Reunindo pesquisas científicas atuais, um novo relatório de ciência climática do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU foi aprovado e divulgado depois de intensas negociações entre os principais cientistas do mundo e governos. Com 37 páginas, o Relatório de Síntese da Sexta Avaliação do IPCC (AR6), reúne seis relatórios científicos e políticos aprofundados, e tem como público alvo principal os formuladores de políticas.
O documento destaca mais uma vez a necessidade urgente de reduzir emissões de gases de efeito estufa como caminho para atingir as metas climáticas intermediárias (reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030 e 60% até 2035) e zerar as emissões líquidas em meados do século e evitar que as temperaturas globais excedam o perigoso ponto de inflexão de 1,5°C.
Infelizmente, o IPCC conclui que as políticas atuais estão fora do caminho para atingir essas metas, apesar da variedade de soluções econômicas disponíveis.
“Os impactos climáticos apontados hoje são piores do que os previstos no último relatório de síntese do IPCC de 2014. Os estudos mostram que os atuais 1,1°C de aquecimento do planeta já causaram mudanças perigosas na natureza e no bem-estar das pessoas em todo o mundo e, por isso, precisamos de medidas imediatas para barrar os impactos da crise climática”, explica Alexandre Prado, especialista de Conservação em Mudanças Climáticas do WWF-Brasil.
A expectativa otimista é que estas informações incentivem os países a repensar seu progresso para atingir essas metas ainda este ano, no balanço global da cúpula do clima da ONU, a COP-28.
“O IPCC dá, novamente, um recado contundente às lideranças de todo mundo: a natureza é inegociável e a mudança precisa ser feita agora”, alerta Alexandre Alexandre.
Riscos reais e presentes
De acordo com os cientistas, cerca de metade da população mundial provavelmente estará exposta aos impactos das mudanças climáticas. Desastres climáticos que ocorrem uma vez a cada século estão prestes a se tornar eventos anuais. “As escolhas e ações implementadas nesta década terão impactos agora e por milhares de anos. Há uma janela de oportunidade que se fecha rapidamente para garantir um futuro habitável e sustentável para todos”, acrescenta o IPCC.
No curto prazo, todas as regiões do mundo enfrentam “riscos múltiplos e crescentes para os ecossistemas e para os seres humanos”, incluindo mortes e doenças relacionadas ao calor, riscos à saúde física e mental, inundações em regiões costeiras e baixas, perda de biodiversidade, perda de alimentos e escassez de água e muito mais.
“Cada aumento do aquecimento global intensificará riscos múltiplos e simultâneos”, adverte o IPCC. “Com mais aquecimento, os riscos da mudança climática se tornarão cada vez mais complexos e mais difíceis de administrar. Múltiplos fatores de risco climáticos e não climáticos irão interagir, resultando na composição do risco geral e dos riscos em cascata entre setores e regiões”.
Contra o argumento de que as mudanças climáticas sempre ocorreram, cientistas afirmam mais uma vez que já ocorreram “mudanças generalizadas e rápidas na atmosfera, oceano, criosfera e biosfera” e que essa mudança climática foi causada pelo homem.
Já é possível observar climas e extremos climáticos em todas as regiões mundo, com impactos desproporcionais para as “comunidades vulneráveis que historicamente contribuíram menos para a mudança climática atual”.
Caminhos para um futuro possível
Os estudos e pesquisas que embasam o relatório do IPCC ressaltam a necessidade e a oportunidade atual de controlar as mudanças climáticas e seus impactos. “A mitigação profunda, rápida e sustentada e a implementação acelerada de ações de adaptação nesta década reduziriam as perdas e danos projetados para humanos e ecossistemas”, diz o relatório.
Por outro lado, atrasar essas ações “travaria a infraestrutura de alta emissão, aumentaria os riscos de ativos ociosos e aumento de custos, reduziria a viabilidade e aumentaria as perdas e danos”.
Lili Fuhr, vice-diretora do programa de clima e energia do Centro de Direito Ambiental Internacional, destaca a importância dos combustíveis fósseis e a sua substituição neste cenário. “Uma eliminação gradual imediata, rápida e equitativa do combustível fóssil é a pedra angular de qualquer estratégia para evitar níveis catastróficos de aquecimento global. No entanto, as negociações da semana passada destacaram o conflito entre a ciência climática mais recente e os principais modelos econômicos que perpetuam uma abordagem de negócios como sempre”, afirmou a especialista.
Para Fuhr, o relatório aponta caminhos para evitar danos irreversíveis ampliando as soluções climáticas comprovadas que já estão disponíveis, começando com a substituição de combustíveis fósseis por energia renovável, aumentando a eficiência energética e reduzindo o uso de energia e recursos.
As soluções estão aí
Além da urgência absoluta da crise climática, os cientistas afirmam que a humanidade tem todo o conhecimento e ferramentas necessárias para reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa e fornecer o financiamento para ajudar as regiões, países e comunidades afetados.
“Várias opções de mitigação, notadamente energia solar, energia eólica, eletrificação de sistemas urbanos, infraestrutura verde urbana, eficiência energética, gerenciamento do lado da demanda, melhor manejo florestal e de culturas e redução do desperdício e perda de alimentos são tecnicamente viáveis, estão se tornando cada vez mais rentáveis e são geralmente apoiados pelo público”, afirma o Resumo para Formuladores de Políticas.
As soluções necessárias já foram desenvolvidas e são economicamente viáveis, se tornando mais acessíveis a cada ano. Como exemplo foram citadas a queda do custo de turbinas eólicas de painéis solares e baterias de íon de lítio que ficaram 55%, 85% e 85% mais baratos entre 2010 e 2019, respectivamente. Neste mesmo período, a implantação de energia solar cresceu mais de dez vezes e o uso de veículos elétricos aumentou mais de 100 vezes.
Infelizmente, isso não é suficiente. Com as emissões climáticas globais estimadas em cerca de 59 bilhões de toneladas em 2019, as opções de redução de carbono destacadas no relatório precisam aumentar drasticamente e rapidamente.
A boa notícia é que, se os países escolherem as opções certas de descarbonização e escalarem rapidamente, seria possível “uma desaceleração perceptível do aquecimento global em cerca de duas décadas e também a mudanças perceptíveis na composição atmosférica dentro de alguns anos”, escreve o IPCC.
“Transições rápidas e de longo alcance em todos os setores e sistemas são necessárias para alcançar reduções de emissões profundas e sustentadas e garantir um futuro habitável e sustentável para todos”, escreve o IPCC. “Essas transições de sistema envolvem um aumento significativo de um amplo portfólio de opções de mitigação e adaptação.”
É importante ressaltar que o relatório não faz menção a tentativas arriscadas e controversas de gerenciamento de radiação solar (SRM) e deixa de fora qualquer dependência de compensações de carbono . Sua única referência à eletricidade nuclear está no gráfico que mostra seu baixo potencial de redução de emissões e alto custo até 2030.
Entre as escolhas mais acertadas, de acordo com os pesquisadores se destacam:
- Energia solar e eólica como as maiores possibilidades de reduções líquidas de emissões até 2030 com o menor custo. A captura e armazenamento de carbono (CCS) oferece um décimo do benefício a um custo muito mais alto. Energia nuclear, geotérmica, hidrelétrica e eletricidade de biomassa se saem um pouco melhor.
- Para o uso do solo, água e sistemas de alimentação, o relatório destaca a importância de se reduzir a perda de ecossistemas naturais, capturar carbono e restaurar de ecossistemas. Já o desperdício de alimentos tem o menor impacto na lista de estratégias, segundo o IPCC.
- Em áreas urbanas e infraestrutura, o relatório lista como como as opções menos dispendiosas o investimento em veículos com baixo consumo de combustível, eficiência energética, mobilidade mais sustentável, navegação e aviação eficientes e a diminuição por serviços de energia. Edifícios eficientes são mais caros, mas podem gerar reduções de emissões um pouco maiores nesta década.
O limite de 1,5ºC
Os relatórios do IPCC e as decisões da COP são compromissos que muitas vezes não são respeitados. No entanto, alguns observadores disseram que o Sexto Relatório de Avaliação forneceu uma mistura convincente de urgência e esperança que pode ajudar a promover a ação climática nos próximos anos.
O documento de síntese conta “uma história incrível de tornar o impossível possível. Está tudo a postos agora, e há um papel a desempenhar para todos”, disse Kaisa Kosonen, assessora política sênior e chefe da delegação do Greenpeace International. Kosonen disse ainda que este é o “alerta final” da agência sobre manter o aquecimento global médio em 1,5°C
Segundo o relatório, existe uma “lacuna substancial de emissões” entre as promessas de redução de emissões dos países sob o Acordo de Paris de 2015. Modelos baseados nos compromissos nacionais de hoje, sem ambições de aumentos futuros, apontam para um aquecimento médio de cerca de 2,8°C no final do século – o que traria consequências trágicas.
O relatório diz que a adoção de tecnologias de baixa emissão está atrasada na maioria dos países em desenvolvimento, particularmente os mais pobres, “devido em parte ao financiamento limitado, desenvolvimento e transferência de tecnologia e capacidade”. Embora o financiamento para essa atividade tenha aumentado, a taxa de aumento diminuiu desde 2018.
Os países ricos estão contribuindo mais para reduções de emissões do que para a adaptação climática, e o financiamento de mitigação ainda está abaixo do esperado, depois que o mundo desenvolvido não cumpriu seu autodeclarado prazo de 2020 para entregar US$ 100 bilhões por ano para o financiamento climático internacional.
Os impactos, riscos e custos de adaptação às mudanças climáticas aumentarão se a inação da humanidade permitir que o aquecimento ultrapasse o limite de 1,5°C, forçando ações mais drásticas para reduzir as temperaturas globais.
“Se o aquecimento exceder um nível especificado, como 1,5°C, ele poderá ser gradualmente reduzido novamente, alcançando e sustentando as emissões líquidas globais negativas de CO2”, diz o relatório de síntese. Mas “isso exigiria implantação adicional de remoção de dióxido de carbono, em comparação com caminhos sem excesso”, levantando preocupações sobre se a abordagem é realmente viável.
“Fazer a transição para emissões líquidas zero de CO2 mais rapidamente e reduzir as emissões não-CO2, como o metano, limitaria os níveis de pico de aquecimento e reduziria a necessidade de emissões líquidas negativas de CO2, reduzindo assim as preocupações de viabilidade e sustentabilidade e os riscos sociais e ambientais associados à CDR [ remoção de dióxido de carbono] implantação em larga escala”, diz o relatório.
Medidas de adaptação
Mais do que combater as mudanças climáticas, é necessário se adaptar a elas, visto que eventos climáticos extremos já são uma realidade. O IPCC lista uma série de medidas que os países e comunidades podem adotar para se adaptar aos impactos das mudanças climáticas. Entre estas medidas, podemos citar cidades mais verdes, o manejo da água em fazendas, sistemas agroflorestais e manejo sustentável da terra, a restauração de zonas úmidas e a proteção dos ecossistemas florestais.
Mas “as respostas de adaptação mais observadas são fragmentadas, incrementais, específicas do setor e distribuídas de forma desigual entre as regiões”, escreve a agência.
A má adaptação já traz um impacto particularmente sério nos grupos marginalizados e vulneráveis. “As principais barreiras à adaptação são recursos limitados, falta de envolvimento do setor privado e dos cidadãos, mobilização insuficiente de financiamento (inclusive para pesquisa), baixa alfabetização climática, falta de compromisso político, pesquisa limitada e/ou absorção lenta e baixa da ciência da adaptação e baixo senso de urgência”, diz o relatório.
Equidade e justiça
O relatório pede uma resposta à emergência climática com base na equidade e na justiça. Além deste ser um “elemento central no regime climático da ONU”, equidade e justiça garantem melhores resultados.
“Ações de adaptação e mitigação que priorizam equidade, justiça social, justiça climática, abordagens baseadas em direitos e inclusão levam a resultados mais sustentáveis, reduzem trade-offs, apoiam mudanças transformadoras e promovem o desenvolvimento resiliente ao clima”, afirma o relatório. “Políticas redistributivas entre setores e regiões que protegem os pobres e vulneráveis, redes de segurança social, equidade, inclusão e transições justas em todas as escalas podem permitir ambições sociais mais profundas e resolver trade-offs com metas de desenvolvimento sustentável.”
Via CicloVivo.