Sempre que a luz incidir sobre uma superfície haverá sombra, não importa o quão insignificante seja seu foco. Os contornos reais dificilmente serão visíveis, mas outras formas virão à tona nesse jogo de claro e escuro. No caso de serem projetadas pela dança solar, soma-se às sombras uma dinâmica latente que pode ser usada para intensificar fenômenos do cotidiano, quebrando a monotonia do espaço. Aberturas ortogonais em um longo corredor ou tramados de peças vazadas em um pátio são exemplos de elementos construtivos que criam manchas de luz e sombra trazendo, além do deleite estético, conforto térmico aos seus usuários. Dessa forma, torna-se evidente que esses elementos intangíveis são partes essenciais em um ambiente tanto que, muito antes de Louis Kahn declarar o poder das sombras, eles já vinham sendo manipulados.
Em uma época remota, na qual os vidros com controle de incidência solar ou as coberturas fotossensíveis nem sequer eram imaginados, a arquitetura — hoje conhecida como vernacular — já entendia e manipulava a iluminação solar por meio de estratégias simples como a orientação do volume no terreno, a composição formal e a escolha dos materiais. Compreendidas como arquiteturas que refletem seu lugar, tempo e cultura, as edificações vernaculares apresentam um entendimento minucioso do entorno e do clima no qual estão inseridas, materializado por meio de soluções que utilizam recursos disponíveis no local, controlando sabiamente as próprias condicionantes climáticas, entre elas, a luz e a sombra.
Em linhas gerais, a sombra desempenha um importante papel na funcionalidade da arquitetura vernacular pois fornece proteção contra o calor e o brilho do sol, ajudando a regular a temperatura e o fluxo de ar dentro da edificação. Portanto, em regiões quentes e áridas, a manipulação das sombras é um aspecto essencialmente presente nos exemplares arquitetônicos, a começar pela implantação dos volumes no terreno. As tradicionais casas com pátios centrais, recorrentes na cultura do Oriente Médio, apresentam essa configuração como forma de lidar com incidência solar, criando quatro laterais sombreadas com corredores voltados ao pátio oferecendo ambientes frescos e confortáveis. Característica que também é vista na arquitetura vernacular coreana, mais precisamente nas casas conhecidas como hanok, onde a própria configuração dos volumes e seus pátios também cria espaços sombreados nos quais a luz se infiltra como se estivesse em segredo, iluminando sutilmente.
Entretanto, além da configuração dos volumes, são aplicados nas casas tradicionais coreanas elementos específicos que criam sombras necessárias para o conforto térmico da edificação, como é o caso dos beirais. Com sua forma pronunciada, eles ajudam a bloquear os raios solares mais fortes no verão, gerando uma camada de sombra no entorno do volume. Vale ressaltar que essa mesma estratégia é vista em arquiteturas vernaculares de diferentes partes do mundo como nas edificações sertanejas e amazônicas no Brasil ou nas arquiteturas da Indonésia, onde a criação das sombras é feita por meio dos alpendres construídos em madeira. Estes funcionam de forma similar aos brises, gerando sombras estratégicas ao longo do dia, auxiliando também no controle do equilíbrio entre temperatura interna e externa.
Além dos motivos relacionados ao conforto térmico, as sombras também assumem um papel estético que reforça a identificação das arquiteturas vernaculares de algumas regiões. A interação entre luz e sombra na fachada de um volume pode criar padrões e texturas que são exclusivos da cultura e do ambiente local. O mundo árabe, por exemplo, é conhecido por suas arquiteturas feitas em tijolos, um dos materiais mais antigos e populares nas regiões quentes e áridas. Com base na sua forma, tamanho e durabilidade, grandes obras foram erguidas em experiências formais que saíram do padrão paredes/pilares aplicando esse material também como elemento decorativo na criação de tramados, avanços, recuos, nichos, mísulas e muqarnas, expondo sua beleza visual. Em vista disso, a luz do sol revela a estética do tijolo por meio do contraste entre suas sombras em situações que, embora tenham sido criadas para fins estruturais e funcionais, não negligenciam o aspecto estético e criativo, marcando a arquitetura e sua determinada região.
Em muitas culturas, entretanto, o uso de sombras e luz pode assumir um papel simbólico, carregando um significado cultural mais profundo. Na arquitetura japonesa, por exemplo, o uso de sombras é um aspecto essencial da filosofia do wabi-sabi, que valoriza a simplicidade, a imperfeição e a beleza dos materiais naturais. Nesse sentido, papel da sombra na história arquitetura vernacular não se resume aos aspectos funcionais e estéticos, podendo fomentar também a espiritualidade dos seus usuários. Como exemplo, vale destacar o complexo funerário Newgrange erguido em meio às montanhas irlandesas, com pedras de quartzo e granito do local, há mais de cinco mil anos. Essa estrutura é marcada pelo alinhamento solar no qual o trabalho entre luz e sombra atinge o auge no solstício de inverno quando as profundezas mais distantes da câmara mortuária são iluminadas. Com a manipulação precisa da luz, Newgrange procura criar uma atmosfera espiritual, fornecendo uma conexão com o sagrado e simbolizando o renascimento.
Voltando ao presente, vale mencionar o trabalho de arquitetos que têm se voltado para os princípios da arquitetura vernacular, focando em materiais e técnicas locais. Um grande exemplo é o ganhador do prêmio Pritzker de 2022, Francis Kéré, que traz em seus projetos características importantes do local, resgatando também a manipulação dos elementos climáticos, como a luz e a sombra. Na Biblioteca Escolar em Gando, por exemplo, a madeira de eucalipto foi utilizada ritmicamente na fachada, criando um espaço sombreado intermediário protegido do sol. Também respondendo às condições climáticas, a construção do telhado integra uma inovação técnica: panelas de barro tradicionais, feitas à mão por mulheres da aldeia, foram colocadas na estrutura de concreto para garantir iluminação e ventilação naturais. Desta forma, Kéré consegue tirar proveito desse objeto cultural, transformando-o em um elemento de construção que, além de gerar a circulação do ar, filtra a luz de forma marcante criando uma bela experiência sensorial marcada pelo contraste entre o claro e o escuro.
Seja nos primórdios da civilização ou na aplicação das técnicas vernaculares em arquiteturas mais recentes, esses exemplos reafirmam que o papel da sombra é essencial para criar espaços confortáveis e habitáveis, regulando a temperatura e o fluxo de ar, além de contribuir para a beleza estética e o significado cultural das edificações tradicionais.
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