Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental

O conceito de sustentabilidade surgiu na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (UNCHE), realizada em Estocolmo em 1972, e foi cunhado pela norueguesa Gro Brundtland no Relatório “Nosso Futuro Comum” (1987). De acordo com essa definição, o uso sustentável dos recursos naturais deveria “suprir as necessidades da geração presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir as suas”. Entretanto, apesar da urgência do conceito e da constante evolução que ele tem sofrido ao longo do tempo, sua aplicação ainda se limita muitas vezes ao uso controlado dos recursos naturais e à preservação da vida selvagem. Ou seja, está baseada em relações e ações que abordam a situação sob a perspectiva do “homem versus natureza”, como um entendimento dicotômico em detrimento de uma visão holística.

Essa conceitualização dúbia sobre o ambientalismo moderno é posta em constante provação e tem aberto espaço para o desenvolvimento de muitas críticas, entre elas as oriundas do pensamento feminista. No texto Ecofeminist Philosophy (2000) a filósofa Karen J. Warren analisou a construção social da dicotomia “homem-natureza” e seu impacto negativo nas mulheres e no meio ambiente sugerindo que “as mulheres e a natureza sempre foram entendidas como ‘outros’ nas sociedades patriarcais” e que as dicotomias de homem-mulher, cultura-natureza, mente-corpo e razão-emoção na sociedade ocidental levaram a um predomínio de características supostamente “masculinas” e a uma “lógica de dominação”. Um longo precedente histórico de associação das mulheres com a natureza que culminou na opressão e marginalização de ambos.

Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental - Imagem 5 de 8
Centro de atendimento a pessoas com deficiência Anandaloy / Studio Anna Heringer. © Kurt Hoerbst

Dentro da prática do ambiente construído, a arquiteta paisagista Elizabeth Meyer observou que essas hierarquias, quando aplicadas aos projetos, além de fomentarem a exclusão das necessidades das mulheres e de outros grupos marginalizados, também perpetuam uma separação entre os seres humanos e outras formas de vidas como as animais e vegetais. Essa separação, no entanto, “coloca as pessoas fora dos ecossistemas dos quais fazem parte e reforça uma ética de controle ou propriedade, em vez de parceria e inter-relação”. Nesse sentido, com o intuito de abordar a sustentabilidade e a ecologia sob um viés mais amplo, que entende o desenvolvimento sustentável sob uma perspectiva holística e que se afasta da dicotomia de dominação, surge o ecofeminismo.

Apesar de estar cada vez mais presente nas discussões, o ecofeminismo foi cunhado pela francesa Françoise d'Eaubonne ainda em 1974 e utiliza os princípios feministas básicos de igualdade entre os gêneros, propondo uma reavaliação de estruturas não patriarcais ou não lineares e uma visão do mundo que respeita processos orgânicos, conexões holísticas e os méritos da intuição e da colaboração.

O ecofeminismo também chama a atenção para o fato de que as mulheres são afetadas desproporcionalmente pelas questões ambientais. De acordo com um relatório das Nações Unidas, como as mulheres em todo o mundo geralmente possuem menos riqueza monetária, se comparadas com os homens, e consequentemente dependem mais do ambiente natural, elas têm maior probabilidade de serem deslocadas pelas mudanças climáticas e precisam percorrer caminhos cada vez mais longos para obter recursos, como água, à medida que as estações secas se estendem. Além disso, a responsabilidade exclusiva das mulheres pelas crianças e idosos e como provedoras de alimentos as coloca na linha de frente em tempos de desastres induzidos pelo clima.

Entretanto, apesar das mulheres serem diretamente atingidas pelas mudanças climáticas e muitas vezes serem, inclusive, as responsáveis por montar casas em abrigos de emergência, elas são constantemente excluídas dos planejamentos para reconstrução em caso de desastres e das conversas sobre políticas climáticas. Com isso, tanto o desenho urbano quanto os espaços arquitetônicos acabam sendo pensados sob a ótica exclusiva do homem, não atendendo as necessidades dos marginalizados – neste caso – as mulheres e a natureza.

Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental - Imagem 3 de 8
Centro de atendimento a pessoas com deficiência Anandaloy / Studio Anna Heringer. © Kurt Hoerbst

Com base nessas situações, iniciativas têm surgido a fim de oferecer mecanismos que contribuam ao mesmo tempo para o desenvolvimento das mulheres e para a preservação da natureza. Muitas delas criam pontes entre os saberes vernaculares adquiridos pelas mulheres e as necessidades cotidianas. A arquiteta Yasmeen Lari é um nome reconhecido dessa prática, apesar de não se intitular ecofeminista. Com o seu projeto para o Chulah paquistanês (típico fogão ao ar livre), Lari substitui uma estrutura extremamente poluente e nociva para saúde das mulheres por um equipamento feito com barro e cal, sem fumaça e de baixo custo. Uma plataforma elevada de tijolos de barro ainda protege a área de inundações e proporciona uma estação de trabalho mais higiênica e ventilada. Nele, a utilização de práticas indígenas foi fundamental para o sucesso do projeto, capacitando para sua construção mulheres não alfabetizadas com os conhecimentos que já possuem.

Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental - Imagem 7 de 8
Construindo Chulahs: fogões tradicionais inovadores, 70.000 autoconstruídos. Imagem © Yasmeen Lari/Heritage Foundation of Pakistan

Empoderamento feminino e preocupação ambiental também podem ser vistos em outros projetos como o Centro de Atendimento a Pessoas com Deficiência Anandaloy, construído em Bangladesh, o centro contou com a mão de obra majoritariamente feminina lidando com materiais locais e naturais, como terra e bambu. Além da importante vocação social do centro, ele também abriga um atelier voltado à confecção de produtos têxteis os quais são comercializados em feiras locais.

A teorização e a materialização dos preceitos ecofeministas nos mostram que a sustentabilidade vai muito além dos painéis solares e telhados jardins. O passar do tempo e o desenvolvimento mais apurado do termo fez com que ele atingisse um elevado grau de complexidade sendo atravessado por aspectos relacionados à cultura, gênero, classe social, economia, entre outros. Essa abrangência nos mostra que a verdadeira sustentabilidade requer uma revolução cultural, e não meramente tecnológica, que englobe as necessidades das mulheres, mas também de outros grupos marginalizados, estando atenta aos saberes populares e suas potencialidades.

Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental - Imagem 6 de 8
Centro de atendimento a pessoas com deficiência Anandaloy / Studio Anna Heringer. © Kurt Hoerbst

Galeria de Imagens

Ver tudoMostrar menos
Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Ecofeminismo na arquitetura: empoderamento e preocupação ambiental" 16 Mai 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/999762/ecofeminismo-na-arquitetura-empoderamento-e-preocupacao-ambiental> ISSN 0719-8906

¡Você seguiu sua primeira conta!

Você sabia?

Agora você receberá atualizações das contas que você segue! Siga seus autores, escritórios, usuários favoritos e personalize seu stream.