Arquimedes de Siracusa, o sábio da matemática, da física e da geometria, sabia perfeitamente que se podia conhecer muita coisa a partir daquilo que acontecia a qualquer corpo mergulhado num líquido. Sobre isso, todos naquele tempo, e muito antes, tinham já experiência suficiente acerca do que significava ficar molhado; outros conseguiam flutuar e mesmo nadar, mas muitos havia também que, simplesmente, se afundavam. O impulso era-lhes insuficiente para virem à tona tomar ar. Hidratados, dissolviam-se lentamente nos lodos.
Alvaro Domingues: O mais recente de arquitetura e notícia
Geometria da Água / Álvaro Domingues
Depois do êxodo rural / Álvaro Domingues
No tempo em que os animais não falavam, distinguia-se muito bem a cidade do campo – a cidade era urbana e o campo era rural. Simplicíssimo. Assim são as definições claras que tudo explicam pelo que claramente precisa de ser explicado e vice-versa. Nessas idades tautológicas ainda nem sequer tractores havia para revolver e amaciar a terra. Trabalhava-se de sol a sol, esperava-se o bom tempo, o calor e a chuva quando fizessem mais falta, pelo S. Miguel eram as colheitas e Santiago pinta o bago. Nas romarias estrelejavam foguetes, sermões e missas cantadas, longas procissões e malgas de vinho para os farnéis.
Menos é mais / Álvaro Domingues
Ludwig Mies van der Rohe (1886 -1969) o conhecido arquitecto, autor, entre muitos outros, do Edifício Seagram em Nova York, usou e divulgou a frase “o menos é mais” para se referir a uma certa linguagem de clareza e depuração, de quase ausência ornamental, traduzida nas formas geométricas elementares, mas também de sofisticação e cosmopolitismo próprios dos seus edifícios de aço e vidro.
Rua da Estrada da desconstrução / Álvaro Domingues
Jacques Derrida, o filósofo que mais teorizou a desconstrução, repetia que não havia uma definição de tal coisa e que se tratava de um método de dissecar as estruturas mais ou menos escondidas para lhes tomar o pulso e perceber que coisas transportavam com elas. Não se trata portanto de um anti-estruturalismo porque a desconstrução é uma atitude bastante estruturada; trata-se de um exercício de decomposição para perceber se quando nos põe pela frente coisas “estruturais” e sistemas rígidos de compreensão opondo isto àquilo, razão e emoção, realidade e ficção e coisas assim, não nos estarão a doutrinar com uma qualquer visão do mundo a partir da qual as coisas serão tidas como normais ou anormais, bonitas ou feias, muito ou pouco importantes e assuntos do género. Na cultura dita ocidental tendemos a pensar e a argumentar usando oposições binárias. Assim, o preto não seria branco, a causa não seria efeito e o masculino não seria feminino. Sem se dar por isso, muitas dessas oposições contêm hierarquias, distinções entre o positivo e o negativo, veiculando juízos de valor moral ou estético. A desconstrução é a melhor medicina para ruminar tais polaridades encardidas.
4ª Trienal de Arquitectura de Lisboa: Visitas Guiadas - Outra Lisboa
Este projecto de visitas-guiadas na Área Metropolitana de Lisboa decorre desde 2014 e terminará em 2016. Este é um projecto que pretende tornar visível ao olhar e pensamento arquitectónicos os espaços urbanos de escala e complexidade metropolitana. Através de percursos realizados em espaços urbanos diversos: ruas, bairros, estradas, viadutos… Pretende-se discutir os processos de construção do espaço colectivo. Para este programa de encerramento, profissionais relevantes nesta área são convidados para guiar o grupo de participantes, formulando uma apropriação do debate e perspectivas sobre os lugares visitados.
Moderno radical / Álvaro Domingues
Desde que Frederick Taylor nos anos 1880’ se concentrou na engenharia do lucro através da organização metódica da produção e da gestão, estava inventado o taylorismo – os princípios científicos da organização e da gestão. Com base no estudo minucioso dos tempos e métodos de trabalho e da divisão fina do processo de produção em tarefas simples, sequenciadas e repetidas, e uma cadeia de gestos também simples e de operações de montagens até à finalização de um produto complexo fabricado em massa para uma economia eficiente, estava a função montada. Tempos modernos para o espírito novo. Henry Ford apurou e expandiu a fórmula, afinando a produtividade do sistema de produção em série de carros pretos e pagando salários suficientes para que qualquer operário da Ford pudesse comprar um carro. A produção em massa seria exponenciada pelo consumo em massa e estava inventada a felicidade do mundo, o fordismo. A engenharia industrial produziria uma engenharia social para o progresso da civilização e a racionalidade tecnológica seria a chave para a justiça social. O passado era para enterrar.
Rua da Estrada do Paraíso / Álvaro Domingues
PARA os que pensam que a Rua da Estrada é um inferno, lhes diria que é o seu contrário e que não é difícil provar tal facto de tão visível e argumentada que está a existência do paraíso, decorado interior e exteriormente e equipado com mobiliário de jardim como lhe compete. As portas do paraíso teriam que dar para a Rua da Estrada que é coisa que vai a todo o lado e não tem portagens como as vias mais rápidas.
Edifício-montra / Álvaro Domingues
A LUZ e a transparência são extraordinárias artilharias de produção de visibilidade. Por mil e uma noites, a mega-cristaleira é uma aparição, a caverna do Ali-Babá repleta de tesouros. A cena do aquário rutilante oscila entre o pornográfico, o exacerbado mais real que o real a saltar para o asfalto, e a sensualidade do apenas sugerido com a promessa de que tudo o que se desejar está contido na abundância destas caixas mágicas.
Casa de sonho / Álvaro Domingues
DIZIA um velho ditado que “quem fez a casa na praça / a muito se arriscou / para uns, pequena de mais / para outros, de alta passou”. Fazer a casa na praça significa expor ao julgamento público aquilo que podia não passar de um recato privado quase invisível atrás dos muros e portões. Pois…, o problema é que a própria privacidade só existe por contraste com essa sua suposta incompatibilidade pública.
Rota das Pirâmides / Álvaro Domingues
O EXÓTICO é um desejo; uma máquina de sedução; um domínio geo-semântico que designa um território imenso e quente, desconfinado, longínquo e incerto onde existem coisas estereotipadas, espécie de adereços e ambiências como o cheiro das especiarias, as trovoadas tropicais, as araras, as odaliscas, as palmeiras, os batuques, os camelos, e as pirâmides, por exemplo. O exotismo alimenta-se da nostalgia, do espaço e do tempo, como memória de uma idade de ouro em paragens remotas e tempos perdidos.
Café Canastro / Álvaro Domingues
Os Canastros são estas casas esguias e arejadas onde se guardavam as espigas e se defendiam da humidade e dos ratos. Quando veio das américas, o milho provocou uma verdadeira revolução nos campos: planta exigente em calor, regas, adubos, sachas e mil cuidados para que crescesse saudável e não fosse comida pelos morcões. Por isso o gado foi estabulado; por isso se cortavam matos nos montes para que o esterco dos animais depressa se transformasse em carradas de estrume; por isso se exploravam águas para apaziguar a sede da terra. O milho era o milagre do pão, a comida para os humanos e para os animais, o grão que se podia guardar, as medas de palha para o gado; o folhelho para os colchões; a moinha para as almofadas; o carolo para o lume. O milho era um dispositivo de socialização; as levadas comunitárias da água de rega; a junta de compartes para gerir o corte dos matos no baldio; as desfolhadas e o milho-rei para os namoros; a espiga para as alminhas ou o andor de S. Lourenço ou do S. Miguel padroeiro das colheitas…
Rua da Estrada de Luanda / Álvaro Domingues
NÃO é só Luanda que está caótica. Caótico está o próprio conceito de cidade na versão habitual de andar por casa pensando que as cidades são os centros históricos da velha Europa, uns prédios apinhados, e umas auto-estradas, centros comerciais…, além extensos subúrbios, e pronto.
Paisagem aos Bicos / Álvaro Domingues
Cosme e Damião, santos homens gémeos das arábias, praticavam medicina e pregavam a fé cristã sem por isso cobrarem qualquer dízimo. Um imperador romano mandou-os matar; outro ordenou que se lhes construísse um templo em Constantinopla nos idos de 530; um papa fez o mesmo em Roma e as coisas não ficaram por aqui[1].
Na riqueza e na pobreza / Álvaro Domingues
A arquitetura é um daqueles dispositivos que melhor caracteriza os humanos, as suas glórias, cismas, medos e vaidades – na vida e na morte. Acompanha-os na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-os, respeitando-os e sendo-lhes fiel todos os dias, até que a morte os separe e então se mude a maneira de resolver o assunto.
Terras do fim do mundo / Álvaro Domingues
Pelo fundo de encostas abruptas, praticamente esculpidas em pedra, corre o rio que as escavou e que foi deixando, num leito também de pedras, uma cicatriz que aparta uma e outra margem. Por estas bandas, desde os alvores da demarcação do reino e das suas fronteiras, também se disputaram terras de pasto e lameiros.
Histórias do início do mundo / Álvaro Domingues
Em tempos muito remotos, os humanos vagueavam em grupos mais ou menos organizados, caçando e comendo do que havia. Não tinham ainda descoberto como domesticar animais e cultivar plantas; não produziam excedentes e não havia cidades. Um dia, do alto de uma colina um chefe de um desses grupos viu ao longe uma nuvem de pó que avançava e pensou: se matarmos aqueles, toda a caça e mantimentos que eles possuem será um excedente para nós. Assim fizeram e continuaram na colina exercitando armas. Quando avistaram outro grupo, pensaram melhor: matamos a maior parte e escravizamos os mais fortes para ficarem a trabalhar para nós a ver se domesticam aquelas cabras bravas. Tal qual. Pelo sim, pelo não, e porque aquela colina era estratégica e os outros invejavam suas riquezas e posição, fortificaram o lugar e ergueram uma torre no meio. Tinha nascido a primeira cidade.
Rua da Estrada do Brasil / Álvaro Domingues
A Rua da Estrada do Brasil é hiper-realista. Aquilo que noutro lugar seria apenas uma mínima manifestação de qualquer coisa apenas esboçada, toma aqui um visual transbordante como nos ambientes da realidade aumentada: estacionar na berma pode ser de frente, de lado e de viés; as cores e as letras multiplicam-se numa cacofonia de signos, códigos e suportes fixos ou ambulantes; o asfalto vai incerto por esbatidos limites de vias, valetas e passeios. Nos fios que se penduram nos mesmos postes, Ariadne não saberia encontrar solução para Teseu que até podia não ser comido pelo Minotauro mas morreria electrocutado ou permaneceria eternamente no labirinto sem nunca perceber se o fio era de telefone, de electricidade, fibra óptica ou pesca à linha.
A Rua da Estrada / Álvaro Domingues
A Rua da Estrada é um conceito que emerge sobre os escombros da dupla perda da “cidade” e do “campo” e da oposição convencional entre o “urbano” e o “rural”. Da cidade, existe a ideia muito comum de que se trata ao mesmo tempo de uma forma de organização social (a polis ou a civitas) intensa e diversa que ocupa um território densamente construído, com uma forma, um centro e uns limites perfeitamente definidos. Esta imagem da cidade aparece como um “interior” confinado, rodeado pelos espaços extensivos e rarefeitos da agricultura, da floresta ou dos espaços ditos naturais. No mesmo registo, o rural seria o espaço da agricultura; agrícola porque maioritariamente dependente da economia agro-florestal, e rural, no sentido cultural, porque correspondente a estilos de vida e visões do mundo dominadas por um certo tradicionalismo atávico e pelo fechamento sobre si.