e mercado, sob a dominação da estruturação dos fluxos. Uma vez que nossos deslocamentos cotidianos estruturam nossas relações e o modo como nos apropriamos — ou não nos apropriamos — dos espaços públicos, as formas e estratégias de mobilidade ficam ligadas à divisão social e territorial do trabalho e aos modos de produção, que configuram tanto o espaço social quanto territorial, em suas múltiplas escalas (BALBIM, 2016). A mobilidade passa a estar no ponto central da vida social, de modo transversal a todas as outras práticas cotidianas. Isso implica em perceber que as iniquidades no uso e no acesso à cidade, aos diferentes transportes, aos serviços e aos equipamentos urbanos dilatam e reforçam, e muito, as desigualdades urbanas.
Em termos concretos isso significa compreender que o debate crítico sobre a mobilidade e a acessibilidade nas conjunturas recentes de nossas cidades não deve ser posicionado unicamente na esfera do econômico e do técnico, apesar desses elementos serem expressivos no campo urbano contemporâneo. Torna-se necessário integrar o aspecto político ao debate sobre a mobilidade urbana, principalmente na atual conjuntura de urgência de fazer social. E é na linha, orientada por Souza (2010), que a lógica de transitar na pauta da ação política efetiva nos faz superar os enclaves e que são, consecutivamente, essenciais para o anúncio tátil da essência coletiva dos lugares. A mobilidade está relacionada ao direito de gerar e conquistar o espaço urbano.
Está claro que no traçado da reflexão crítica investigativa, as conjunturas sociopolíticas da mobilidade são uma dinâmica de desvelamento da sociedade em seu estágio de universalização urbana. E também um proveito para reconhecer atores possíveis nos conflitos de apropriação e uso do espaço socialmente construído.
Refletir sobre os traçados do mover-se pelas cidades nos exige uma avaliação crítica das diversas condições que as compõem. Para isso, um olhar para a racialização e a feminização se tornam valorosos campos de discussão dentro e fora da temática urbana, uma vez que as desigualdades existentes têm sua base na constituição social do capital, que é cisheteropratriarcal, branca e neoliberal. Isso se traduz na mobilidade urbana como um elemento de um conjunto de ramificações em que os indivíduos sociais são sujeitos que se movem, ou não, na cidade, e que se reproduz na qualidade de vida, do direito e acesso ao transporte e à cidade. Como lembra ainda Lélia Gonzalez (1988), são atribuídas aos sujeitos invisibilizados e das margens, uma sucessão dessas adversidades, desenhando uma condição de subordinação que opera para reproduzir o controle e a repressão de seus corpos.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? — Sojourner Truth, 1851.
Este é um trecho do discurso Ain’t I a woman?, proferido por Sojourner Truth, mulher norte-americana negra que nasceu sob o domínio da escravidão e se dedicou, após conquistar sua liberdade, à luta abolicionista e pelos direitos das mulheres. Ela revela em seu discurso as questões e particularidades que assinalam a experiência histórica de opressão e discriminação das mulheres negras na condição das relações de gênero e seus meios de locomoção.
Ora, quem mais se desloca pela cidade são as mulheres. São elas que, em sua quase totalidade, realizam mais viagens cotidianas referentes a serviços de saúde, ao cuidado dos filhos, às provisões domésticas e aos seus próprios trabalhos. Na maioria das vezes, deslocam a pé por seus bairros, experienciando a insegurança e a falta de infraestrutura, dado que a situação das calçadas, em especial, nos bairros periféricos, é inconcebível, impedindo a mobilidade a pé ou de bicicleta, sobretudo, de idosas e com deficiência.
Assinalemos ainda que aquelas que estão em maior número no transporte público, caminhando dos pontos até suas residências, utilizando as (não) calçadas, são as mulheres pretas e pardas com menor renda, que ao contrário dos planejadores (homens, brancos e ricos), estão no lado oposto da cadeia de privilégios, sendo regularmente assediadas.
Não por acaso, as investigações das associações entre padrão de viagens, status socioeconômico e a questão da violência de gênero registraram tamanha opressão. Como parte de um estudo iniciado em 2019, no qual se propôs analisar a segurança em ambientes de transporte mediante as várias perspectivas e usuários, foi possível traçar o perfil de mobilidade dos entrevistados, através da aplicação de questionários online, visando uma abordagem de cunho quantitativa, originalmente desenhado por uma rede de pesquisa internacional - Transit Crime Research Network (TCR-Network) [1].
Não desejamos nos debruçar sobre os resultados, dado que o enfoque, aqui, está no aprofundamento das reflexões sobre as condições e eventualidades que tecem os contrastes encontrados. No meio das reflexões possíveis fundamentadas nesses dados, o propósito é debater as experiências da mobilidade das mulheres, sob a lente do conceito de interseccionalidade, tomando como fio condutor a discussão da concepção de uma crítica sobre a mobilidade urbana pouco ou nada inclusiva, no que concerne a luta pelo direito de existir, procedendo da prerrogativa orientada pelas teorias decoloniais de que é indispensável contextualizar social, cultural e politicamente as insurgências e demandas de grupos distintos, a fim de que se compreenda o contexto em que se inserem para fomentar uma política emancipatória na pretensão de respostas para realidades que experienciamos (BERNER;MELINO, 2016).
Pensando nisso, por meio da presente análise da mobilidade das mulheres, conseguimos verificar alertas de insegurança e de vulnerabilidade. O assédio e a violência permanecem como uma realidade angustiante na vida cotidiana feminina. O medo está na experiência vivida que dispõe uma enorme força na forma de uso do espaço público. Contudo, ancorada no referencial teórico utilizado e em dados reais, essa situação se intensifica ainda mais quando tratamos da realidade da mulher negra na sociedade atual, não tendo escolha de sua realidade. A título de dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as mulheres pretas afirmam ter sofrido mais assédio (40,5%) em comparação com as mulheres brancas (34,9%). Visto que os corpos de mulheres negras se tornam um fetiche, um lugar para expressão de extrema violência, trata-se de argumentar a importância de não se assumir um modelo universal de mulher.
Não por acaso, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) trazem a interseccionalidade como foco das reivindicações do Feminismo Negro — ao fazer a declaração da gravidade em colocar mulheres em posição de igualdade na busca por justiça social, desconsiderando estruturas raciais de poder entre mulheres diferentes —, compreendendo-a como um sistema de opressões interligado que submete as mulheres a um complexo cenário racista, capitalista e cisheteropratriarcal. González (1988, p.13) já havia alertado para a permeabilidade das visões de mundo eurocêntricas e neocolonialistas do feminismo hegemônico, gerando o racismo por omissão, pelo não reconhecimento do problema, em suas práticas, ao falhar em abarcar as necessidades dessas mulheres. Nessa conjuntura, em virtude das mulheres negras terem sido atingidas não somente por um desses sistemas de poder, mas pela convergência entre eles, elas apoiaram a investigação que alcançasse a associação entre dois ou mais “sistemas de subordinação” (CRENSHAW, 2002, p.176) ou “sistemas de opressão interligados” (COLLINS e BILGE, 2021, p. 104). Para isso, a definição de Collins e Bilge (2021) é capaz de evidenciar uma conformidade sobre como se entende a interseccionalidade:
A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. A interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas. — COLLINS e BILGE, 2021, p. 15.
Essa definição prática, descreve a compreensão central da interseccionalidade, ao trabalhar as categorias de maneira unificada e não mutuamente excludente. Ademais, ainda que frequentemente invisíveis, as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero impactam os panoramas do convívio social. Com isso, o conceito detém a capacidade de dilatar a compreensão das opressões e dos conflitos sócio-espaciais, visto que possibilita entender os processos de dominação variados para grupos distintos. A interseccionalidade engloba em sua constituição os anseios teóricos e políticos, fundamentado nas resistências e nas lutas pelo combate à segregação, à subalternidade e à dominação, ou seja, ao estímulo da justiça social (COLLINS e BILGE, 2021).
Essas tantas perspectivas que incluem raça, gênero, classe e outros marcadores sociais da diferença, percorrem a experiência das mulheres no espaço urbano, justapondo esferas de opressão indissociáveis. Os arranjos urbanos que enobrecem o trabalho produtivo em detrimento do reprodutivo; o descrédito das mulheres pelo mercado de trabalho ancorado à sobrecarga das tarefas domésticas, bem como a falta de escolha do modal, posto que o transporte público é, muitas vezes, o modal financeiramente mais acessível para grandes deslocamentos, o que fortifica a fruição e usufruto do automóvel particular como condição ideal e desejada por uma classe dominante. Aqui estão os múltiplos e diversos os fatores que limitam as possibilidades de deslocamento das mulheres, especialmente de mulheres negras a serviço do machismo e do racismo estrutural. Fica, assim, evidente que a mobilidade também é construída pelas relações raciais e é capaz de gerar e reforçar relações de poder estabelecidas. Ao entender as relações de poder como formadoras da cidade, afirma-se a clareza das experiências examinadas que se efetivam na prática, no cotidiano de todas as mulheres, assim como de outras populações subalternizadas.
O importante é reter o olhar sensível às possibilidades criadas a partir da diversidade e, também, da adversidade. As desigualdades, inquestionavelmente, precisam ser combatidas, ainda assim o reconhecimento das subjetividades necessita ser parcela do desenvolvimento. Vivemos em cidades que planejam pelos parâmetros de um sujeito universal que detêm o poder e, dessa maneira, reforça seus privilégios, isentando-se de atender à diversidade de corpos que integram essas cidades. Ao concordarmos que as associações na cidade são marcadas pelas relações sociais vigentes, torna-se óbvio que as perspectivas de gênero e raça são elementos estruturantes do espaço urbano.
Além do que, a inserção da interseccionalidade na esfera pública auxilia para ampliação dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social, princípios sobre os quais gênero e raça se estabelecem como paradigma pela busca de uma cidade menos desigual e plural, atenta ao que as diferenças podem nos mostrar. Hoje, a interseccionalidade é aplicada para confrontar não somente as desigualdades e as opressões, mas também a formação de identidades coletivas, ligações de solidariedade entre grupos e aos ativismos políticos motivados em se opor aos sistemas de subordinação (BIROLI e MIGUEL, 2015). E essa agenda, dentro do campo da mobilidade urbana, não somente revela os efeitos característicos de opressões interligadas nos deslocamentos cotidianos das mulheres, como também confere visibilidade a outras práticas de mobilidade e outras maneiras de vivenciar o espaço urbano de um modo geral, de enfrentar o reconhecimento do modelo universal de existência. Que esse seja um convite à celebração das mulheres que se movimentam pela cidade, tornando possível a propagação da sua presença e vivência nos ambientes mais diversos.
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Este ensaio é produto de reflexões e da monografia desenvolvida na pós-graduação de Mobilidade e Cidade Contemporânea, da Escola da Cidade intitulada “A (in)visibilidade feminina no espaço urbano: Relações de pesquisas exploratórias acerca da mobilidade urbana".
Nota
[1] A TCR-Network é dedicada à crime e segurança em ambientes de transporte, bem como questões que levam em conta as necessidades de transporte seguro de uma variedade de perspectivas e usuários. Patrocinada pela School of Architecture and Built Environment e coordenado pelas professoras Vânia Ceccato, do Instituto Real de Tecnologia da Suécia, e Anastasia Loukaitou-Sideris, da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Referências bibliográficas
- BALBIM, Renato. Mobilidade: uma abordagem sistêmica, In: Cidade e movimento: mobilidades e interações no desenvolvimento urbano. Brasília: Ipea: ITDP, 2016.
- BERNER, Vanessa Oliveira Batista; MELINO, Heloisa. Perspectivas feministas e movimentos sociais. Revista de Direito da Cidade. Rio de Janeiro, vol. 8, n. 4, p. 1868 1892, 2016.
- BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na reprodução das desigualdades. Mediações, v. 20, n. 2, p. 27-55, 2015.
- CASTELLS, M. e BORJA, J. As cidades como atores políticos. Novos Estudos no 45, São Paulo, p. 152-166, 1996.
- COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo , São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017.
- CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos feministas, Florianópolis, v.10, n.1, p. 171-188, 2002.
- GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. Brasília: Jornal Raça & Classe. 1988.
- SOUZA, Marcelo Lopes de. Com o Estado apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta. Revista Cidades, v. 7, n. 11, 2010. p. 13-47.