O zoneamento é a principal técnica de regulação urbanística adotada no mundo. Ele consiste na divisão do território urbano em um conjunto de zonas, fixando-se para cada uma os usos permitidos e os índices que definem parâmetros para as edificações que poderão ser construídas em cada lote. Em tese, são dois os objetivos buscados pelo zoneamento: evitar incômodos gerados por determinadas utilizações e limitar as densidades de ocupação à capacidade de suporte da infraestrutura existente.
Em Arbitrary Lines: How Zoning Broke the American City and How to Fix It (Linhas arbitrárias: Como o zoneamento quebrou a cidade americana e como corrigi-lo), obra lançada este ano e ainda não traduzida no Brasil, o urbanista M. Nolan Gray argumenta que tais objetivos nunca foram a real motivação do zoneamento em seu país.
Na prática, ele seria, essencialmente, uma técnica empregada pelas elites residentes em bairros privilegiados para manter elevados os preços de seus imóveis e segregar para áreas distantes os pobres e os afrodescendentes.
O livro, contudo, não se limita a fazer um diagnóstico do problema — ele também propõe saídas. Para tanto, Gray — afiliado ao Mercatus Center, da Universidade George Mason, e colaborador do blog Market Urbanis, que promove soluções “de baixo para cima” para as questões urbanas — estruturou seu estudo em três partes.
A primeira apresenta as origens do zoneamento e descreve seu funcionamento na prática; a segunda explora os efeitos nocivos que ele traz para a sociedade; e a terceira sugere caminhos que podem ser adotados para superar os problemas apontados.
O zoneamento completo de uma cidade norte-americana teve início no ano de 1916 em Berkeley e Nova York. A partir daí, espalhou-se devido a três medidas fundamentais. Na década de 1920, o governo dos Estados Unidos elaborou um modelo de legislação estadual autorizadora do zoneamento municipal. Até hoje, não existe uma legislação urbanística federal no país; são os estados que legislam a respeito.
Além disso, os municípios só podem fazer o que for autorizado pela legislação estadual. A Suprema Corte também teve um papel fundamental, ao confirmar a constitucionalidade do zoneamento em face do direito de propriedade no caso conhecido como Euclid v. Ambler de 1926.
Por fim, o zoneamento foi definido como condicionalidade para o recebimento de financiamentos federais nas áreas de transportes, habitação e defesa civil ao longo do século XX.
O paradigma básico do zoneamento é a casa isolada no lote, para residência de uma única família. Esse seria o uso nobre por excelência, a ser protegido não apenas de incômodos causados pela utilização destinada a fins industriais e comerciais como também de prédios residenciais multifamiliares, combatidos pelos proprietários tanto por aumentar a oferta (reduzindo, em consequência, os preços dos imóveis) quanto por abrigar população de menor renda.
Ao descrever o funcionamento do sistema, Gray chama atenção para o fato de que são cada vez mais comuns as situações que exigem algum tipo de análise discricionária do projeto, impedindo, assim, um licenciamento automático das edificações. Com isso, estaria comprometida a segurança jurídica, que sempre foi considerada uma das vantagens do zoneamento. Afora isso, a ausência de padronização resultaria em uma miríade de tipos de zonas e normas municipais, de difícil compreensão para o cidadão.
Depois de descrever as origens do zoneamento e seu funcionamento nos dias de hoje, Gray apresenta suas consequências danosas: encarecimento da moradia, contenção do desenvolvimento econômico, segregação e espraiamento.
O encarecimento da moradia resulta diretamente da restrição à oferta, decorrente de índices urbanísticos excessivamente restritivos.
A contenção do desenvolvimento é um efeito macroeconômico, provocado pelo custo da habitação. Com os preços de moradia muito altos, a migração de pessoas para os centros urbanos mais produtivos se reduz, prejudicando não somente os migrantes em si, como também a economia de um modo geral. Em razão do zoneamento, o que estaria acontecendo seria justamente a migração para cidades mais estagnadas economicamente.
A segregação — social e racial — seria não apenas um efeito indireto do zoneamento: resultaria de uma intenção das elites locais, mediante a adoção de padrões que impedem a construção de habitações populares na proximidade das áreas nobres da cidade.
Por fim, o espraiamento seria a consequência inevitável de uma regulação que impede a verticalização nas áreas já urbanizadas.
Gray apresenta diferentes caminhos para a superação das questões trazidas pelo zoneamento — da reforma à sua completa abolição, solução que ele considera preferível. Segundo o autor de Arbitrary Lines, a liderança desse processo deveria ser dos estados e do governo federal, pois os municípios estariam dominados pelos interesses dos proprietários de imóveis.
A reforma poderia ser iniciada por medidas simples, como o fim da exigência de vagas de garagem, de áreas mínimas de lotes e de recuos. O uso residencial unifamiliar poderia ser universalmente convertido em multifamiliar. Garagens, cômodos e edículas em bairros unifamiliares poderiam ser liberadas para locação independente.
Uma reforma de maior ambição comportaria a adoção de um zoneamento mais simples e com menos segregação de usos. O exemplo destacado por Gray é o do Japão, onde há apenas 12 tipos de zona, tipificadas nacionalmente. Só usos industriais de alto incômodo são segregados para zonas específicas — e mesmo nas zonas mais restritivas é possível construir prédios baixos, casas, comércio local e escritórios.
Mais do que uma reforma, Arbitrary Lines defende a abolição do zoneamento por dois motivos. De um lado, poderiam surgir novas maneiras de os municípios contornarem regras estaduais. De outro, o sistema como um todo seria ineficiente para os objetivos a que se propõe.
Em lugar de segregar usos, o autor propõe uma regulação específica de cada tipo de incômodo, como ruídos, vibrações, poluição e odores, além de um sistema de mediação entre vizinhos com o propósito de encontrar soluções específicas para cada situação.
Para explicar como funcionaria na prática uma cidade sem zoneamento, Gray explora o exemplo de Houston, única metrópole norte-americana que não lança mão do instrumento, que foi rejeitado por sua população em três plebiscitos (realizados nos anos de 1948, 1962 e 1993).
A regulação urbanística de determinados bairros unifamiliares, que cobre 25% da cidade, é promovida por convenções de loteamento, gerenciadas por associações de proprietários, todavia fiscalizadas pela prefeitura. Essas convenções, que podem ser mais restritivas que o zoneamento, são instituídas por um período de 25 a 40 anos, após o que precisam ser reconfirmadas de 10 em 10 anos pelos proprietários.
No resto da cidade, há completa liberdade para as transformações demandadas pelo mercado: uso de vagas de estacionamento para construção, prédios com fachada ativa, substituição de casas isoladas por geminadas, conversão de centros comerciais em escritórios, independentemente de longos processos de licenciamento e consulta pública. O resultado seria uma cidade próspera, diversa, em crescimento e acessível.
Por fim, Gray oferece uma visão do futuro para a prática do urbanismo sem zoneamento, que coincide, em grande medida, com a oferecida por Alain Bertaud em Order Without Design: How Markets Shape Cities (Ordem sem desenho: Como os mercados produzem a cidade), lançado em 2018 e em breve com tradução no Brasil.
Livres da burocracia do zoneamento, os urbanistas poderiam se dedicar a projetar as infraestruturas e os bens públicos que não são adequadamente produzidos pelo mercado: praças, calçadas, sistema viário, dutos subterrâneos etc. Em lugar de planos abrangentes, atualizados periodicamente (como os nossos planos diretores), ele propõe um monitoramento permanente de indicadores demográficos, econômicos e ambientais.
Para reduzir a segregação, sugere subsidiar a construção de moradia para populações de baixa renda nos bairros mais equipados e próximos aos empregos e apoiar a gestão de habitação social por fundações (community land trusts).
Embora Arbitrary Lines tenha por foco apenas a realidade norte-americana, os paralelos com a prática brasileira são enormes. O zoneamento nacional também se vale de índices urbanísticos e categorias de usos semelhantes; não é padronizado; tem perdido segurança jurídica pela sobreposição de estudos de impacto; é incompreensível para o leigo e tende a ser dominado por interesses “nimby” (“not in my backyard“) de bairros de elite.
No entanto, a rigidez do zoneamento praticado no Brasil é maior, pois não contamos com “válvulas de escape” como as variâncias e os rezoneamentos norte-americanos, pelos quais se altera pontualmente a legislação original, por solicitação de empreendedores, em troca de contrapartidas específicas.
Um elemento que aproxima muito os dois países e que não se encontra presente na Europa e na Ásia, é o emprego abrangente do uso exclusivamente residencial unifamiliar — os bairros de casas isoladas, em lotes grandes, onde não há qualquer comércio próximo e cujo único meio de transporte é o automóvel.
Aqui também o zoneamento, sob pressão dos proprietários na política local, impede o adensamento desses bairros, que contam com muita infraestrutura ociosa, contribuindo para o encarecimento das moradias e para o espraiamento urbano. No Brasil, soma-se a isso a informalidade, decorrente tanto da pobreza quanto da tolerância com relação à ocupação irregular do solo.
Particularmente relevantes para a realidade brasileira são as sugestões de Gray para a reforma ou abolição do zoneamento. A inclusão dessa temática nas esferas estadual e federal, mediante padronização de tipologias de zonas e adoção de normas pró-adensamento, é um movimento recente nos Estados Unidos, que pode inspirar iniciativas semelhantes por aqui.
A citada substituição do zoneamento de usos por regras de desempenho relativas a cada tipo de incômodo — poluição, ruído, vibração, tráfego etc. — também parece um caminho a ser seguido. Os mencionados exemplos do Japão e de Houston permitem uma compreensão prática do que seriam modelos alternativos ao sistema padrão que conhecemos.
Como prática consolidada na administração pública e na academia, o zoneamento certamente estará conosco por muitas décadas. Apesar disso, seus efeitos colaterais adversos, combinados com uma baixa eficiência no alcance dos fins a que se propõe, reclamam reformas aptas a simplificar e flexibilizar suas regras. Arbitrary Lines oferece uma contribuição inestimável para esse desafio, que merece ser conhecida por todos os que se interessam pela construção de cidades mais inclusivas, acessíveis e diversificadas.
Via Caos Planejado.