Provavelmente você deve conhecer a história de um senhor que recebeu a ordem divina para construir uma arca a qual abrigaria sua família e animais de todas as espécies, salvando-os de uma inundação. Essa narrativa do dilúvio, conhecida como a história da “Arca de Noé”, é encontrada não apenas na Bíblia, mas também no Alcorão e em muitas outras culturas, sendo o sumério “Épico de Ziusudra” o mito da inundação mais antigo que se tem conhecimento, datado de 2.000 a.C. Esses exemplos nos mostram que as forças da natureza, ao protagonizarem ensinamentos religiosos, já eram preocupações recorrentes que impunham, ao mesmo tempo, temor e respeito nas civilizações.
Hoje em dia, muitos séculos e avanços tecnológicos depois, seguimos assolados pela iminência das catástrofes ambientais, uma fragilidade que, ao contrário de estar sendo controlada, aumenta a cada dia. Abordando exclusivamente a conjuntura “vivenciada” por Noé, estudos estimam que até o ano de 2.100 as águas do oceano subirão 1,5 metro. Maldivas e Bahamas desaparecerão do mapa assim como cidades e vilas de luxo na costa europeia. Estima-se ainda que mais de 150 milhões de pessoas que vivem em áreas inundadas terão suas vidas ameaçadas, forçando uma onda de migração em massa sem precedentes.
É chegada, portanto, a hora de construirmos nossas próprias arcas?
A ideia das edificações flutuantes está cada mais em voga. Saindo dos contos bíblicos e das ficções científicas, essas estruturas têm sido vistas como possibilidades reais para se enfrentar o aumento do nível do mar. Como alternativas aos enormes paredões que conteriam as enchentes e inundações nas cidades, as arquiteturas flutuantes e anfíbias apresentam uma nova perspectiva sobre resiliência, sustentabilidade, adaptabilidade e circularidade.
Além de auxiliar as comunidades vulneráveis a se adequarem aos impactos climáticos, as edificações flutuantes também podem fomentar a produção de energia e alimentos, lidando com a superlotação das cidades e protegendo o meio ambiente. A começar pela sua estrutura — mesmo considerando exemplos anfíbios, ou seja, que podem ser igualmente implementados em terra firme — o impacto no solo é mínimo se comparado com as toneladas de areia que são extraídas todos os anos para assentar as edificações, sem contar a modificação do terreno que na maioria das vezes é irreversível para a fauna e flora.
Claro que as estruturas flutuantes, se não implementadas de forma correta, também podem causar danos ao ambiente marítimo. Entretanto, especialistas afirmam que as vantagens se sobressaem, visto que tais arquiteturas podem ser uma base admirável para o desenvolvimento dos ecossistemas subaquáticos por promoverem o crescimento de plantas que melhoram a biodiversidade dos habitats de diversos peixes e aves.
Contudo, há quem defenda que a tecnologia flutuante está sendo direcionada exclusivamente para um público de alto poder aquisitivo, como a cidade flutuante do arquipélago das Maldivas ou a tecnológica OCEANIX Busan, na Coreia do Sul, protótipo para a primeira cidade flutuante sustentável do mundo projetada para acolher 100.000 pessoas e ancorada no mar por uma “bio-rocha” que abrigaria recifes artificiais de corais. Nesse sentido, vale ressaltar que há grandes esforços sendo feitos para tornar essa tecnologia acessível com opções de baixo custo sendo desenvolvidas em todo o mundo. A empresa indiana de arquitetura NestAbide, por exemplo, está colocando em prática modelos de casas anfíbias acessíveis na região de Kerala, muito propensa a graves inundações. Além dela, a organização sem fins lucrativos Buoyant Foundation Project está desenvolvendo estratégias para adaptar casas existentes utilizando fundações anfíbias como uma alternativa mais acessível do que usar palafitas ou mudá-las do local ao qual seus moradores estão cultural e socialmente conectados.
Outro aspecto interessante das arquiteturas flutuantes é sua vocação para produção alimentar fornecendo espaços adicionais e, ainda por cima, seguros de problemas que dizimam a produção agrícola, como as próprias inundações. Um estudo feito em Tallinn, na Estônia, ilustra o grande desafio que seria implementar na cidade uma produção alimentar urbana e autossuficiente, focada na sustentabilidade do meio ambiente e na saúde dos moradores. Segundo a pesquisa, Tallinn tem apenas 1% do terreno necessário para produzir os alimentos de que necessita — são 285.450 m² disponíveis contra 30.500.000 m². Neste caso, a tecnologia flutuante para viabilizar a produção alimentar — como a desenvolvida pela empresa holandesa Floating Future — seria uma solução interessante. Mais além da teoria, na prática já estão sendo testadas estruturas similares como a primeira fazenda leiteira flutuante do mundo, no porto de Roterdã, um equipamento de três andares que abriga 40 vacas e produz queijo e fertilizante orgânico.
Apesar dos inúmeros pontos positivos apresentados no texto, as estruturas flutuantes ainda levantam muitas questões, principalmente em relação a segurança e estabilidade. Uma opinião fomentada por notícias como o recente colapso de uma das mais famosas arquiteturas flutuantes do mundo, a escola de Makoko em Lagos, que afundou após uma forte chuva. Vale ressaltar, porém, que muitos arquitetos a consideram um protótipo que precisaria ser aprimorado, não entendendo seu destino como regra.
De fato, muitos aspectos precisam ainda ser estudados e testados quando se aborda as estruturas flutuantes, mesmo considerando-as presentes na história da humanidade há séculos, como a vila tailandesa Ko Panyi iniciada no final do século XVIII. Entretanto, ao que tudo indica, não devemos esperar pelo sinal divino (se é que ele já não foi dado) para começarmos a por em práticas nossas arcas. Talvez elas realmente sejam a salvação.
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