A construção de Brasília é um feito relevante em termos históricos e arquitetônicos. Para o movimento moderno brasileiro, consagrou definitivamente os nomes de Lucio Costa e Oscar Niemeyer como seus maiores representantes, e erigiu a cidade modernista para ser colocada à prova como a nova ordem urbana. Contudo, a cidade não surgiu sozinha, e nem completamente utópica, moderna e modernizante. Veio acompanhada de cidades vizinhas, entre planejadas e orgânicas, construídas simultaneamente à nova capital.
Enquanto se organizava o concurso para definir a proposta arquitetônica que desenharia a nova capital, em 1956, a quantidade de migrantes que chegavam ao planalto em busca de emprego e melhores condições de vida crescia rapidamente. Sem estrutura urbana que os recebesse, os chamados “candangos” passaram a construir acampamentos improvisados e irregulares em torno dos locais de construção. A Cidade Livre, um complexo de comércio e serviço a aproximadamente 12 quilômetros de onde seria o Plano Piloto, servia de apoio à construção de Brasília, e passou a crescer orgânica e aceleradamente com o aumento demográfico da região.
Em 1958, um ano depois do concurso, a companhia urbanizadora, Novacap, inicia então o reassentamento das famílias da Cidade Livre para Taguatinga, a primeira cidade-satélite oficializada. Localizada a 25 quilômetros de Brasília, estava prevista em projeto, mas teve sua construção adiantada devido à urgência da questão populacional. A justificativa de deslocamento era proporcionar àqueles que construiriam a capital a posse de um terreno, garantindo-lhes bem-estar social e condições de moradia mais dignas. Assim, antes mesmo do surgimento de Brasília, instaura-se a cidade de Taguatinga, de maneira precária, improvisada e rápida.
Ali estavam aquelas terras, vendidas pela Novacap a preços e prestações ao alcance das bôlsas mais depauperadas, para que seus compradores pudessem ter aquilo que jamais poderiam obter por outra forma: um pedaço de terra brasileira de que seriam donos para estabilidade e segurança de suas famílias. [1]
A lógica subjacente dessa operação é secular: ela afasta determinada parcela da população do Plano Piloto, e recusa a mistura de classes sociais na cidade e seus espaços públicos. A distância de 25 quilômetros implica em um trajeto dificultado ao chamado “centro”, e passa a ser um desincentivo para parte da população de frequentar determinados locais na cidade. Dessa maneira, o que se insinua é a supremacia da ordem dominante, que privilegia semelhantes, ou seja, aqueles mais abastados. Além disso, a construção de Taguatinga ocorreu simultaneamente ao desenvolvimento do projeto, sem que fosse uma atitude assumida de aproximar o desenho da produção. Ou seja, a lógica “de cima para baixo” se manteve, ao invés da adaptação e criação conjunta entre projetistas e construtores.
De 1958 a 1971, criaram-se, a partir de operações semelhantes de remoção e reassentamento de famílias, as principais cidades-satélites da capital: Sobradinho (1959), Gama (1960), Núcleo Bandeirante (1961) – a antiga Cidade Livre, Guará (1968) e Ceilândia (1971), que é a cidade mais populosa do Distrito Federal. Extrapolando os conhecidos problemas da marginalização de determinados bairros ou localidades, é possível explorar alguns aspectos dessas cidades que colocam-se como contrapontos em relação ao nobre Plano Piloto.
A imagem dessas cidades no imaginário comum remete a uma certa desordem, já que têm um aspecto mais próximo das ditas cidades “tradicionais”. Contudo, existiam planos urbanísticos para elas, com padrões modernistas, como setorização ou organização residencial em superquadras. Esse urbanismo híbrido abre dois caminhos de abordagem. Por um lado, essas cidades podem ser avaliadas como um arremedo das premissas brasilienses, onde se usa da roupagem moderna sem a qualidade estética ou ética do movimento. Por outro, a atuação da população flexibiliza o traçado moderno planejado, solucionando parte do que é considerado desvantajoso em termos de percepção espacial.
O caso do Núcleo Bandeirante é um exemplo da atitude resistente de seus ocupantes. A Cidade Livre tinha a previsão de ser demolida após a inauguração de Brasília, mas os moradores e comerciantes juntaram-se para exigir sua regularização e permanência. Parte dos argumentos indicava um deslocamento em relação ao duo periferia-centro. Estabelecida desde 1956, a então Cidade Livre dispunha de serviços e logística há mais tempo que a recém-nascida Brasília. Dessa forma, parte das necessidades “centrais” dependiam de serviços “periféricos”. O centro institucional não era o centro real.
A cooperação mútua foi reforçada pela forma de concessão dos lotes nas novas cidades. A posse tinha caráter provisório até a regularização da Novacap, então a garantia de manutenção do terreno se dava por sua ocupação. Nesse sentido, as construções precárias como barracões continuavam ocorrendo, embora longe dos olhos dos primeiros moradores do Plano Piloto.
É possível fazer um paralelo entre distância do centro e valorização social. A cidade do Guará foi prevista para receber os servidores transferidos do Rio de Janeiro, e é geograficamente mais próxima de Brasília que as cidades destinadas aos trabalhadores manuais.
Esse funcionamento indomável e autônomo não segue os princípios da cidade moderna, embora não isso não signifique que é desordenado. O loteamento das cidades adjacentes a Brasília era planejado, mas a realidade foi relativamente autoproduzida. Os moradores removidos da capital, com apoio insuficiente das autoridades para a construção de seus novos contextos, passaram a ajudar-se mutuamente para a formação das novas cidades. É um tipo de fissura no projeto totalizante moderno, e a “desordem” dos usos e espaços desses locais se assemelham bem mais ao que se chama urbanidade do que a paisagem anódina e controlada do “patrimônio tombado”.
As disputas entre as cidades, suas contribuições para o complexo metropolitano, influência e domínio não deixarão de existir, e os meios de fazê-lo muitas vezes se passam como inofensivos. A nomeação dessas áreas dá pistas do caráter diminutivo em relação ao que se considera periferia. Ceilândia, por exemplo, faz alusão à Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), com o sufixo “lândia” denominando território.
O próprio uso da palavra “satélite” supõe um papel secundário em relação a um “centro”. Apesar de a expressão estar assimilada na linguagem cotidiana para definir essas cidades, um decreto de 1998 proíbe o uso do termo para se referir a qualquer uma das cidades do Distrito Federal em documentos oficiais. Considerando que a divisão municipal do distrito se dá por Regiões Administrativas independentes, e que várias dessas cidades de fato se sobressaem a Brasília em termos de autonomia econômica, demográfica, urbana e social, não há razão para insinuar que estejam à completa mercê do Plano.
De fato, a dimensão e influência dessas cidades se sobrepõem a Brasília. Apesar de maiores e de provedoras para a capital, de certa forma, seguem na imaginação popular como secundárias ou excluídas, à sombra da pompa da cidade modernista. Não é à toa. A consolidação dessas cidades não ocorreu sem seus percalços, as tensões não se apaziguaram necessariamente. Felizmente, um olhar cuidadoso pode revelar outras formas de encarar a literatura mais hegemônica e desafiar o que se diz corriqueiramente acerca dessas cidades.
Entre o plano urbano moderno e a autoconstrução, entre o centro e a periferia, entre a ordem e a desordem, existe um sentimento de pertencimento independente, tão brasiliense quanto o daqueles que vivem no Plano Piloto, e ao mesmo tempo particular de Ceilândia, Taguatinga, Guará. Há uma tensão entre a exclusão citadina e a inclusão inegável na história da capital, não existe uma parte sem a outra. Brasília é feita dessas cidades também.
Referências e notas
- [1] BRASÍLIA: Revista da companhia urbanizadora da nova capital do Brasil. Rio de Janeiro: ano 2, n. 20, agosto de 1958.
- COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. 3a ed. rev. São Paulo: Editora 34/Sesc Edições, 2018.
- DERNTL, Maria Fernanda. Dos espaços modernistas aos lugares da comunidade: memórias da construção das cidades-satélites de Brasília. In: Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas. São Paulo: v. 27, n. 1, p. 11–34, 2019.
- HOLANDA, Frederico de. Dez mandamentos da arquitetura. Brasília: FRBH, 2013.
- https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2019/10/31/e-surgem-as-cidades-satelites/ (acessado em março de 2023)
- https://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/33283/Decreto_19040_18_02_1998.html (acessado em março de 2023)